Medo dos examinadores de concursos

Medo dos examinadores de concursos

Por que tenho medo dos examinadores das bancas de concursos públicos?

 

Por André Karam Trindade

Talvez o título desta coluna pudesse servir para inaugurarmos uma série aqui neste Diário de Classe. A ConJur criaria um canal através do qual os concurseiros de todo o Brasil encaminhariam questões problemáticas, bizarras, mal formuladas e nulas, fornecendo, assim, a matéria prima necessária para que pudéssemos desempenhar o devido “constrangimento epistemológico” (de que sempre nos fala Lenio Streck) dos examinadores. Penso que esta espécie de observatório crítico dos concursos públicos constituiria importante contribuição da doutrina, uma vez que auxiliaria os candidatos, ao “denunciar” — e, via reflexa, fiscalizar — as barbaridades que vem sendo exigidas nas provas aplicadas, ao menos na área do Direito, de norte a sul do país.

Vejamos um episódio recente e ilustrativo. No último domingo (25/1), em Santa Catarina, houve a prova escrita do concurso público para admissão no Curso de Formação de Oficial (CFO) da Polícia Militar, realizado peloInstituto O Barriga Verde (IOBV), que reuniu 2.688 candidatos para um total de apenas 70 vagas (65 para homens e 5 para mulheres).

Na prova de direito processual penal militar, os candidatos depararam-se com a seguinte questão (de número 45):

De conformidade com a disciplina do Código de Processo Penal Militar quanto ao inquérito policial militar, assinale a alternativa incorreta:

(a) A autoridade militar não poderá mandar arquivar autos de inquérito, embora conclusivo da inexistência de crime ou de inimputabilidade do indiciado.

(b) O encarregado do inquérito poderá manter incomunicável o indiciado, que estiver legalmente preso, por três dias no máximo.

(c) A testemunha não será inquirida por mais de quatro horas consecutivas, sendo-lhe obrigatório o descanso de meia hora, sempre que tiver de prestar declarações além daquele termo. O depoimento que não ficar concluído às dezenove horas será encerrado, para prosseguir no dia seguinte, em hora determinada pelo encarregado do inquérito.

(d) O inquérito deverá terminar dentro em vinte dias, se o indiciado estiver preso, contado esse prazo a partir do dia em que se executar a ordem de prisão; ou no prazo de quarenta dias, quando o indiciado estiver solto, contados a partir da data em que se instaurar o inquérito. Este último prazo poderá ser prorrogado por mais vinte dias pela autoridade militar superior, desde que não estejam concluídos exames ou perícias já iniciados, ou haja necessidade de diligência, indispensáveis à elucidação do fato.

Qual a resposta certa?

Segundo o gabarito preliminar divulgado no mesmo dia, a resposta certa é a letra “C”. Isto porque o examinador modificou a redação prevista no artigo 19, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal Militar, ao alterar o prazo de “dezoito horas” para “dezenove horas”, tornando, assim, o enunciado incorreto. É genial, não? A criatividade humana não tem limites. Fico imaginando a competência e a habilidade que esta questão é capaz de aferir...

Mas e a letra “B”? Por que não?

Para o examinador, que simplesmente copiou o texto do artigo 17 do mesmo Código, o enunciado é verdadeiro. O único detalhe do qual ele se esqueceu ao elaborar a prova foi que a Constituição, desde 1988, contém um dispositivo em sentido contrário: “Na vigência do estado de defesa, é vedada a incomunicabilidade do preso” (artigo 136, parágrafo 3º, IV, CF).

Como se isto não bastasse, em seu catálogo de direitos fundamentais, a Constituição assegura que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada” (artigo 5º, LXII, CF) e, igualmente, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (artigo 5º, LXIII, CF).

Tudo isto evidencia que o disposto na legislação castrense — outorgada pela junta militar provisória em 1969 — não foi recepcionado pela atual ordem constitucional. Dito de outro modo, o artigo 17 do CPPM, literalmente transcrito na letra “B” da questão nº 45 e considerado verdadeiro pelo gabarito preliminar do concurso, está revogado pela Constituição. E, portanto, a questão é nula.

Este conflito entre o texto legal e o texto constitucional revela a necessidade de se realizar uma filtragem hermenêutica-constitucional do Código de Processo Penal Militar. Na verdade, a crença na incomunicabilidade do preso militar nos termos do referido dispositivo legal revela a confusão — ainda presente nos setores mais conservadores da ciência jurídica —- entre os planos da vigência e da validade das normas.

Ocorre que, como adverte Ferrajoli, a distinção entre vigência e validade é um dos pilares da teoria jurídica contemporânea. Conforme a lição do mestre italiano, em Diritto e ragione, uma coisa é o plano da vigência, que diz respeito à existência jurídica das normas; e outra, bem diferente, é o plano da validade, no qual se verifica se as normas vigentes estão em conformidade (formal e material) com a Constituição. É por isto, aliás, que uma norma pode ser vigente, porém inválida. Trata-se, em suma, de uma distinção que fundamenta o próprio controle judicial de constitucionalidade das leis.

E não me venham, aqui, defender a validade da questão sob o álibi retórico de que, em seu comando, o examinador utilizou a expressão "De conformidade com a disciplina do Código de Processo Penal Militar quanto ao inquérito policial militar". Tal argumento levaria a acreditar que a decoreba da legislação castrense é mais importante do que o conhecimento dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, o que se mostra absolutamente temerário, especialmente quando se trata de concurso para a formação de oficiais da Polícia Militar.

Para finalizar e não deixar passar em branco: uma das razões pelas quais eu tenho medo dos examinadores dos concursos públicos se deve, precisamente, à incomunicabilidade entre eles. A prova escrita para o ingresso no Curso de Formação de Oficial é um exemplo disso. O examinador que elaborou as questões de Direito Processual Penal Militar não leu as questões de Direito Constitucional. Se o tivesse feito, teria visto que, na questão 18, indagou precisamente acerca da prisão no estado de defesa. A resposta certa, letra “C”, diz, in verbis: “Na vigência do estado de defesa a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário, sendo vedada a incomunicabilidade do preso”. De outro lado, o examinador que elaborou as questões de direito constitucional, se tivesse realizado a prova, teria errado a questão mal formulada pelo seu colega, justamente por saber a matéria! É mole? Vida difícil a de concurseiro.

 

http://www.conjur.com.br/2015-jan-31/diario-classe-tenho-medo-examinadores-bancas-concursos-publicos




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