Entre o mérito e a culpa
Políticas que responsabilizam os professores e escolas pelos resultados de aprendizagem dos alunos dividem gestores e educadores
Ao oferecer melhorias no pagamento de poucos, o bônus mantém a maioria com baixos salários
Por Thais Paiva
De raiz política e comumente utilizada em ambientes corporativos, a meritocracia define-se como a escolha ou promoção de alguém conforme seus méritos e competências. Na última década, entretanto, o conceito alargou-se e aparece incorporado ao discurso e à prática dos mais diversos setores. Na Educação, os resultados pífios do Brasil em avaliações nacionais e internacionais reacenderam o debate em torno da validade de responsabilizar escolas e professores pelos resultados da aprendizagem de seus alunos, ou seja, a implementação de uma política de bonificação ou premiação baseada no cumprimento de metas de desempenho.
Redes estaduais como Pernambuco, Ceará, São Paulo, Minas Gerais e municipais como Rio de Janeiro (RJ), Sobral (CE) e Foz do Iguaçu (PR) são exemplos de gestões que, na última década, implementaram estratégias de responsabilização como forma de impulsionar os resultados e qualidade do ensino público. De forma geral, as secretarias utilizam indicadores externos de qualidade, como avaliações padronizadas, para estabelecer as metas das escolas. Variáveis, estas costumam ser fixadas conforme o contexto e a trajetória de cada unidade. Se a meta é cumprida ao final do ano, a escola e todos os seus funcionários recebem um bônus ou prêmio. Em caso de não cumprimento, o estabelecimento passa por um programa de acompanhamento e intervenção pedagógica.
A adoção de políticas meritocráticas ou de responsabilização na educação, entretanto, divide opiniões. De um lado, gestores defendem a prática ao afirmar que esta é a maneira mais justa de detectar e reconhecer os profissionais mais empenhados em seu ofício. De outro, educadores e pesquisadores apontam os prejuízos consequentes da competição criada entre escolas e docentes, da concepção mercadológica da educação, além da bonificação como uma “pseudovalorização” da carreira.
Para Maria Helena Guimarães de Castro, ex-secretária de Educação de São Paulo entre 2007 e 2009 e ex-presidente do Inep, as políticas de responsabilização são desejáveis, pois reconhecem o esforço dos professores e equipes mais dedicados no desenvolvimento do projeto pedagógico da escola. “É uma maneira de sinalizar aos professores que o trabalho da equipe será mais reconhecido e valorizado de acordo com o cumprimento de metas definidas”, explica. Outra prática comum nos sistemas meritocráticos defendida por Maria Helena é considerar, além de elementos tradicionais como tempo de serviço e titulação, critérios como dedicação aos cursos de formação continuada, número de faltas e resultados dos alunos nas avaliações externas como decisivos para a promoção na carreira docente.
Apesar de serem vagos os resultados apontados por pesquisas que acompanharam a implementação desse tipo de política, Maria Helena acredita que o bom desempenho das redes que a adotam em avaliações externas como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é prova de que o sistema funciona. “Segundo os resultados do Ideb, Minas Gerais tem o melhor sistema de Ensino Fundamental do País e Sobral apresenta resultados magníficos que se destacam na Região Nordeste e no Brasil”, diz.
A rede mineira utiliza critérios de meritocracia na educação desde 2007 e foi uma das primeiras no País a adotar esse tipo de sistema. Segundo Ana Lúcia Gazzola, atual secretária de Educação, as metas são compactuadas de forma democrática e contemplam duas diferentes dimensões: qualidade (resultados de desempenho dos alunos nas avaliações externas) e inclusão. “Não é uma meritocracia fria. Sugerimos a meta, mas a escola pode negociar”, diz Ana Lúcia. Para evitar fraudes, as metas contemplam um avanço global da escola e, ao mesmo tempo, uma redução de seu baixo desempenho. “Isso evita, por exemplo, que um diretor só queira matricular alunos que já têm bom desempenho para atingir a meta”, explica.
No município do Rio de Janeiro, as metas das escolas estão atreladas ao desempenho na Prova Brasil e na Prova Rio. Os funcionários das escolas que atingem ou superam a meta recebem um 14º salário e as escolas mais bem posicionadas no ranking interno ganham ainda viagens a Nova York. “O que a gente quer é que cada uma avance dentro da sua realidade. Então, não fica uma escola competindo com a outra, mas consigo mesma”, diz Helena Bomeny, secretária de Educação do município, que acredita que a estratégia contribui para que todo o grupo escolar se una em torno de um objetivo comum. “Não só porque querem que seus alunos aprendam, mas porque, se isso acontecer, terão essa bonificação”, diz.
Na rede estadual de São Paulo, a política de valorização por mérito ocorre desde 2008. Se atingida a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp), um bônus no valor de 2,4 salários é distribuído para todos os funcionários da escola. Se superada a meta, o limite do bônus é de 2,9 salários. “Mesmo nos casos em que a escola não atinge a meta ela ganha uma quantia referente ao seu avanço. Por exemplo, se avançou 50% da meta, o bônus é de 1,2 salário”, explica Maria Elizabete da Costa, coordenadora da Gestão da Educação Básica da Secretaria. Para receber a bonificação, os professores devem ter atuado, no mínimo, em dois terços do ano. No caso de faltas, há desconto proporcional no valor do benefício.
Outro fator levado em consideração em São Paulo é o contexto socioeconômico da escola. Um índice que varia de 0 a 10 computa a situação socioeconômica dos estudantes, como renda mensal familiar e casa própria, entre outros. Esse fator é acrescido aos atuais índices e multiplicado por aquele que tiver o maior número: o Idesp da escola em relação à rede estadual ou se a unidade alcançou ou não a meta estabelecida. O maior prevalece. “Percebemos que esse tipo de política tem ajudado essas escolas a traçar planos de ação mais efetivos”, diz Maria Elizabete.
O outro lado
Se, no Brasil, as políticas meritocráticas parecem ganhar força e terreno, no exterior uma das mais emblemáticas experiências com estratégias educacionais de responsabilização – a rede pública dos Estados Unidos – começa a dar sinais de fracasso após 20 anos de implementação. Antes uma grande defensora da meritocracia, Diane Ravitch, secretária-adjunta de Educação no governo George W. Bush (2001-2009), mudou radicalmente de perspectiva ao notar os efeitos perversos do modelo. No livro Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano, lançado em 2011, Diane explica detalhadamente como a testagem padronizada e a responsabilização punitiva comprovaram-se ineficazes e agravaram ainda mais a crise na educação pública americana.
Segundo a especialista, os mecanismos que premiavam os professores com adicionais em seus salários a partir do bom desempenho dos alunos levaram os docentes a, muitas vezes, burlar os resultados dos testes. Em Atlanta, no estado norte-americano da Geórgia, uma investigação revelou que 44 das 56 escolas públicas do distrito fraudaram os resultados dos testes referentes a 2009, apagando e corrigindo respostas dos alunos. Estima-se que ao menos 178 professores e dirigentes estavam envolvidos no caso, considerado o maior escândalo do tipo no país, motivados, principalmente, pelo bônus atrelado ao bom desempenho dos estudantes.
Além desse tipo de intervenção extrema, as escolas passaram a treinar seus alunos para responderem à testagem com êxito, em detrimento de uma formação consistente em todas as áreas do conhecimento. “A testagem, eu percebi com desgosto, havia se tornado uma preocupação central nas escolas e não era apenas uma mensuração, mas um fim em si mesma”, conta.
No Brasil, as gestões educacionais baseadas na meritocracia também encontram desaprovação. Para educadores e entidades docentes, as políticas de responsabilização, longe de promover justiça e valorização na carreira, corroem a possibilidade de ofertar qualidade para todos, inserindo no ambiente escolar a lógica mercadológica da competição, na qual, para que alguns se destaquem, outros precisam ser ofuscados. Além disso, ao oferecer pífias melhoras no pagamento de poucos por meio de bônus e prêmios, acaba mantendo a grande maioria com os baixos salários. “Não dá para tentar resolver a ausência de uma política salarial com esse faz de conta de valorização do professor, que é dar bônus no fim do ano”, critica Maria Izabel Azevedo Noronha, presidenta do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
Segundo Maria Izabel, esse modelo leva ao raciocínio de que o docente é o único responsável pelo sucesso ou fracasso do aluno, mesmo que não tenha possibilidades reais de alterar as condições de precariedade da escola em que leciona. “É uma política de culpabilização. A culpa é do professor e da equipe da escola, menos do gestor da rede que, na verdade, é a pessoa com mais poder para alterar uma política educacional”, diz.
Ocimar Alavarse, pesquisador e professor da Faculdade de Educação da USP, acredita que distribuir bônus e prêmios para professores baseado nos resultados dos alunos é um abuso estatístico grande. “Primeiro, porque não tenho a menor ideia de qual foi a participação efetiva daquele professor no resultado final da escola. Segundo, porque aquele resultado do estudante, que é uma média aritmética, é fruto de outros fatores que não necessariamente estão relacionados ao trabalho do professor”, explica Ocimar, referindo-se a fatores extraescolares, como o nível socioeconômico do aluno, a escolaridade dos pais, as oportunidades e a infraestrutura da escola, entre outros.
Outro grande entrave apontado pelos especialistas é que a própria desigualdade inerente às escolas de uma mesma rede, tanto em termos de investimento quanto de infraestrutura, colocaria aquelas mais vulneráveis em uma situação de desvantagem inicial. Nessa perspectiva, as metas e as consequentes bonificações aprofundariam ainda mais as diferenças, contribuindo para a exclusão e a marginalização das unidades com os quadros mais desafiadores.
Além disso, assistiríamos a um movimento de migração dos professores para as escolas mais bem avaliadas, a fim de conseguir melhores bônus no fim do ano. Como consequência dessa rotatividade do corpo docente, mais instabilidade no ensino e, consequentemente, na aprendizagem dos alunos. “O mais importante dentro da escola pública é garantir que, apesar das diferenças, todas as crianças tenham as mesmas oportunidades. Mas com essa política temos justamente o contrário: exclui-se e estigmatiza-se cada vez mais algumas regiões da cidade”, aponta Cleuza Repulho, presidenta da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e secretária de Educação de São Bernardo do Campo.
Para Maria Helena de Castro, as críticas são infundadas. Segundo ela, não se trata de responsabilizar o professor ou a escola, mas de assegurar condições adequadas de trabalho e de funcionamento à rede pública, definir um projeto pedagógico alinhado ao currículo do estado ou do município e cobrar resultados. “Todos são responsáveis, os gestores, os dirigentes, os coordenadores pedagógicos, os alunos e seus pais, que devem participar e cobrar resultados da escola. O professor não é um coitadinho, vítima das circunstâncias nas quais atua. Cabe também aos professores cobrar condições adequadas de trabalho, remuneração, carreira”, diz.
Saiba mais
LIVRO
Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano, de Diane Ravitch (Sulina, 2011).
Publicado na edição 64, de dezembro de 2014
http://www.cartafundamental.com.br/single/show/346