Chomski e a ciência da linguagem

Chomski e a ciência da linguagem

 

Chomsky e a ciência da linguagem

 

Aldo Bizzocchi – Acabo de ler A ciência da linguagem – Conversas com James McGilvray (Editora Unesp, 2012), de Noam Chomsky, o maior linguista vivo, cujas teorias da sintaxe gerativo-transformacional e da gramática universal são divisores de águas nos estudos linguísticos. Trata-se da transcrição de algumas entrevistas dadas por Chomsky ao professor de filosofia da McGill University (Montreal), James McGilvray.

Como diz a própria orelha do livro, “não seria exato caracterizar o conteúdo deste volume apenas como transcrição das entrevistas. O fluxo do pensamento de Chomsky é pontuado pelas intervenções do entrevistador, que […] também comenta – e muitas vezes completa – lacunas características do discurso oral das entrevistas”. De fato, McGilvray não só dialoga com Chomsky no verdadeiro sentido do termo (troca de ideias e não mero interrogatório) como também acresce o livro de um sem-número de comentários, alguns bem longos (quase do tamanho de um capítulo), que funcionam como notas de rodapé (ou melhor, de fim) estendidas. Esses comentários procuram aclarar pontos da discussão que podem ficar obscuros ao leitor no próprio desenrolar da entrevista. Ainda segundo a orelha, “as intervenções e os esclarecimentos de McGilvray permitem que o texto seja acessível a todos os leitores”.

É claro que textos de orelha sempre têm algo de mercadológico, às vezes prometendo mais do que a obra pode cumprir. Talvez seja esse o caso aqui: o livro transcreve, da maneira mais fiel possível (salvo por pequenos acréscimos e correções que visam transformar um fluxo oral cheio de lacunas e gaguejos em texto escrito formal) a conversa dos dois estudiosos. O problema é que, sendo ambos versados na teoria chomskyana, o diálogo se torna por vezes hermético a quem não tenha uma boa familiaridade com o tema. Nesse sentido, o livro está longe de ser, conforme o prometido, “acessível a todos os leitores”. Mesmo linguistas experimentados e com algum conhecimento dos conceitos básicos da teoria gerativa encontrarão dificuldade de acompanhar o raciocínio dos interlocutores, que falam mais para si mesmos do que para o público leitor. Mesmo os comentários de McGilvray, inseridos a posteriori, pouco contribuem para o esclarecimento dos pontos mais específicos da explanação, sobretudo aos não iniciados.

Não tenho a pretensão de resenhar exaustivamente o livro, cuja publicação em língua portuguesa no mesmo ano de aparição do original norte-americano não deixa de ser oportuna, mas sinto-me no dever de alertar os curiosos sobre as ideias de Chomsky de que não será uma leitura fácil – e, por isso mesmo, os leigos e iniciantes deveriam começar o estudo da teoria lendo outros autores que traduzam o linguista americano em termos mais didáticos.

Em todo caso, dois aspectos chamam a atenção na obra. Em primeiro lugar, o título “A ciência da linguagem”, aliado ao enfoque dado na exposição dos argumentos, parece sugerir que foi Chomsky, com seu tratamento matemático e computacional da língua e sua sustentação do fundamento genético da linguagem, quem pela primeira vez estudou o objeto “língua” cientificamente. Isso corrobora uma certa visão, partilhada por muitos, de que só as ciências naturais são de fato ciências. Nesse aspecto, Chomsky teria o mérito de ter transformado a linguística numa ciência natural. Embora em nenhum momento seja dito explicitamente, fica a impressão de que nunca se fez ciência da linguagem antes de Chomsky e que, portanto, todos os estudos linguísticos do século 19 e primeira metade do século 20, bem como todas as pesquisas feitas fora dos Estados Unidos, são meramente “filosofia da linguagem”. Essa é uma postura um tanto típica dos pensadores americanos, um certo etnocentrismo intelectual.

O segundo aspecto a chamar a atenção diz respeito à tradução brasileira do texto, a cargo de Gabriel de Ávila Othero, Luisandro Mendes Souza e Sérgio de Moura Menuzzi. Embora se trate de três renomados especialistas em linguística aplicada, computacional, gerativa e funcional, algumas passagens do texto não fluem muito bem por falhas na tradução, como, por exemplo, traduzir taken seriously por “tomado seriamente” (a tradução mais corrente em português brasileiro seria “levado a sério”) ou current status por “status corrente” em vez do muito mais natural “status atual”. Esse literalismo da tradução pode às vezes nos roubar o foco do conteúdo ao chamar a atenção para a forma.

Mas a maior e mais imperdoável gafe dos tradutores ocorre à página 70, onde se lê: “Podemos pegar algumas partes para estudar, tal como Galileu quis fazer com aviões inclinados […]”. Aviões inclinados?!! É óbvio até a estudantes de inglês de nível básico que “inclined planes” se refere aos “planos inclinados” que Galileu usava para estudar as leis da mecânica – até porque no século 17 não havia aviões!

Em suma, trata-se de uma publicação valiosa, que resume todo o pensamento de Chomsky sobre o caráter inato e computacional da linguagem humana, desde que se tenha em mente que soará esotérica aos não iniciados, e descontadas as falhas da tradução. Mas tenha-se presente que – ao contrário do que o marketing do livro diz – é, sobretudo, uma publicação acadêmica, longe portanto de alcançar o grande público.

Texto postado originalmente em:

http://revistalingua.uol.com.br/textos/blog-abizzocchi/chomsky-e-a-ciencia-da-linguagem-338539-1.asp

http://controversia.com.br/14508?utm_source=wysija&utm_medium=email&utm_campaign=Boletim+202

 




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