Politicas fragmentadas
Educação no campo sofre com políticas fragmentadas
por Ana Luísa Vieira, do Promenino com Cidade Escola Aprendiz
Filha de agricultores da pequena São Gabriel, cidade de 19 mil habitantes localizada no sertão baiano, Eliene Novaes Rocha se inspirou na própria infância para decidir os rumos da carreira. Formada em pedagogia na Universidade Estadual de Feira de Santana, especializou-se em educação do campo. Há 20 anos, debruça-se sobre pesquisas e projetos que colocam em pauta o fortalecimento da educação na área rural em todos os aspectos.
Em um universo de 76.229 mil escolas rurais no país, 508 – a maioria delas no Norte e Nordeste – ainda sofrem com falta de energia e saneamento, segundo o levantamento Escolas Esquecidas, divulgado no ano passado pelo Instituto CNA. Há também problemas quanto à formação dos professores: 30% dos profissionais que atuam no campo não têm Ensino Superior, informa o Ministério da Educação (MEC).
À luz do novo lema do Governo Federal, “Brasil, Pátria Educadora”, a professora da Universidade de Brasília (UnB) acredita que o slogan pode ser um incentivo à educação do campo. Ela prefere, porém, o conceito de “Nação Educadora”, no sentido de alcançar escolas com realidades diferentes, que requerem, portanto, olhares distintos e políticas específicas, centradas nos mais de 6 milhões de alunos atendidos no campo.
“Mais do que do que um slogan, é preciso a gente construir na sociedade um compromisso profundo para que a educação seja, de fato, um instrumento de mudança e de transformação social”, observa, citando recentes avanços na questão da educação rural, entre eles o Programa Nacional do Campo (Pronacampo), projeto do MEC criado em 2012.
Na entrevista a seguir, Eliene esmiúça os principais temas ligados ao saber no campo. Confira.
A escola como espaço de transformação
“Temos o desafio de superar a ideia de que a escola não é um espaço de transformação. Ela é, sim, um espaço de transformação e precisa ter uma valorização muito maior do que historicamente tem. Não é um desafio só do governo federal. Quando analisamos a educação do campo, vemos que a ideia de “Pátria Educadora” pode ser um grande incentivo para que se defina, por meio dos estados e dos municípios, qual o papel desses entes na construção de uma escola do campo.”
Perspectivas para o campo
“Há o desafio de se construir um grande movimento em torno da educação no campo. Eu sou muito simpática à ideia de Nação. Talvez uma “Nação Educadora”, porque a palavra Nação dá uma ideia de identidade do povo brasileiro. Na educação do campo, nós, pesquisadores, temos adotado um discurso de que é necessário reafirmar tudo aquilo que se tem conquistado historicamente, mas é preciso ampliar os direitos. Na escola do campo, não se nega apenas uma escola de qualidade – são negados muitos outros direitos.”
Problemas a serem enfrentados
“Não dá para olhar a escola do campo e enxergar um único problema. Por isso, os movimentos sociais têm defendido uma política nacional de educação do campo. Há uma afirmação forte de que é importante ter infraestrutura. Claro que sim, mas é importante ter escolas de fato. Percebemos que, cada vez mais, a escola do campo está sendo renegada à ‘não-necessariedade’ na sociedade. São 76 mil escolas país afora, muitas delas não têm infraestrutura, muitas delas não têm energia elétrica… Dados do Pronacampo mostram isso. Há um conjunto grande de ausências. Nenhuma política pode ter um olhar único sobre a escola do campo.”
Trabalho em rede
“São necessárias infraestrutura, proposta político-pedagógica, produção de material para a escola do campo, como tem sido o PNLD Campo [Programa Nacional do Livro Didático], do MEC. Há uma série de políticas que precisam estar organizadas para se pensar essa escola – senão, cria-se a ilusão de que basta ter uma boa escola, com infraestrutura, e tudo está resolvido. Na verdade, existem ótimas escolas, com infraestrutura superadequada ao campo, mas com propostas que não dialogam com a realidade e o contexto da região. O principal problema ainda é uma ideia fragmentada de política da escola do campo. Cada um acha que resolve o problema investindo em um elemento só. Na verdade, é preciso pensar na escola do campo como uma rede, como um sistema articulado. Há propostas e demandas diferentes.”
Trabalho infantil e evasão escolar
“O debate sobre o trabalho infantil é algo muito preocupante. Várias coisas precisam ser levadas em consideração: o que é o trabalho infantil no campo? Hoje, há diferentes percepções. O trabalho que explora, que ‘contrata’ a criança para quebrar pedra, arrancar sisal, trabalhar nas carvoarias… Esse trabalho está entre as piores formas. E no campo existe uma situação mais delicada. Além da exploração do trabalho infantil, existe, também, por parte das famílias, uma compreensão de que o trabalho é fundamental para a formação da criança. Uma linha tênue entre o trabalho formativo e um trabalho explorador. A dinâmica do campo é diferente da dinâmica da cidade. No campo, a família produz o sustento. Como se dá a relação da criança com isso? Eu não estou falando do trabalho das carvoarias, mas, sim, da sutilidade do cotidiano da vida no campo, da agricultura familiar. Até onde isso vai? Qual o limite?”
Discursos equivocados
“Ainda existe a ideia de que o trabalho para a criança e para o adolescente é um elemento de dignificação, enobrece. Isso está muito arraigado nas famílias, nos gestores públicos, na mídia… Por que a classe média alta não entende que seus filhos precisam trabalhar para serem dignos? Isso é um discurso de classe, segmentado. Na verdade, é dito para o pobre que ele precisa trabalhar para ser digno. Não é dito para o rico. É uma representação de classes. Mas o filho da classe média vai para escola, para o karatê. Aí, entra o desafio: a gente discutir o trabalho infantil não como causa, mas como consequência. Na verdade, o espaço que sobra e leva a criança para o trabalho infantil no campo é o da ausência de política pública, de oportunidade, da falta de lazer, de espaços de cultura e de formação.”
Classes multisseriadas
“É um debate fervoroso. Temos educadores e organizações que contestam as classes multisseriadas, consideram que não deveriam existir, pois são sinônimo da precarização da escola do campo. Outra parte dos educadores, inclusive do campo, entende a escola multisseriada não como saída, mas como um tipo de organização possível de ser trabalhado. É uma construção pela própria posição que a escola do campo traz, um espaço demográfico onde não há turmas que se formariam série a série, pois não teria condição de contar com um professor para cada pequeno grupo de alunos. Há uma série de condições que levam a essa organização.”
Escolas da cidade x escolas do campo
“As escolas da cidade, seriadas, têm tantos problemas de aprendizagem quanto têm os alunos das escolas do campo. Não se pode dizer que é precário por ser multisseriado. É precário porque existe uma série de ausências, inclusive a ausência de uma proposta pedagógica para trabalhar com essas escolas. Há grupos discutindo que a escola multisseriada é uma estratégia possível de ser trabalhada – ela é uma realidade. Para as escolas no campo, ainda é preciso garantir que elas sejam organizadas, porque, se não fosse assim, muitas já teriam fechado e o problema seria ainda maior.”
Bons exemplos
“Há vários países que trabalham com escolas multisseriadas e parte delas opta pela escola chamada “multigrado”. Na minha pesquisa de doutorado, acompanhei a experiência da comunidade autônoma da Catalunha [Espanha]. Por lá, todas as escolas rurais, do 1º ao 5º ano, são organizadas em multisséries, com crianças em diferentes graus de aprendizado no mesmo espaço. Eles têm cinco professores que se revezam no acompanhamento da turma – profissionais que, em determinados momentos, estão com todos os alunos e em outras etapas estão trabalhando com grupos divididos. Na verdade, a multissérie, como conhecemos no Brasil, pode soar como precarização, porque parece ser o lugar da ausência dos professores, da ausência da formação adequada, da ausência do material didático. Mas existe em outros países como alternativa.”
Investimento em formação
“Parte dos professores não tem nível superior e outra grande parte tem nível superior, mas não uma formação adequada para atuar na escola do campo. Muitas vezes se associa a graduação à compreensão da escola do campo. Quando eu entrei na universidade, durante o curso inteiro, não conheci nem sequer uma escola rural. Hoje, as universidades discutem muito mais a escola do campo. Alguns programas têm se consolidado nessa direção. No Pronacampo, há uma ação chamada Procampo, um programa de apoio às licenciaturas em educação do campo que o Ministério da Educação mantém com as universidades federais. Existem 42 projetos de licenciatura em educação do campo com mais de 90 turmas em andamento. É uma nova conjuntura, há muitos projetos de pesquisa pelo Brasil e produção de material didático. Não é só a formação que vai dar conta: é a produção de material, é a estruturação da escola, o acesso, é a própria escola.”
Tecnologia como aliada
“A tecnologia na escola, mais do que uma estratégia, precisa ser percebida como um direito. As pessoas do campo não se tornam menos camponesas por terem acesso à tecnologia. É uma ferramenta fundamental para toda a educação, porque é capaz de proporcionar uma diversidade de possibilidades pedagógicas, de acesso à informação, aos dados. É imprescindível nas escolas. A informação que circula no campo ainda é muito restrita. Trata-se de uma ferramenta educativa fundamental.”
http://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/01/30/educacao-no-campo-sofre-com-politicas-fragmentadas/