Meritocracia e Coxinhas

Meritocracia e Coxinhas

 

Meritocracia e Coxinhas

 Quem defende a meritocracia raramente a adota para si mesmo e para os seus. No Brasil, caso possa subir degraus na escala social por outras vias, não hesita em fazê-lo. Todavia, quando se discute mérito e meritocracia, ao menos do ponto de vista filosófico, não é isso que deve ser levado em conta. O que se deve analisar é se vivemos pior ou melhor em uma sociedade em que a regra para conquistas de empregos, vagas em escolas e determinadas boas posições é o mérito vindo da competência.

A ideia do mérito está longe da doutrina religiosa judaico-cristã. Sabemos bem que Deus não premiou Caim, que trabalhou a terra, mas sim Abel que lhe deu como presente um filho. Sabemos também que o chamado filho pródigo levou a melhor. Jesus então, nem se fale, acolheu Madalena, que era prostituta, e deu a incumbência de construir sua Igreja a Pedro, justamente aquele que não teria coragem de se dizer seu amigo em horas difíceis. Na verdade, demorou para que os ventos liberais modernos soprassem e, então, viesse a doutrina do mérito. Foi só com a burguesia em ascensão que se criou a ideia de que sangue, nome, família, propriedade da terra e outras coisas do tipo não poderiam sufocar as oportunidades daqueles que, por esforço próprio, se mostrassem competentes. A doutrina do mérito veio para colocar a competência técnica e a capacidade de empreendimento acima do automático mérito da hereditariedade.

Passado um tempo, no entanto, a doutrina do mérito começou a dar menos frutos do que deveria. Ela premiava menos do que poderia premiar. Muitos liberais logo perceberam que a doutrina do mérito, em uma sociedade em que o ponto de partida não fosse razoavelmente igual, causava o desperdício de energia, atenções e vidas. Ainda no campo liberal, as sociedades mais inteligentes resolveram criar instituições capazes de dar oportunidades a todos para que pudessem começar de um patamar minimamente semelhante. A instituição que resolveria isso seria a escola pública, obrigatória e gratuita. Ela deu frutos, mas logo ficou claro que para frequentá-la era necessário, também, que as crianças tivessem tempo para aproveitá-la, e assim vieram aos poucos as leis de proteção da infância e coisas do tipo. Mais, tarde, essas medidas foram reforçadas quando as sociedades liberais foram complementadas em direitos pelas sociedades regidas pela social democracia ou pelo liberalismo do New Deal americano, e isso significou tratar os professores de modo mais profissional, com carreiras estabelecidas e salários negociáveis.

 Adolf Hitler e uma menina. Nas relações pessoais, às vezes um gentleman.

A essa altura, então, a doutrina do mérito já havia se tornado a ideologia da meritocracia. A

Adolf Hitler e uma menina. Nas relações pessoais, às vezes um gentleman. ideologia meritocrática nada tinha da doutrina liberal de premiar a competência, sendo apenas uma forma de dizer que todos sendo iguais perante Deus ou a natureza ou a lei não precisariam de outra coisa senão o esforço próprio para progredir. Qualquer forma de apoio aos mais pobres seria uma injustiça para com os mais ricos e, enfim, até mesmo uma maneira de humilhar os mais pobres, pois não se estaria confiando na capacidade destes de superar dificuldades. Em uma situação desse tipo, o que havia de inteligente e generoso no liberalismo se perdeu. O que havia de alvissareiro na social democracia foi criticado e renegado, e passou a se chamar de esmola, ou distinção a priori de classe ou raça, ou ainda populismo etc.

Hoje em dia quem está nessa posição que nega a necessidade de aportes aos menos favorecidos economicamente ou que nega que preconceito possa ser combatido com políticas de harmonização étnica (cotas e coisas semelhantes) às vezes se diz liberal, mas não é. Trata-se ou de conservadores, de gente da direita política, de pessoas cuja inteligência é diminuta, uma vez que é realmente um erro desperdiçar energia humana por obra da economia de migalhas. Mas, se é assim, por que há esse pessoal de direita que, enfim, parece dar um tiro no pé com tal política mesquinha? Simples: em geral são pessoas que, mesmo se ajudadas pelo aporte social, não melhorariam, e então negam que possa existir o aporte, pois querem que os mais pobres permaneçam pobres, já que elas próprias não conseguirão melhorar de modo algum. Algumas até melhoraram, mas não foi sem ajuda, como efetivamente dizem. Nem sempre estão dispostas a se lembrar da conjuntura favorável que pegaram em determinado momento.

Para o militante da direita essa criança pode simplesmente levantar e sair dessa condição, basta determinação própria.

Para o militante da direita essa criança pode simplesmente levantar e sair dessa condição, basta determinação própria.

 Sendo assim, os que reclamam das políticas de cunho liberal progressista e social democrata, não estão longe da defesa da meritocracia de modo paradoxal, pois não raro eles próprios são fracassados sociais. Fizeram ou fazem péssimas escolas e estão em péssimos empregos. O fracasso pessoal as coloca em franco movimento que pede o fracasso geral.  Muitos filósofos políticos falaram desse tipo de grupo social como o guardião da perigosa inveja social, sempre pronta para alimentar a violência.

Fiquem atentos para esses fracassados, eles engrossam os grupelhos de extrema direita em todos os lugares. São donos dos discursos mais violentos, os chamados “discursos de ódio”. Às vezes achamos que não, que há ali no grupo de extrema direita alguém não fracassado. Mas o fracasso nem sempre é só econômico. Há fracassos anatômicos, fisiológicos, cognitivos que muitos escondem. Até colunistas de jornais famosos escondem tais fracassos, mas que logo são revelados na digitação a favor do ódio social, do não diálogo etc.

A militância de extrema direita está associada ao fracasso pessoal e, de certo modo, ao ressentimento. Foi assim no passado, quando Hitler recrutou seus quadros, continua assim hoje, ao vermos por aí militantes fingindo serem rebeldes. Os que chamamos hoje de coxinhas, aqui no Brasil, representam bem, em termos de tipos, esse pessoal.

Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.

http://ghiraldelli.pro.br/meritocracia-e-coxinhas/




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