Ensina-se comportamento

Ensina-se comportamento

Conselho Nacional 
de Educação estuda implementar o ensino 
de competências socioemocionais 
como perseverança 
e autocontrole

Segundo experiência canadense, as aptidões emocionais devem ser integradas às demais disciplinas

Ensina-se comportamento

Por Thais Paiva

Conscienciosidade, amabilidade, extroversão, abertura e estabilidade emocional. Se a escola pretende adequar-se aos desafios do sé-
culo XXI, deverá ensinar e avaliar esses cinco domínios da personalidade humana. Essa é a proposta do Instituto Ayrton Senna por meio de um projeto realizado em parceria com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as secretarias de Educação do Rio de Janeiro. Batizado de Social and Emotional or Non-cognitive Nationwide Assessment (Senna), o teste é o primeiro instrumento brasileiro de medição de competências chamadas socioemocionais em larga escala no ambiente escolar.

Composta de um questionário socioeconômico e outro sobre características de autopercepção, a avaliação foi aplicada em um projeto piloto a 25 mil crianças da rede estadual do Rio de Janeiro, em outubro de 2013. Segundo a secretaria, os alunos mais responsáveis, focados e organizados aprendem em um ano letivo cerca de um terço a mais de matemática do que os colegas com essas competências menos desenvolvidas. A mesma diferença é detectada entre alunos com maior e menor nível de autonomia quando observado o desempenho em português.

As competências socioemocionais ou não cognitivas são comportamentos e sentimentos individuais que podem ser definidos como uma tendência a responder de determinada forma em certos contextos e situações cotidianas, como gerir emoções, estabelecer e atingir objetivos, trabalhar em equipe e enfrentar situações adversas. Para o instituto, tais habilidades são um caminho eficaz para fechar as lacunas educacionais presentes no País e alavancar a aprendizagem. “Pesquisas em diversas áreas revelam que o desempenho cognitivo dos alunos é beneficiado quando esse grupo de competências é desenvolvido de forma intencional”, explica Daniela Arai, analista de projetos de Avaliação e Desenvolvimento do Instituto Ayrton Senna. 

Segundo Daniela, as aptidões socioemocionais são tão importantes quanto as cognitivas para a obtenção de bons resultados na escola, e tão ou mais importantes que elas para o sucesso no trabalho e na vida. “Elas importam em si mesmas, pois são valorizadas, culturalmente, pelas famílias e comunidades. São essenciais para a aprendizagem na escola, pois aumentam a média de aprendizado e reduzem as desigualdades dentro dos sistemas, e têm impacto em diversos resultados da vida como renda, saúde, sentimento de felicidade e participação cívica”, diz.

Para a psicopedagoga Anita Lilian 
Zuppo Abed, autora de um estudo-base sobre o tema encomendado pela Unesco, o desenvolvimento das competências socioemocionais na escola é essencial para preparar os alunos para conviver, respeitar e aprender com as diferenças e adversidades. “Essas habilidades sempre foram importantes. A diferença, agora, é que queremos que o educador tome como função própria despertar essas motivações nos alunos”, explica.

Anita acredita que a discussão em torno da importância dessas aptidões deverá enriquecer o papel da escola, enquanto formadora de indivíduos mais plenos. “Não estamos mais pensando as emoções como algo que atrapalha o ensino, mas como algo que promove a aprendizagem”, explica.

Para Daniela Arai, é preciso, entretanto, transpor a discussão para a prática, criando políticas públicas que prevejam o desenvolvimento das competências socioemocionais nas escolas. “Significa atrelá-las ao currículo, à formação dos profissionais, estrutura da escola, avaliação e, claro, legislação”, comenta Daniela.

No Canadá, por exemplo, a rede de ensino do distrito de Ottawa-Carleton, que conta com cerca de 70 mil alunos, começou a integrar as habilidades não cognitivas ao currículo escolar há cerca de dez anos. Para isso, as salas de aula tradicionais deram lugar a espaços mais flexíveis, onde os trabalhos em grupo são priorizados. As atividades são planejadas de forma a estimular o protagonismo, a colaboração e a interação entre estudantes e professores e com um olhar mais atento às especificidades de cada estudante. Além disso, os conteúdos das disciplinas tradicionais passaram a apresentar uma nova abordagem.

“Em uma aula de História, nosso foco não está em ensinar datas, nomes. Para saber essas informações, os alunos têm à disposição a internet que acessam via seus smartphones. O tipo de instrução que tentamos passar é, por exemplo, como os líderes canadenses trataram a resiliência nos diferentes contextos nos quais se destacaram”, explica Jennifer Adams, secretária de Educação do distrito, que acredita que não se trata de criar espaços nas grades curriculares voltados para o desenvolvimento dessas aptidões, mas de integrá-las ao ensino das demais disciplinas.

Outro ponto, segundo Jennifer, é reconhecer nas competências socioemocionais um instrumento para trabalhar a diversidade das salas de aula. “Em nossa rede, sabemos que os alunos vão ter necessidades diferentes e acreditamos que desenvolver essas habilidades é muito importante para fechar esse gap, contribuindo para o bem-estar das turmas.” O propósito, diz, não é só incentivar aptidões para o sucesso profissional, mas para o sucesso na vida cotidiana daquele indivíduo. “Diria que ainda estamos nas etapas iniciais de implementação, mas estamos avançando. No momento, estamos trabalhando em uma plataforma onde os professores poderão compartilhar informações e entrar em contato com os estudantes”, conta.

No Brasil, o tema está sendo discutido, desde o início do ano, na Câmara de Educação Básica, relata o professor Francisco Cordão, membro do Conselho Nacional de Educação. “Estamos debatendo como isso será incorporado aos currículos, como estsas competências serão articuladas às diretrizes curriculares nacionais”, decalra. Cordão adianta, entretanto, que a ideia não estará na reserva de horários nas grandes para trabalhar tais competências. “Essa não é a proposta. A hora que isso virar disciplina acaba. O estímulo dessas habilidades tem de ser integrado ao ensino das demais disciplinas. Por uma questão de metodologia, fazemos essa distinção entre saberes cognitivos e socioemocionais, mas na prática tem que estar junto”, explica.

Para Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da USP, é questionável a necessidade de ensinar e avaliar as aptidões socioemocionais. “Algumas dessas competências que estão listadas são de fato importantes, porém fico receoso com os interesses subjacentes. Um aluno responsável é ótimo, mas também não é importante ter alguma rebeldia? Quem disse que isso é ruim? Minha preocupação é querer ensinar coisas que, no fundo, têm a intenção de domesticar a juventude”, alerta.

Outro problema refere-se ao papel do educador dentro deste novo contexto. “Primeiro, estamos, mais uma vez, sobrecarregando a escola. Segundo, como o professor ensinará essas competências? Há clareza para isso? Por exemplo, um professor pode afirmar que determinado aluno tem ‘consciência suficiente’? Nesse momento, os valores do educador podem se chocar com os do aluno”, diz. Para Ocimar, além dessas ressalvas, o principal risco é a escola incorporar as habilidades socioemocionais como uma nova roupagem para avaliar o comportamento dos estudantes. “Voltaremos à velha prática de dar nota para comportamento, participação e disciplina? Seria um retrocesso”, ressalta. 

Publicado na edição 63, de novembro de 2014

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