O Inep da sociedade
“O Inep que a sociedade precisa”: entrevista a Dermeval Saviani
Entrevista a Dermeval Saviani inaugura a série “O Inep que a sociedade precisa“. Autor de inúmeras obras e referência de alta importância no campo da pesquisa educacional brasileira, Saviani é professor emérito da Unicamp, pesquisador emérito do CNPq, coordenador geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” e professor titular do programa de pós-graduação em Educação da Unicamp.
Nesta entrevista, Saviani retoma suas reflexões publicadas na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e estabelece uma relação entre as transformações institucionais do Inep, o redimensionamento da pesquisa e a adoção de um modelo de avaliação baseado em instrumentos internacionais focados na mensuração de resultados. O professor sustenta a centralidade da pesquisa como elemento norteador de novos modelos de avaliação, mais abertos e participativos. Saviani também defende a autonomia do Instituto e a construção de diagnósticos participativos, aliados a estudos de aprofundamento sobre a implementação do Plano Nacional de Educação.
Confira a entrevista completa abaixo.
Como avalia a atuação do Inep nos tempos recentes?
O Inep foi fundado em 1938 como um órgão de pesquisa na área da educação. Daí, o seu nome “Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos”, que deu origem à sigla Inep que permanece até hoje.
Pelo Decreto nº 71.407, de 20 de novembro de 1972, a denominação Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos foi alterada para Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, mantida a sigla Inep. Como se vê pela nova denominação, mantinham-se também suas funções originais que tinham como escopo principal o desenvolvimento de estudos e pesquisas educacionais. No entanto, a partir do início da primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso o Inep sofreu uma mudança radical, deslocando-se para o campo da avaliação, o que se institucionalizou com a Medida Provisória nº 1.468, de 14 de fevereiro de 1997, convertida pelo Congresso Nacional na Lei nº 9.448, de 14 de março de 1997. Por essa mudança, considerada pelos seus proponentes como uma verdadeira refundação, o Inep foi definido como uma Autarquia Federal vinculada ao MEC, deixando de ser um órgão de realização e fomento à pesquisa educacional, de organização da documentação sobre educação e de disseminação das informações educacionais, funções que lhe foram atribuídas desde sua fundação até a promulgação dessa lei, para se converter num órgão de avaliação da educação brasileira em todos os seus níveis e modalidades. É essa a característica atual do Inep.
Podemos dizer que na história do Inep ocorreu um corte, em 1997, que o transformou, de um órgão de pesquisa educacional, numa agência de avaliação da situação do ensino no país. Dir-se-ia que não é correto estabelecer essa dicotomia entre pesquisa e avaliação, pois um órgão de pesquisa, ao assumir como encargo prioritário a explicitação das condições de funcionamento da educação no país, permitirá uma avaliação com indicadores que possibilitarão a formulação de políticas consequentes como base para intervir eficazmente visando solucionar os problemas detectados. E o exame histórico mostra que foi essa exatamente a razão da criação do Inep: realizar pesquisas tendo em vista o esclarecimento e solução dos problemas pedagógicos.
Mas, de fato, o corte operado em 1997 implicou a referida dicotomia entre as funções de pesquisa e avaliação. Isso ocorreu porque o modelo de avaliação assumido pelo MEC que determinou ao Inep sua reestruturação para efeitos da formatação e implementação do referido modelo não decorreu de pesquisas sobre a situação educacional brasileira. Ao contrário, sua inspiração veio dos instrumentos internacionais focados na mensuração de resultados, no espírito das reformas conservadoras de fundo neoliberal que, a partir dos anos de 1990, ocorreram nos Estados Unidos e em vários países europeus. Sobre isso é importante considerar a autocrítica efetuada por Diane Ravitch, que esteve entre os principais proponentes do processo de avaliação do sistema de ensino americano, no livro The death and life of the great American School System: how testing and choice are undermining education, 2010 (Tradução brasileira: Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Porto Alegra: Sulina, 2011).
Diane Ravitch foi secretária adjunta de educação entre 1991 e 1993 no governo George H. W. Bush, sendo em seguida indicada pelo então presidente Bill Clinton para assumir o National Assessment Governing Board, instituto responsável pelos testes federais. Firmou-se, assim, como uma das principais defensoras da reforma do ensino nos Estados Unidos, reforma essa que, baseada em metas, introduziu testes padronizados, responsabilização do professor e práticas corporativas de medição e mérito. No entanto, após 20 anos defendendo esse modelo que inspirou as medidas adotadas no Brasil a partir da década de 1990, Ravitch concluiu que “em vez de melhorar a educação, o sistema em vigor nos Estados Unidos está formando apenas alunos treinados para fazer uma avaliação”.
No Brasil esse modelo de avaliação orientado pela formação de rankings e baseado em provas padronizadas aplicadas uniformemente aos alunos de todo o país por meio da Provinha Brasil, Prova Brasil, Enem, Enade está, na prática, convertendo todo o “sistema de ensino” numa espécie de grande “cursinho pré-vestibular”, pois todos os níveis e modalidades de ensino estão se organizando em função do êxito nas provas buscando aumentar um pontinho no Ideb.Caminham, portanto, na contramão de todas as teorizações pedagógicas formuladas nos últimos cem anos para as quais a avaliação pedagogicamente significativa não deve se basear em exames finais e muito menos em testes padronizados. Devem, sim, procurar avaliar o processo, considerando as peculiaridades das escolas, dos alunos e dos professores.
Qual deve ser o espaço para a pesquisa no Inep? Como ela poderia contribuir para o Instituto cumprir sua missão de subsidiar a formulação de políticas públicas educacionais e avaliar a Educação brasileira?
Considerando-se a origem, a razão de sua criação e a trajetória percorrida ao longo de mais de meio século de sua existência, sem dúvida a pesquisa deve ocupar lugar central no Inep. Aliás, em artigo que publiquei na RBEP, n. 234, na comemoração dos 75 anos do Inep, fiz o seguinte apelo: já que pela lei nº 10.269 de 29 de agosto de 2001 o Inep passou a se chamar Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, numa justa homenagem a esse grande educador, sem dúvida a referência principal da história do Inep, oxalá esse instituto venha a se inspirar em seu patrono e restabeleça a perspectiva original que o configurou como uma agência de pesquisas pedagógicas voltada para o conhecimento preciso dos problemas educacionais do país tendo em vista o encaminhamento adequado de sua solução.
Nesse mesmo artigo lembrei que a fundação de um instituto nacional de pesquisas educacionais tinha como escopo principal subsidiar a formulação de políticas educativas. Isso se fez presente em todos os momentos e nos vários dispositivos legais que regulamentaram o funcionamento do Inep. Logicamente, para subsidiar as políticas é necessário proceder a um diagnóstico da situação educacional que permita conhecer os problemas sobre os quais deverá incidir a ação dos vários governos. Foi para isso que se criou o Inep com a função de promover investigações, organizar a documentação e disseminar os resultados das investigações. E de forma um tanto paradoxal, nessa última fase em que o instituto deixou de ser um órgão de pesquisa para se tornar uma agência de avaliação, o inciso V do art. 1º da lei que deu essa nova configuração ao Inep afirmou a necessidade do diagnóstico ao definir como finalidade “subsidiar a formulação de políticas na área de educação, mediante a elaboração de diagnósticos e recomendações decorrentes da avaliação da educação básica e superior”. Apesar dessa evidência lógica, ao longo de seus 75 anos de existência, apenas uma vez o Inep formulou uma proposta intencional, sistemática e abrangente de diagnóstico da educação em nosso país. Trata-se do “Programa Diagnóstico do Setor de Educação”, desencadeado pelo Inep em 1983, com a proposta de um novo estilo de diagnóstico que se propunha a realizar em plenitude o significado de “diagnóstico” a partir de sua raiz etimológica: conhecer para intervir. Mas esse programa foi desativado a partir de 1990, exatamente quando o MEC passou a priorizar iniciativas na área de avaliação. Nesse novo contexto realizou-se, em outubro de 1989, reunião do Programa Diagnóstico com a participação de pesquisadores, consultores juntamente com técnicos do Inep para avaliar a situação do Programa. Os resultados e sugestões decorrentes dessa reunião recomendaram a continuidade dos trabalhos nas unidades federadas já envolvidas e sua extensão às demais. Mas apesar de sua aprovação pela direção do Inep, o MEC preferiu optar por outras formas de avaliação, desembocando na adesão aos programas internacionais e na conversão do Inep em mera agência de avaliação. E o “Programa Diagnóstico do Setor Educação nos Estados” não apenas foi abandonado como, ao que parece, desapareceu até mesmo de seus arquivos.
Penso que, para cumprir sua missão de subsidiar a formulação de políticas públicas educacionais e avaliar a Educação brasileira, o Inep poderia retomar o referido “Programa Diagnóstico do Setor Educação nos Estados”, cujas características, realização e resultados descrevo no artigo mencionado.
Qual deve ser o papel do Inep na implementação do Plano Nacional de Educação?
Entendo que, retomando sua condição de um instituto de pesquisas educacionais e desenvolvendo permanentemente um programa na linha do novo estilo de diagnóstico ensaiado na década de 1980 caberia ao Inep acompanhar o processo de implantação do PNE analisando a situação da educação em cada um dos estados e municípios e, avaliando as condições encontradas, subsidiar a formulação e implementação de políticas destinadas a viabilizar o atingimento das metas do PNE. Ao mesmo tempo, pelos subsídios decorrentes das investigações realizadas, possibilitaria, também, identificar as inadequações de determinadas metas propiciando a correção de rumos. Dessa forma se daria cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei que instituiu o PNE, que assim determina: “A cada 2 (dois) anos, ao longo do período de vigência deste PNE, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep – publicará estudos para aferir a evolução no cumprimento das metas estabelecidas no Anexo desta Lei, com informações organizadas por ente federado e consolidadas em âmbito nacional, tendo como referência os estudos e as pesquisas de que trata o artigo 4º, sem prejuízo de outras fontes e informações relevantes”. Mas, na linha do novo estilo de diagnóstico, embora incorporando os dados estatísticos decorrentes da PNAD, censo demográfico e censos nacionais da educação mencionados no artigo 4º, os subordinaria a uma nova metodologia de pesquisa de caráter mais abrangente, envolvendo os seguintes momentos:
1º) Diagnóstico técnico-quantitativo. Nesta etapa trata-se de se apropriar ao máximo possível das informações disponíveis organizadas por meio das formas usuais de levantamento e registro de dados;
2º) Diagnóstico participativo. Nesse momento busca-se socializar as informações disponíveis junto aos agentes da educação e, na discussão com eles, conseguir uma aproximação mais efetiva da realidade concreta da educação. Esse processo permitirá situar a produção de conhecimentos no interior do movimento do real, pois ao mesmo temo em que se obtém um conhecimento mais efetivo da educação podendo-se, em consequência, subsidiar o planejamento e as ações de política educacional, altera-se simultaneamente a qualidade da ação dos agentes e, pela mobilização da população destinatária dos serviços educacionais, se amplia o seu poder de pressão frente aos órgãos responsáveis por esses serviços.
3º) Estudos de aprofundamento. Esta etapa envolveria o desenvolvimento de projetos relevantes de pesquisa incidindo sobre questões específicas que o processo do diagnóstico revelaria como requerendo uma compreensão mais acurada. Desta forma o próprio diagnóstico retroagiria junto à universidade gerando temas de pesquisa que permitiriam consolidar grupos de investigação aglutinados em torno de linhas de pesquisa e desenvolvendo projetos diretamente voltados para a produção de um saber acadêmico (teórico) exigido pela própria realidade educativa em seu movimento concreto.
A estratégia preconizada para pôr em ação a referida metodologia envolve a constituição de equipes formadas por elementos das universidades e das Secretarias de Educação dos estados os quais, além de interagir entre si, por meio do segundo momento metodológico interagirão fortemente com os agentes diretamente envolvidos nos serviços educacionais, em especial no âmbito escolar. Com isso se pretende articular o saber acadêmico (teórico) com o saber administrativo (técnico) e com o saber prático.
Em sua opinião, é importante assegurar autonomia ao Inep? Se sim, qual seria essa autonomia e o que seria necessário para garanti-la?
De modo especial se for restaurada a condição originária do Inep como um órgão fundamentalmente de pesquisa, a prerrogativa da autonomia resulta indispensável. Isso porque é basicamente em razão da função de pesquisa, isto é, da produção científica, que se justifica a autonomia universitária elevada à condição de dispositivo constitucional. Essa questão foi posta em evidência por Humboldt que, ao fundar a Universidade de Berlim em 1810, alçou a autonomia da comunidade interna à instituição como seu elemento central. Com efeito, a universidade, tal como a conhecemos atualmente, teve a sua configuração institucional definida na primeira metade do século XIX. Daí emanam os três modelos clássicos de universidade, a saber, o modelo napoleônico, o anglo-saxônico e o prussiano. Este último se caracterizou com a fundação da Universidade de Berlim. Por isso esse modelo é também chamado de humboldtiano. A origem desses modelos se assenta nos elementos básicos constitutivos das universidades contemporâneas: a) o Estado; b) a sociedade civil ou comunidade externa; e c) a autonomia da comunidade interna à instituição. Esses elementos nunca aparecem de forma isolada. Conforme prevaleça um ou outro, tem-se um diferente modelo institucional. A prevalência do Estado dá origem ao modelo napoleônico; prevalecendo a sociedade civil tem-se o modelo anglo-saxônico; e sobre a autonomia da comunidade acadêmica se funda o modelo prussiano.
Em suma, a autonomia, que deve abranger os aspectos científico, administrativo e de gestão financeira e patrimonial, é necessária porque o desenvolvimento da produção científica não pode ficar sujeito às pressões e interferências externas correspondentes ao jogo político e aos interesses de mercado. E para que a autonomia se efetive é necessário que sejam preenchidos determinados requisitos entre os quais destaco: a) orçamento próprio, o qual implica que seja determinado um percentual fixo de repasse de recursos que serão administrados internamente pelo Inep segundo critérios definidos à luz das finalidades a serem atingidas pelas ações encetadas. Para ilustrar essa exigência lembro o caso da Fapesp, cujos recursos decorrem do repasse de um por cento de todas as receitas do estado de São Paulo, conforme determinação constitucional; b) um quadro técnico-científico permanente composto por funcionários de carreira admitidos mediante concurso público.
Campinas, 19 de fevereiro de 2015
https://blogdoinep.wordpress.com/2015/03/17/dermeval-saviani/