Angola nos Trilhos da Independência
As memórias da guerra no documentário “Angola nos Trilhos da Independência”
O projecto Angola nos Trilhos da Independência tem atiçado a curiosidade de muita gente. Foram 57 meses, 900 horas de material audiovisual recolhido em território angolano e internacional, cerca de 700 depoimentos de protagonistas da luta anticolonial. Tudo isto destinado a preservar a memória de um período na História que diz respeito a Angola e à luta de todos os povos sob ocupação colonial cujas memórias padecem ainda de ser registadas e pensadas.
por Marta Lança no jornal Rede Angola
Uma epopeia de grande fôlego que implicou um sem fim de viagens, adversidades, muita poeira e entusiasmo. Nela, a equipa (e, futuramente, nós) ficou a conhecer um país sob todas as suas diversas camadas: campo, cidade, interior, litoral, etnias, línguas, idades e modos de vida.
Muitas personagens cujos testemunhos foram gravados, já morreram entretanto, o que demonstra a urgência deste projecto cujo resultado sai este ano na senda das comemorações dos 40 anos da Dipanda.
O general Paulo Lara foi, com a associação Tchiweka, o mentor dos Trilhos da Independência. Mas esta aventura não seria possível sem a dedicação, competência e curiosidade dos jovens da Geração 80: Mário Bastos, Jorge Cohen, Tchiloia Lara e Kamy Lara.
Nascido no ano do famoso manifesto do MPLA (1956), no seio de uma família em tudo implicada na causa nacionalista, Paulo Lara andaria com o pai (Lúcio Lara) por lugares estratégicos da luta: Guiné-Conacry, Alemanha, Marrocos, Léopoldville, chegando a conhecer Amílcar Cabral e muitas peças-chave envolvidas nesta guerra. Também ele foi, durante dois anos, guerrilheiro nas matas de Cabinda. Já em pleno século XXI continua a surpreender-se pelo museu vivo que este assunto vai urdindo. Conta-nos pormenores sobre um projecto tão megalómano como fundamental.
Como e quando surgiu a ideia de recolher estes testemunhos sobre a luta anticolonial?
A ideia deste projecto surgiu na esteira do trabalho da Associação Tchiweka de Documentação, que criou as bases necessárias para o arquivo e conservação de diferentes tipos de materiais históricos, para consulta organizada de livros e documentos do período da luta de libertação, como instituição de utilidade pública.
O crescente surgimento de mais publicações de investigação e memórias, um clima mais sereno depois de um largo período de confrontações, e a idade geralmente avançada dos actores do período da luta de libertação, tornavam não só urgente como oportuna a recolha de testemunhos daquele período.
Após um adiantado trabalho de pesquisa, realizado ao longo de anos, em 2009 surgiu-nos a ideia de um projecto abrangente de recolha de memórias de pessoas, sem distinção de filiação partidária ou religiosa, ligadas directa ou indirectamente à luta de libertação, nacionais ou estrangeiros em diferentes províncias e países, aproveitando para assinalar locais de importância histórica e culminando com a apresentação de um documentário seis anos depois nas comemorações do 40º aniversário da nossa independência. Mas ter ideias é muito bonito. A sua materialização é um pouco mais complicada e delicada…
Como conseguiram concretizá-la?
Se já possuíamos o material de base para a investigação, faltava-nos tudo o resto: uma equipa de trabalho, um apoio profissional em investigação histórica, o material e o financiamento. Ao pesquisar um pouco o nosso mercado, e fazia questão de trabalhar principalmente com angolanos, preferencialmente jovens, os montantes que me iam surgindo eram simplesmente assustadores, com a agravante de uma disponibilidade reduzida de tempo por parte do pessoal técnico existente – quando o trabalho idealizado obrigava a tempo integral. Foi durante estas pesquisas que surgiu a proposta dos que viriam a integrar a Geração 80 (o Jorge Cohen [produtor], o Mário Bastos [realizador] e a Tchiloia Lara [relações públicas]) predispondo-se todos a aderir ao projecto em 2010, deixar o trabalho que realizavam e, sobretudo, participar nos riscos do primeiro ano de trabalho em que as possibilidades financeiras ainda eram uma incógnita. A este grupo veio juntar-se a Kamy Lara (imagem), a Conceição Neto (consultora de História), a Paula Simons (consultora de comunicação) e o Manuel Paim (técnico).
Que estratégia guiou prioridades na recolha de depoimentos?
O objectivo das entrevistas era recolher de uma forma abrangente, sem distinção de organizações política, religiosa ou outras, mas igualmente sem distinção de grau de responsabilidades. Tínhamos uma lista prévia de pessoas a entrevistar que se foi enriquecendo ao longo das entrevistas e em função das nossas deslocações. Até ao momento contamos com 671 pessoas entrevistadas e um total de 894 horas gravadas e filmadas. Em Angola, das 527 entrevistas realizadas, 37% foram em Luanda e 63% nas outras províncias. A experiência foi-nos ensinando que de nada valia estarmos amarrados a prioridades, mas sim à disponibilidade das pessoas. Esse foi um dos problemas que tivemos em quase todas as cidades angolanas. Já no interior do país, nas aldeias e municípios foi mais fácil obtermos a colaboração das pessoas.
E conseguiram abarcar pessoas de várias tendências políticas?
Até ao momento, de todos os entrevistados, mais de metade foram do MPLA, 105 foram da FNLA e 53 da UNITA. Os restantes de outras organizações ou pessoas independentes.
Há que salientar também a obtenção de valiosos testemunhos nas nossas deslocações a outros países como Cabo Verde, Cuba, França, Ghana, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, Zâmbia…
Não tivemos tempo de estabelecer um levantamento estatístico mas geralmente encontra-se numa média entre os 60-70 anos, com algumas excepções dos que eram crianças na altura.
Os testemunhos provêm de dirigentes e protagonistas mas também de figuras mais anónimas.
As testemunhas foram heterogéneas. Desde presidentes, ou ex-presidentes, como o Pedro Pires, Aristides Pereira (já falecido), Joaquim Chissano, Kaunda; de importantes dirigentes da luta como os generais Dino Matrosse (MPLA), Samuel Chiwale (UNITA) ou Tonta Afonso (ex-FNLA); de eminentes figuras como o Bispo Emílio de Carvalho ou o Reverendo Chipenda; de figuras internacionais como Osmany Cienfuegos, Jacques Vergès (já falecido), da ex-Revolta do Leste e ex-Revolta Activa; até simples combatentes que representam a grande maioria dos entrevistados.
Que tipo de informações foram descobrindo?
Tivemos a oportunidade de aprofundar dados sobre, por exemplo, a famosa “Operação Macaco”, sobre os lendários “Ferraz Bomboko”, “Pedro Vida”, “Kwenha” ou “Samuimbila”…. Enfim, foram várias as informações que vieram enriquecer a nossa história e que merecem ser estudadas e aprofundadas.
Em que condições preparava as entrevistas?
O trabalho que realizamos não é académico, em que o investigador tem um tema de trabalho pré-definido e as suas perguntas incidem fundamentalmente na busca de dados sobre este tema. No nosso caso, havia que aproveitar a história de vida de cada um dos entrevistados para explorar ao máximo a sua presença em acontecimentos por nós já predefinidos como objectos de investigação. Quando se tinha um conhecimento biográfico prévio da pessoa a entrevistar, tornava-se mais fácil preparar previamente as perguntas necessárias. Mas a maior parte das vezes, foram entrevistadas pessoas que pouco conhecíamos e sem dados dos mesmos. Ao escutarmos a sua história de vida íamos aprofundando os dados que nos interessavam.
Como considera essa perspectiva biográfica na grande narrativa da História?
As histórias de vida deverão merecer muita atenção por parte dos historiadores por todas as implicações subjectivas relacionadas com a própria memória, os interesses pessoais, o momento em que foi feita a entrevista etc… Mas isso são aspectos que já dizem respeito a quem irá usar essa documentação, e não é disso que se trata actualmente. Mas não há dúvida que as histórias de vida são uma componente importante da narrativa da História.
O objecto final é um filme, uma série? Poderemos aceder às entrevistas na íntegra?
O objecto final é, por um lado, a apresentação de um documentário baseado no trabalho realizado até ao momento e que servirá não só para estimular a nova geração sobre o período da luta de libertação como para divulgar também os produtores ATD e G80, bem como os patrocinadores. Mas tem igualmente por objectivo, e mais importante ainda, a criação de um arquivo audiovisual que, logo que organizado e com as instalações apropriadas, poderá ser consultado e usado pelo público, salvaguardando-se alguns depoimentos que, por orientação do entrevistado, total ou parcialmente, só serão disponibilizados em tempo acordado com o mesmo.
Como foi trabalhar com a Geração 80, numa vivência intergeracional destes assuntos?
Foi uma experiência muito interessante. Evidentemente que no primeiro ano houve algumas dificuldades de compatibilidade no trabalho e o surgimento de algumas contrariedades, mas que eram absolutamente naturais num período de adaptação. Mas não é comum encontrar-se hoje em dia jovens profissionais, com capacidade e qualidade de trabalho, que aceitam estar vinculados a tempo inteiro durante seis anos a uma tarefa que, não obstante ser uma forma de projectar o nome da produtora (a Geração 80), limita grandemente a sua margem de trabalho.
Foram-se adaptando às contingências no terreno?
Sendo “meninos da cidade”, foi agradavelmente surpreendente a maneira como se integraram perfeitamente com as populações no interior do país, adaptando-se às diferentes comidas, às adversidades de alojamento e a terem uma atitude profundamente profissional no trabalho com um elevado nível de disciplina e “espírito de missão”. Vem-me agora à memória alguns momentos marcantes ao longo do nosso Trilhos.
Conte-nos alguns episódios…
Durante a visita a uma das antigas bases nas matas e montanhas do Bengo, onde depois de horas de marcha, perante a recusa de Kamy em ser ajudada a carregar o material, um dos ex-combatentes que nos acompanhava exclamou: “Essa mulher aguenta muito! Parece guerrilheira!”; ou com o Jorge, na Zâmbia, ao mergulhar de uma canoa que virou, ter não só o reflexo de tentar salvar o material que levava – e que acabou por avariar- como, ao contrário de parte dos acompanhantes que queriam desistir da travessia do rio, ter sido o primeiro a subir novamente na canoa e incitar à continuação do trabalho.
Foi e é igualmente interessante acompanhar a evolução da equipa ao longo dos anos e o interesse cada vez maior sobre a história, ou estórias, deste período da nossa luta, de ver o contentamento do Mário ao descobrir novo material nos diferentes arquivos; da Kamy a cantar em kimbundu, umbundo, tchokwe ou mbunda as músicas que foram gravadas; ou ainda as inovações que o Jorge tem conseguido num trabalho extraordinário de elaboração de bases de dados sobre o trabalho realizado.
Hoje praticamente cada um é responsável e conhecedor da sua área. Foi e continua sendo sem dúvida uma experiência intergeracional muito interessante.
Explique-nos melhor a geografia das viagens.
Foi sendo definida em função das investigações realizadas, procurando alargar as entrevistas a pessoas que permaneceram nas áreas onde se desenvolveu a luta e obter no terreno imagens de locais que pudessem ter guardado alguns vestígios de acontecimentos ou de vivências de alguns dos actores. Seria igualmente uma oportunidade para o registo de actividades culturais.
Foi assim que, em mais de 20 mil quilómetros percorridos de carro em Angola e na Zâmbia, passando por cidades e aldeias de mais de três dezenas de municípios em onze províncias, para além das entrevistas, registaram-se mais de 80 localidades históricas.
Que respostas procuravam no estrangeiro, em termos de alianças internacionais da luta?
No estrangeiro, procurou-se, em primeiro lugar, contactar actores das antigas colónias portuguesas (Guiné, Cabo-Verde e Moçambique) e aprofundar os aspectos comuns da luta, a coordenação de actividades, o sentimento de pertença a uma comunidade que, posteriormente, se viria a manter. Mas também era preocupação podermos registar pessoas e lugares que tiveram algum vínculo a esse período da luta como foi o Ghana, onde não só residiram vários angolanos de diferentes organizações, como os primeiros guerrilheiros de movimentos de libertação treinaram; e outros países como Portugal, Cuba e França. Nestes países foram entrevistadas mais de uma centena de pessoas e registadas cerca de três dezenas de lugares históricos.
Foi o Paulo que conduziu as entrevistas?
A maioria das entrevistas, mas houve igualmente entrevistas da Dra. Conceição Neto e algumas de Luciano Canhanga.
Que personagens e histórias lhe interessaram mais?
É difícil dizer, tivemos desde aquelas que se abriram totalmente e deram entrevistas muito interessantes, até aos casos de pessoas que que se sentia que estavam nitidamente a fugir às respostas. Mas na sua grande maioria, todas tiveram narrativas que de uma ou outra forma enriqueciam as informações existentes.
Sentiu que foi um processo de trabalho bem acolhido pela sociedade angolana no sentido de participarem?
De uma forma muito geral, sem dúvida nenhuma. Por vezes até fiquei espantado, principalmente por parte de certas organizações políticas. Aproveito até para agradecer publicamente o importante apoio que tive do General Samuel Chiwale da UNITA, que facilitou o contacto com vários elementos da sua organização e a estadia de uma semana junto às populações na nascente do Lungue-Bungo.
É evidente que existiram algumas dificuldades, mas nada do que se esperava inicialmente.
Refere-se a constrangimentos políticos?
Constrangimentos houve e há, mas, de modo geral, não tivemos obstáculos na realização do nosso trabalho.
Que conclusões mais surpreendentes teremos a tirar deste mosaico do movimento Nacionalista?
Virão à posteriori, quando se trabalhar na análise do conteúdo das entrevistas realizadas, quando forem confrontadas com documentos, com outras entrevistas, outros estudos. Mas tenho a certeza que os investigadores, estudiosos, historiadores e outros interessados encontrarão muitos dados que ajudarão a chegar a algumas interessantes conclusões.
No aspecto pessoal, foi emocionante reviver momentos de forte sentimento patriótico, de desprendimento de bens materiais e financeiros e, em muitos dos entrevistados, em relação à própria vida.
Foi sim o período em que, daquele “mosaico nacionalista”, com todas as suas contradições e diferenças, mas com elevado sentido patriótico, foram dados os mais importantes passos na construção da nação angolana e na afirmação da sua identidade.
Como conseguiram financiar um projecto desta dimensão?
A associação Tchiweka de Documentação (ATD) aprovaria o projecto, passando a ser a sua produtora e primeira patrocinadora, para além de alguns particulares anónimos, permitindo assim a compra do primeiro material audiovisual. Foram iniciados vários contactos neste período com vista à obtenção de apoios, tendo sido a Toyota, através do seu director, a primeira empresa que acreditou e disponibilizou duas viaturas Land Cruiser. A partir do segundo ano de trabalho (2011), já com os primeiros resultados obtidos, começámos a ter novos apoios, que foram financeiros ou de permuta – oferta de saldos telefónicos, de transporte… principalmente do BPC, Movicel, BAI, TAAG, Sonangol, Odebrecht e Griner. A nível institucional, destacaram-se os apoios em contactos e instalações dos Ministérios dos Antigos Combatentes, através dos delegados provinciais, e da Administração do Território, através dos Governos Provinciais, bem como das Forças Armadas Angolanas em transporte. É de destacar, durante os trabalhos no terreno, a participação de Manuel Tomás Francisco, Tchiyna Matos, Romeu Mateus, Arlindo Romero, Luciano Canhanga, Edvaldo António, Hindhyra Mateta, Alexandre Yewa e Aires Walter. Desta forma fomos concretizando os Trilhos. Mas há sobretudo que realçar a disponibilidade e abertura da maioria dos que foram entrevistados e principalmente o carinho com que fomos recebidos pelas populações nas diferentes aldeias por onde passamos e acampamos.
Como enquadrar este projecto no âmbito do trabalho da Associação Tchiweka de Documentação (ATD)?
O projecto “Angola nos Trilhos da Independência“ tem atiçado a curiosidade de muita gente. Foram 57 meses,900 horas de material audiovisual recolhido em território angolano e internacional, que contem cerca de 700 depoimentos de protagonistas da luta anticolonial. Tudo isto destinado a preservar a memória de um período na História que diz respeito a Angola e à luta de todos os povos sob ocupação colonial cujas memórias padecem ainda de ser registadas e pensadas.
A Associação Tchiweka, criada em 2006, tem por objectivo principal a recolha, conservação e divulgação de documentos, fotografias e outro material relacionado com a luta de libertação e pela soberania nacional. Tem feito, na medida das suas muito reduzidas possibilidades, um trabalho neste sentido, através da edição de livros, apoio a alguns investigadores e recepção de vários arquivos pessoais. Este projecto virá enriquecer o Centro de Documentação com um arquivo audiovisual bastante importante e provavelmente inédito em África, e digo isso citando o Professor Elikia Mbokolo, que ainda no início do projecto, ao visitar a ATD, o felicitava pela sua importância e originalidade.
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