Contra racismo e xenofobia
Resgatar história da escravidão negra colabora na luta contra racismo e xenofobia
Mais que reparação financeira, pesquisadores de Portugal, Angola e Brasil ressaltam importância de reparar narrativa sobre sistema que foi uma das bases do colonialismo europeu e cujo legado não é suficientemente debatido nos três países
Por Susana Moreira Marques Do Opera Mundi
Ottobah Cugoano foi um escravo. Nascido em Gana, por volta de 1757, foi capturado por comerciantes de escravos e transportado para o Caribe por volta de 1770. Cugoano, ao contrário de muitos outros escravos dessa época, teve sorte. Ao chegar à Inglaterra foi libertado e trabalhou como um homem livre em Londres, cidade onde se juntou a um grupo de abolicionistas africanos nos anos 80 do século 18. Faziam parte do movimento contra a escravidão que começava a ganhar apoio público e a fazer pressão junto do parlamento britânico nessa época. Em 1807, o Reino Unido era o primeiro país a abolir o comércio de escravos. O Brasil seria o último país a abolir totalmente a escravidão, em 1888.
Cugoano e alguns poucos africanos daquela época tiveram a possibilidade de partilhar a sua narrativa e o seu lado da História, mas ao longo do tempo, mesmo depois da abolição do comércio de escravos e da escravidão, faltou sempre fazer a história do ponto de vista dos africanos e daqueles que tinham sido escravos.
A escravidão é – e talvez seja sempre – um problema contemporâneo. Não se trata apenas de observar que continuam a existir no mundo modelos de exploração semelhantes ao da escravatura e que o tráfico de seres humanos continua a existir.
Este tipo de escravidão moderna já não é exclusivo dos africanos, como lembra Vladmiro Fortuna, diretor do Museu Nacional da Escravatura, em Angola, mas é um fato, diz, que ainda é real “a discriminação dos descendentes das vítimas da escravatura [do comércio Atlântico] nos países onde o fenômeno foi muito intenso.”
Isabel Castro Henriques, historiadora ligada ao projeto da UNESCO “Rota do Escravo”, em Portugal, diz que a palavra “escravo” ficou associada a “negro” e que os longos séculos de escravatura transatlântica, de domínio europeu e americano, estão na base do racismo que continuou muito depois da abolição, que fortaleceu-se durante os regimes coloniais europeus na África e que continua a subsistir hoje.
Para vários pesquisadores e historiadores, em Portugal e Angola, é importante passar a mensagem para a sociedade civil e para o poder político de que preservar e ensinar a memória da escravatura não é fazer um mero exercício de história, mas é uma ação efetiva na luta contra o racismo.
“Uma boa divulgação da história da escravatura – e da sua violência e crueldade – poderá despertar a atenção de determinados setores da sociedade para fenômenos contemporâneos de racismo e de xenofobia, de forma a promover a coesão social e as relações interraciais”, resume Vladmiro Fortuna.
Museu de Escravatura de Angola, em Luanda
Recentemente, dos Estados Unidos ao Brasil, intensificou-se o debate sobre a forma como devemos conservar a memória da escravatura e cresceram também os apelos – e os argumentos a favor e contra – para que sejam feitas reparações, inclusive financeiras.
No Brasil, a Ordem dos Advogados anunciou em novembro de 2014 a formação de uma Comissão da Verdade da Escravidão Negra. A Comunidade do Caribe (Caricom), que tinha estabelecido em 2013 uma Comissão para Reparações, decidiu recentemente fazer um pedido de indenizações a vários países europeus, entre eles Portugal. Mas se este parece ser um tema que tem ganhado força no início do século 21, quando o equilíbrio do poder no mundo se alterou e o mundo ocidental já não tem a hegemonia dos outros séculos, a verdade é que não é uma ideia nova – é pelo menos tão antiga quanto a própria ideia da abolição, até mesmo a ideia de compensação financeira.
Em 1783, em Massachusetts, no leste dos Estados Unidos, uma mulher livre que tinha sido raptada em criança, no Gana, e escravizada durante 50 anos fez um pedido às autoridades do estado para receber o que seria hoje considerado uma indenização. Pedia que fosse poupada, ela e a filha doente, “da miséria mais extrema”. Descrevendo os anos de opressão, dizia ao juiz que se tratava de “uma devolução justa” receber parte da “imensa riqueza” que ela própria, enquanto escrava, tinha ajudado a “acumular” e “aumentar”. Belinda Royall (Royall era o nome da família que fora sua “proprietária”) conseguiu que fosse estabelecida uma pensão retirada do patrimônio da família para quem tinha sido escrava. Ela foi, é claro, uma exceção e as indenizações pagas foram-no, em grande maioria, aos proprietários dos negócios que dependiam dos escravos. De certa forma, foi preciso pagar para conseguir impor a abolição da escravatura.
A lógica do pedido de reparações aos países protagonistas do tráfico de escravos e da escravatura de africanos em larga escala não é muito diferente da história de Belinda Royall e do mesmo raciocínio: se os países lucraram durante tanto tempo com este comércio, por que não devolverem parte desse lucro aos que contribuíram, sem qualquer reconhecimento, para que essa riqueza existisse?
As reparações financeiras colocam vários problemas, a começar pela dificuldade em calcular quantias concretas. “Podemos até ter uma ideia do número de pessoas envolvidas no tráfico de escravos, mas como calcular um valor para a violência e a crueldade?”, pergunta Vladmiro Fortuna. “A minha opinião tem sido sempre esta: não é dinheiro que pode pagar o crime que foi a escravidão.”
O diretor do Museu Nacional da Escravatura de Angola reforça a ideia de que são necessárias, sim, reparações éticas, morais, históricas e científicas: “É preciso criar condições para a preservação da memória e colocar a história da escravatura no seu verdadeiro lugar – e com isso ajudar a diminuir os focos de discriminação das pessoas de descendência africana em países onde ela foi muito intensa. É esta a melhor forma de reparar esse erro do passado.”
Também Isabel Castro Henriques acha que as reparações financeiras podem desviar as atenções daquilo que é realmente importante: “O problema do preconceito é um problema profundo e o que é preciso é que as pessoas mudem a maneira de pensar”.
Museu do Negro do Rio de Janeiro, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no centro da cidade
A pesquisadora e professora, especialista em História da África, lembra que existe o perigo de se achar que “o assunto fica resolvido” pelo dinheiro. Admite que em certos tipos de situação, compensações financeiras podem ajudar, mas que não é o caso de séculos de tráfico de escravos e de escravatura que moldaram relações entre povos e continentes.
“No caso de Portugal, é preciso desconstruir um imaginário que foi construído ao longo dos séculos”, diz Isabel Castro Henriques. “As pessoas em Portugal muitas vezes são racistas sem sequer se darem conta.”
Em Portugal, antes sequer de pensar em reparações, seria preciso dar importância à história da escravidão, reconhecer o seu impacto ainda hoje, debatê-lo de forma séria publicamente. Mas isso ainda não está acontecendo.
Os projetos para um museu da escravatura em Lagos, no sul de Portugal, têm avançado a passos lentos. E Henriques lamenta que a tentativa de preservar um cemitério de escravos também em Lagos não tenha sido bem sucedida. No lugar onde tinham sido encontrados 155 esqueletos de escravos africanos e onde se poderia ter feito algo para honrar a memória destes homens, mulheres e crianças, foi construído um estacionamento – os esqueletos foram retirados para serem estudados. É apenas um exemplo, para a pesquisadora, de como em Portugal ainda não é vista como uma prioridade a preservação da memória da escravatura.
Benjamin de Paula é um pesqusador brasileiro que chegou a Portugal em setembro de 2014 para trabalhar no Centro de Estudos Sociais de Coimbra. Ele se surpreendeu com o estado do debate sobre este tema em Portugal, isto é, quase inexistente.
Benjamin de Paula acompanhou no Brasil o crescimento dos movimentos sociais negros e as ideias de reparações que não são diretamente financeiras, mas que tentam corrigir o acesso às oportunidades da população brasileira negra. Para o pesquisador, já é possível hoje analisar as mudanças que ocorreram no Brasil, com a introdução, há pouco mais de dez anos, de políticas de ação afirmativa que, por exemplo, impuseram cotas de estudantes negros nas universidades brasileiras para superar a enorme disparidade que existia entre a porcentagem de negros na população brasileira e a existência de estudantes negros nas universidades.
“Casos como o meu, que sou negro, numa universidade brasileira, eram quase exóticos. No entanto, no Brasil, 50% da população é negra.” Hoje, diz, há médicos, engenheiros e professores universitários negros, graças também à lei de cotas. Mas, para Benjamin de Paula, a medida mais importante que o governo brasileiro tomou foi a obrigatoriedade de ensinar a história afro-brasileira em todas as escolas.
Na história nunca há um só ponto de vista, e passou a fazer parte da educação de todas as crianças e jovens brasileiros olharem a sua história também a partir dos escravizados, dos discriminados, dos que nunca tiveram direito à história.
Da mesma maneira que a teoria do luso-tropicalismo – que via o Brasil como o país onde as raças se misturavam com harmonia – impediu um olhar honesto sobre a realidade do racismo na sociedade brasileira, Benjamin de Paula observa como ideias semelhantes se mantêm em Portugal, mascarando o racismo no país. Também os portugueses criaram o seu “mito”, herdado ainda do tempo da ditadura, de povo não-racista, que faz com que seja mais difícil um verdadeiro debate quer sobre o passado quer sobre o presente e sobre a forma como Portugal se relaciona com os países africanos de língua portuguesa.
Detalhe de exposição em dezembro de 2014 no Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo
“Se não há um debate sobre o passado, não podemos rever o presente nem podemos ter desenvolvimento no futuro. As reparações passam primeiro por uma revisão histórica.” Portugal, diz, não ganha nada em querer fixar-se numa História de vencedores. “Portugal não ganha nada com continuar a olhar dessa forma [como “vencedor”] para a escravidão, a não ser vergonha eterna.”
Segundo Vladmiro Fortuna, em Angola o debate existe a um nível institucional – e as instituições angolanas vão sendo confrontadas com a maneira como a discussão vai evoluindo internacionalmente – mas ainda não chegou à sociedade angolana. “A memória da escravatura em Angola ainda não é suficiente conhecida”, diz, “mas creio que é uma questão de tempo até a sociedade estar mais atenta a estes temas.”
O diretor do Museu Nacional da Escravatura lembra que há muito trabalho por fazer para se conhecer a fundo a história da escravatura em Angola – para além da história do tráfico de escravos, há muito por explorar no que toca à escravidão dentro do país, nas antigas fazendas coloniais, por exemplo, entre muitos outros espaços que ainda não foram suficientemente estudados. Vladmiro Fortuna diz que o acervo do Museu Nacional da Escravatura é extraído na sua maioria da região de Luanda, onde o museu está localizado, e que falta fazer trabalho arqueológico no resto do país.
Agora, lembra, no resto do mundo tem crescido a investigação sobre a escravatura e em muitos estudos internacionais Angola é referida. “No siteTrans-Atlantic Slave Trade Database, os números mais recentes apresentados colocam Angola como umas das regiões que mais exportou escravizados. Esta confirmação dá-nos mais responsabilidades no processo da valorização e preservação da memória da escravatura.”
“É um assunto que deve envolver todos os povos do mundo no sentido de preservar a história para a educação das novas gerações, porque é esta a melhor forma de honrar as vítimas”, diz Vladmiro Fortuna.
Este parece ser o grande consenso: que a verdadeira reparação começará quando nas escolas a história da escravidão seja contada a partir de vários pontos de vista e seja tratada como um tema fundamental. Talvez quando os nomes e as histórias de pessoas como Cugoano ou Belinda Royall passarem a fazer parte do nosso imaginário.
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