Dever de casa
Dever de casa, drama de todo dia
Isabel Clemente - Revista Época - 07/12/2014 - Rio de Janeiro, RJ
Tarefas em excesso se tornam um problema na rotina da família. Onde está o ponto de equilíbrio?
Volta e meia ouço amigas reclamarem da quantidade de dever de casa que os filhos trazem da escola diariamente. Páginas e páginas de tarefas a serem feitas depois das aulas. Visto como prova da eficácia do ensino tradicional, o dever de casa já foi questionado por especialistas, não apenas por mães e pais cansados de ter que botar a criança para cumprir infindáveis tarefas todo-santo-dia.
A quantidade de dever que muitas escolas prescrevem tem se tornado um desafio para a capacidade das famílias se organizarem. Nem sempre o filho pode, consegue ou deve fazer sozinho. Quando as crianças são pequenas, a ideia é `promover o entrosamento dos pais com o conteúdo da escola`. Então, dá-lhe pesquisas e tarefas nada simples como `trazer no dia seguinte uma garrafa pet, uma cartolina azul e recortes de animas da fazenda`. Daí você lembra que não tem garrafa pet em casa,. porque refrigerante, mate e demais bebidas industrializadas não fazem parte da dieta familiar; descobre que a única papelaria aberta depois de você ler a agenda do filho só tem cartolina branca; e que nenhuma das revistas da casa publicou uma única foto de vaca nas últimas semanas. Vocês folhearam todas e encontram apenas um maldito tigre.
Quando a filha mais velha entrou para a escola, estávamos em Brasília. Aos 4 anos, trazia lições para casa três vezes por semana. Parecia um exagero para uma criança tão pequena, mas era divertido. Sentávamos para recortar revistas e jornais, ela colava como bem entendia em seu caderno enquanto eu tentava afastar a irmã que, com menos de um ano, só poderia amassar ou comer o trabalhinho. Mas havia dias que ela não estava a fim. Nem eu.
No ano seguinte, as tarefas passaram a ser diárias, e a graça foi dando adeus. Letícia tinha apenas 5 anos e a irmã andava rápido em direção aos 2 - e a todo o material escolar que não lhe pertencia. De manhã, quando o cortisol - o hormônio do estresse - das crianças está no auge (é o que diz recente estudo de uma seguradora americana), o nosso também está. À noite, um casal retornando do trabalho com duas menininhas querendo atenção era fortíssimo candidato a esquecer de procurar recortes do fundo do mar. A lição era uma das muitas obrigações que acabavam esquecidas, alimentando a sensação de que estávamos errando.
No Rio, a rotina mudou, a escola também e a neura arrefeceu, porque a proposta pedagógica é outra e o fluxo de deveres diminuiu. A missão mais frequente da pequena é ler um livro, prazer instaurado no seio familiar. Os deveres nunca tomam tempo demais da mais velha. Aos nove anos, dá conta de cumpri-los quase sempre sozinha. Mas percebo que somos exceção. Sei também que nem todos concordam comigo.
Para muitos pais, a sensação de ver o filho assoberbado com tarefas todo os dias é sinal de que algo importante está sendo transmitido. A escola é puxada, dizem orgulhosos. Lá, se não estudar não passa. Sei...
Eu estudei numa escola de tempo integral onde deveres de casa eram raríssimos. O aproveitamento em sala de aula deveria ser bom o suficiente para que a lição de casa fosse espontânea e complementar: estudar as matérias e ler, sempre e muito. Estava implícito naquela proposta que o aluno não poderia ocupar seu dia todo com tarefas da escola, onde ele já passava oito horas por dia dedicado também ao esporte e às artes. Fazia todo o sentido.
Mas voltando à nossa realidade, porque minha escola (pública e de qualidade) era e ainda é uma exceção, as escolas meio expediente são a maioria no Brasil e elas, obviamente, não dão conta de ensinar o conteúdo em quatro horas e meia diárias. A matéria é jogada sobre as crianças. Resta a opção de mandar o aluno estudar em casa. Dá-lhe dever. Logo, a coisa se torna impossível de gerenciar, e você percebe que não há nenhuma relação entre qualidade do ensino e dever de casa. O que se tem é uma estrutura que não funciona. Diante disso, pergunto: qual a política ideal do `nosso` dever de casa?
Antes, algumas informações históricas.
O dever de casa já foi execrado e redimido por várias correntes pedagógicas ao longo do tempo. Há quem o defenda como ferramenta pedagógica e há os que temem pelo excesso de interferência na rotina familiar. O dever, segundo seus defensores, impõe disciplina ao aluno. Ele também seria eficaz para introduzir nas crianças senso de responsabilidade. Para seus opositores, em excesso ele desestimula o interesse do aluno pelo conteúdo, quando tudo o que se deseja é aguçar a curiosidade dos aprendizes, e não miná-la pelo cansaço.
Deve haver ótimas explicações para defender muito dever de casa. Sou toda ouvidos, mas estou falando da vida como ela é. O massacre da tarefa rouba o tempo da espontaneidade, do café da manhã já tão corrido, do lazer, do esporte, da música, das artes, e de tudo de lúdico que seu filho poderia fazer com o tempo livre dele - se ainda tiver algum -, incluindo no pacote a brincadeira solitária, aquele exercício ao qual poucos dão atenção mas que ensina a criança a lidar com um desafio maior do que muito cálculo matemático: enfrentar a solidão. Para mais informações a respeito, consultem o pediatra e psicanalista Donald Winnicot (1896-1971).
Na verdade, não estou discutindo métodos pedagógicos, mas tempo, esse produto cada vez mais escasso nas nossas vidas. Dosar é fundamental, e meu foco é a infância. Educar é preparar cidadãos para a vida, e não se vive com base em decorebas. Eu quero ver minhas filhas com plena capacidade de ir atrás de informações e de construir conhecimento.
Em entrevista publicada no Caderno Educação: Mitos x Fatos, da Globo, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, disse uma frase que me parece a melhor definição para o processo de aprendizado: `Tem mais valor um erro que mostre um movimento de busca e um pensamento próprio do que um acerto que seja cópia de algo que nem sequer foi devidamente assimilado`.
Um estudo recente sobre aprendizado de língua estrangeira sugere que uma atitude positiva diante do dever de casa está mais ligada a bons resultados de aprendizado do que ao tempo gasto com as lições. Descontada a particularidade do aprendizado de uma segunda língua, que requer vivência e entrosamento social, é fácil imaginar por quê. Quando quantidade supera qualidade, e má vontade bate, a obrigação parece mais um obstáculo a ser transposto nessa gincana diária que se tornou a vida de todo mundo. Daí, o dever de casa vai engrossar a lista das cobranças automáticas, num típico dia numa casa qualquer: Já arrumou seu quarto? Já escovou os dentes? Já fez o dever?