Amarras dos sistemas
Sistemas de ensino particulares adquiridos por prefeituras elevam Ideb, mas engessam currículo, professores e até mesmo gestores públicos
Apostilas custam mais caro e não são avaliadas por especialistas como os livros didáticos do MEC
Por Cinthia Rodrigues
A adoção de sistemas de ensino apostilados por municípios agrada às famílias pelo uso de marcas reconhecidas no meio educacional e, frequentemente, resulta em elevação do Índice da Educação Básica (Ideb). Em teoria, facilita também o trabalho dos educadores ao planejar as aulas com todos os textos e exercícios a serem feitos em todas as disciplinas em todas as escolas. O fio condutor da padronização, no entanto, causa um efeito colateral explícito no discurso de alunos, professores e gestores das prefeituras que fizeram a escolha: amarras.
Em todo o Brasil, 142 dos 5.570 municípios abriram mão totalmente do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), responsável por distribuir as obras gratuitamente, conforme a escolha dos professores. No estado de São Paulo, um em cada quatro municípios substitui os livros gratuitos por apostilas de sistemas particulares em ao menos uma das etapas de ensino.
Jaguariúna, a 120 quilômetros da capital paulista, é uma dessas cidades. Em 2010, aderiu ao Aprende Brasil, da Positivo, um dos mais adotados pelas prefeituras, ao lado dos sistemas Objetivo e COC. A cidade, que tem Produto Interno Bruto por pessoa maior que o dobro da média do País, paga 2 milhões de reais por ano pelo serviço que, além dos cadernos, dá acesso a um portal online e a duas formações de professores por ano.
As primeiras palavras de estudantes, educadores e gestão educacional são elogiosas. “Gosto dos exercícios de matemática”, diz uma aluna. “Para o ciclo 1 ajudou muito a ter ideias do que trabalhar”, conta a professora de inglês. “Os pais adoram”, afirma o secretário de Educação. Bastam poucos minutos de conversa, no entanto, para aparecerem os poréns que o sistema de ensino apostilado traz para cada um.
A estudante, Maria Eduarda Bizzo, 13 anos, conta que gosta dos exercícios em série propostos, mas só de matemática. “Não gosto de português, de procurar adjunto, advérbio, acho chato”, conta. E de escrever? “Adoro, mas redação só tem no fim do bimestre”, conta, evidenciando a falta de possibilidade de explorar o estudo conforme os interesses de cada grupo. “Às vezes a gente pede e a professora propõe outro, mas aí é algo rápido para não atrasar o restante”, conclui abraçada ao livro, com capa customizada com foto do parque que é cartão-postal da cidade.
No 3º ano com o sistema, a professora de inglês Cibele Borges, de 32 anos, conhece tão bem os exercícios que segue a aula sem sua própria versão do livro. Ela elogia o material do primeiro ciclo do Ensino Fundamental, etapa para a qual teve menos formação específica na faculdade, mas diz que o mesmo não vale a partir do 5º ano. “Algumas turmas de certas escolas acompanham, mas a apostila pressupõe um conhecimento prévio que a maioria não teve. Tem sala em que ninguém está pronto para os exercícios que o sistema propõe, é inviável”, diz.
Nestes momentos, ironicamente, Cibele recorre às amostras de livros didáticos que a escola recebe do Ministério da Educação para escolha das obras. “Adapto, copio, trago para os alunos para tentarmos resgatar a partir de um ponto em que caminhem”, comenta a professora, que começou a trabalhar na rede em 2012 e, portanto, teve toda a formação continuada feita após a adesão ao sistema por Jaguariúna.
O coordenador pedagógico da Escola Municipal Irineu Espedito Ferrari, Renato do Nascimento, lembra que existe o portal online para dar apoio e formações feitas pelos profissionais da editora, mas elas ocorrem duas vezes por ano e ocupam meio período. “Elas focam em formas de trabalhar com o próprio material deles.”
As amarras ganham outra dimensão na Secretaria Municipal de Educação de Jaguariúna. “Quando se adota o apostilamento, é muito difícil sair”, admite o secretário José Roberto Chiavegato, que assumiu em 2013 o contrato firmado pelo gestor anterior. Quando chegou, o Ideb havia subido de 5, em 2009, para 5,7, em 2011, no final do ciclo 1, e de 5,9 para 6,6, no ciclo 2. Em 2013, a nota repetiu-se entre os mais novos e caiu dois décimos entre os mais velhos. “Percebi que muitas escolas pediam aos alunos com mau rendimento para não fazerem a prova. Reverti isso e o resultado foi mais realista”, explica.
Ele conta que vê algumas vantagens no apostilamento para a rede. “Temos muitos professores em licença e fica mais fácil, para quem entra, continuar. As transferências também acabam sendo mais sossegadas, porque todas as escolas usam a mesma apostila no mesmo bimestre”, afirma, acrescentando que, ainda assim, acha um desperdício. “A verdade é que deixamos de ter dinheiro para outras questões e estamos cada vez mais atrelados ao sistema”, diz.
A primeira questão a vencer, segundo ele, seria política. Cerca de 80% da população tem avaliação positiva sobre as apostilas. “O prefeito que tiver interesse político não tira”, especula. Depois, a formação dos professores após anos de uso do sistema fica apoiada nas apostilas. “A esta altura, ninguém mais quer saber de planejar cada aula, desenhar o bimestre inteiro. Teve uma acomodação. Muitos não saberiam mais fazer”, lamenta.
Por último, ele conta que é refém das dívidas com a Positivo. Quando assumiu, havia 1,1 milhão de reais em pagamentos atrasados, relativos a 2012. A empresa, porém, aceitou continuar entregando os materiais, mediante pagamento de 2013. Em meados de 2014, Chiavegato recebeu um ultimato para pagar o valor pendente. “Disseram que se eu não pagasse, não chegariam as apostilas do último bimestre. Fiquei sem ter o que fazer e parcelei em 20 vezes”, confessa, consternado. A dívida acaba em 2016, perto das novas eleições municipais.
A coordenadora nacional do Sistema de Ensino Aprende Brasil, Elen Goulart, afirma que o comunicado da suspensão da entrega de material é uma “medida extrema”, que só ocorreu em mais uma das 250 cidades atendidas, após seguidas tentativas de negociação. “É comum, com a mudança de gestão, haver suspensão do pagamento. De um lado acho bastante saudável querer olhar os documentos e checar a entrega do serviço, mas depois dessa constatação, temos de cobrar.”
Autora de mestrado sobre o assunto na Universidade de Campinas (Unicamp), Luciana Sardenha Galzerano diz que o aspecto comercial é um dos motivos pelos quais os pesquisadores se opõem ao sistema. Outro é a falta de atendimento às especificidades de cada escola e aluno, mas o principal é a falta de avaliação do material.
Os livros selecionados para o PNLD passam por uma banca de examinadores, composta de especialistas em cada área. Alguns são barrados por falta de qualidade e o restante é encaminhado para escolha das escolas com diferentes recomendações. “No caso dos sistemas didáticos ninguém da educação é ouvido. Eles vão direto ao prefeito e vendem os resultados com simples propaganda”, acusa.
Em sua pesquisa sobre como os professores lidam com o material, ela encontrou número parecido de educadores favoráveis e contrários aos sistemas. O que mais chamou atenção, no entanto, foi a quantidade de professores que não quiseram opinar durante as entrevistas: 57%. “Eles não são envolvidos na adoção e passam a ter medo de falar sobre o assunto”, comenta.
O silêncio, registrado por Luciana na dissertação de 2011, começa a ser rompido em algumas redes. Em 2014, os professores de Diadema, na Grande São Paulo, fizeram uma carta em repúdio ao Sistema Sesi que a prefeitura adquiriu por 9 milhões de reais. Após testar o material por alguns meses, eles denunciaram à comunidade que “os conteúdos não estão de acordo com as necessidades de aprendizagem referentes à idade, tampouco com os recursos disponíveis na escola”. Em resposta, a prefeitura afirmou que reveria o contrato para 2015.
A professora Mislene Inocêncio Pereira, diretora da Educação no Sindicato dos FuncionáriosPúblicos de Diadema, afirma que um dos motivos de decepção dos educadores foi não receber o material escolhido no programa do Livro Didático. “O material tinha vários problemas, era um claro refugo, inclusive com calendário a partir de 2010, e pressupunha um acesso à internet que não condiz com a realidade dos alunos, mas mesmo do que fosse excelente, ninguém melhor do que os professores para escolher, entre livros bem avaliados, os que se prestam melhor para a sua prática de ensino”, defende.
Em Valinhos, também no interior paulista, uma votação foi feita entre os professores, em 2013, sobre a continuidade ou interrupção do uso de sistemas, que lá eram adotados há seis anos. O contrato foi cancelado, após 80% dos educadores votarem contra o apostilamento. Os argumentos foram o currículo amarrado e o desperdício de 9 milhões de reais com material que poderia ser substituído pelo gratuito do MEC.
A doutora em Educação pela PUC-SP, Célia Cassiano, questiona os altos valores cobrados. Autora do livro O Mercado do Livro Didático no Brasil do Século XXI, ela contesta os serviços adicionais de formação e aulas onlines, como superficiais e constata que as apostilas custam mais que o dobro dos livros comuns. “Aos poucos as editoras passam a cuidar dos eventos de formação e privatizam a gestão da escola pública em favor de seus interesses de empresa”, diz.
Para a coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional da Unicamp, Theresa Adrião, abandonar livros que passam por rigoroso processo de avaliação técnica em favor de sistemas deveria ser “improbidade administrativa”. Para ela, a elevação no Ideb está mais relacionada à renda das famílias e às políticas internas das escolas. Ela aponta casos em que até as folhas em branco para construção do portfólio dos estudantes são vendidas. “Se for pensar em termos de gestão é preciso questionar quanto custa e se isso não poderia ser feito pela rede”, diz.
O secretário de Jaguariúna concorda. Segundo ele, a cidade, que já teve dinheiro para implantar bibliotecas interativas, uniformes completos e lousas digitais, agora está com dificuldades até para repor lençóis nas creches. “A gente fica à mercê, submisso.”
Publicado na edição 64, de dezembro de 2014
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