Ideologias na sala de aula

Ideologias na sala de aula

Dois artigos sobre ideologias na sala de aula

A professora estadual Janeslei Aparecida Albuquerque e o advogado Miguel Nagib debatem o assunto

Fonte: Gazeta do Povo (PR)

Educar é abarcar pluralidade de ideias, Janeslei Aparecida Albuquerque

A vereadora Carla Pimentel tem feito fama apresentando projetos de lei anacrônicos, já superados historicamente e com fortes marcas de conservadorismo. Como não podia deixar de ser, sua mais nova “polêmica” prevê que se alterem os currículos escolares e que os mesmos não contenham os fatos políticos que movem a história da humanidade, o que ela, em sua proposta, classifica como “doutrinação política e ideológica”.

Primeiro, a vereadora quis obrigar a leitura da Bíblia nas escolas. Agora, sua nova proposta tem igual teor preocupante: proibir que a História e as Ciências Sociais sejam ensinadas, nas escolas de Curitiba, a partir de uma perspectiva histórica. Ou seja, propõe que o ensino de História seja “desistoricizado”. Bom, talvez vire um conto de fadas. Uma narrativa linear sem disputas de poder, sem vencidos nem vencedores, sem injustiças nem injustiçados, sem conflitos... sem “ideologia”, diz ela.

Essa proposta, ironicamente, é carregada de ideologia. Seria muito bom se, antes de fazer qualquer proposta, os nobres legisladores consultassem as leis educacionais do nosso país. Por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabelece que a educação deve ser inspirada “nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

O que esses princípios nos dizem? Que a educação das crianças e jovens deste país deve se constituir no aprendizado das ciências, no domínio da técnica e também na formação para o livre exercício da cidadania, da crítica, da consciência, e o direito a uma boa formação para o mundo do trabalho. O que exige o estudo da ciência, que, por sua vez, exige método e comprovação. E de que “mundo do trabalho” se trata? Trabalho que se dará numa sociedade dividida em classes, numa sociedade em que os direitos sociais, trabalhistas e civis há pouco tempo vem sendo construídos. Uma sociedade que se constituiu nas práticas do escravismo, do poder exercido pelas oligarquias, na violência, no patriarcado, no patrimonialismo.

Segundo o projeto, estes fatos não poderiam ser objeto de reflexão. As contradições não poderiam ser apontadas e toda a história não seria mais que “uma sucessão de acontecimentos fortuitos”. E essa proposta nem sequer é original: a ditadura, ou melhor, todas as ditaduras já fizeram isso. Mas a roda da história não parou de girar.

Aliás, falando em patrimonialismo, essa proposta quer levar esse conceito às últimas consequências, ferindo a laicidade do Estado, cujas leis os ocupantes da Câmara deveriam defender e fazer respeitar. Ele fere a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. E quer ferir mortalmente o princípio da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas.

A opção religiosa da parlamentar é da esfera privada. Mas a educação é regida por princípios de caráter público, e muito mais ainda na escola pública, que é de todos. A superação dos Estados teocráticos e a instituição da laicidade do Estado é uma conquista da modernidade e deu-se nos séculos 16 e 17. Essas propostas querem nos levar a um atraso de mais de 200 anos! Não podemos nos calar diante dessa e de outras ameaças obscurantistas e retrógradas.

*Janeslei Aparecida Albuquerque, professora da rede estadual do Paraná, é mestre em Educação, secretária de Formação Política-Sindical da APP-Sindicato, militante da Marcha Mundial das Mulheres e membro do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe/UFPR), representando a APP-Sindicato.

Confira a opinião no site original aqui
 

Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar, Miguel Nagib

É lícito ao professor usar suas aulas para tentar obter a adesão dos alunos a determinada corrente política ou ideológica?De acordo com a Constituição Federal, a resposta é negativa. A doutrinação em sala de aula ofende a liberdade de consciência do estudante; afronta o princípio da neutralidade política e ideológica do Estado; e ameaça o próprio regime democrático, na medida em que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores.

Por outro lado, ao abusar do poder de fato e de direito que exerce sobre os alunos; da sua audiência (literalmente) cativa; do temor, da insegurança, da imaturidade e da falta de conhecimento dos alunos para tentar transformá-los em réplicas ideológicas de si mesmo, o professor desrespeita os preceitos mais elementares da ética do magistério.

A prática da doutrinação, todavia, apesar de antiética e ilegal, tomou conta do sistema de ensino. A pretexto de “construir uma sociedade mais justa”, professores de todos os níveis utilizam suas aulas para cooptar política, ideológica e eleitoralmente os alunos. Reprimir o impulso de “fazer a cabeça” dos estudantes é uma ideia que nem sequer lhes ocorre.

Que fazer para coibir esse abuso intolerável da liberdade de ensinar, que se desenvolve no segredo das salas de aula, e tem como vítimas indivíduos vulneráveis em processo de formação?

Nada mais simples: basta informar e educar os alunos sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores; basta informar e educar os professores sobre os limites éticos e jurídicos da sua liberdade de ensinar.

É isso, e apenas isso, o que propõe um projeto de lei que acaba de ser apresentado à Câmara Municipal de Curitiba pela vereadora Carla Pimentel. Baseado numa iniciativa do movimento Escola sem Partido – que desde 2004 vem atuando no combate à doutrinação nas escolas –, o projeto prevê a afixação, em todas as salas de aula da rede municipal de ensino, de um cartaz com os “5 deveres do professor”: não abusar da inexperiência dos alunos com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente político-partidária; não favorecer nem prejudicar os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas ou religiosas; não fazer propaganda político-partidária em sala de aula; ao tratar de questões controvertidas, apresentar aos alunos, de forma justa, as principais teorias, versões e perspectivas concorrentes; e não usurpar o direito dos pais na educação moral dos seus filhos.

Se esses deveres existem, os estudantes têm direito de conhecê-los para poder exercer os direitos que lhes correspondem. O direito de conhecer os próprios direitos é um elemento central do conceito de cidadania, e a escola, diz expressamente a LDB, tem o dever de preparar o educando para o exercício da cidadania.

O PL, portanto, é legítimo, necessário e urgente. O problema é que ele contraria os interesses de dois grupos poderosos e muito bem articulados entre si: os professores que promovem a doutrinação e os partidos que dela se beneficiam. Por isso, os apoiadores do projeto devem estar preparados: esses grupos farão “o diabo” para impedir que ele seja aprovado.

*Miguel Nagib, advogado, é coordenador do Escola sem Partido.

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