Volta após licença médica

Volta após licença médica

Após licença médica, 14 mil professores não voltam às salas de aula de SP

Sem função definida dentro da escola, docentes readaptados se sentem depreciados e sofrem preconceito de colegas

Fonte: iG      30 de outubro de 2014


Na rede estadual de São Paulo, 14.340 professores estavam fora das salas de aula em maio de 2013. O número de docentes readaptados após licença médica cresceu 25% em 2 anos: eram 11.872 em 2011.

Os dados sobre os professores readaptados são da pesquisadora Sandra Noveletto Antunes em seu estudo "Mal-estar e adoecimento docente na escola pública paulista: um panorama preocupante", publicado em agosto.

Readaptados são professores que deixaram a escola por problemas como depressão ou doenças ortopédicas e, por não terem condições de voltar à sala de aula, são recolocados na escola para outros trabalhos. Sem função clara dentro da escola, os docentes relatam cumprir serviços de telefonista e de secretária, sofrerem preconceito e até assédio moral.

"A pesquisa encontrou fortes indícios de que o aumento desse fenômeno de readaptações seja provocado pelas condições de trabalho enfrentadas pelos professores. Os professores estão sobrecarregados, desmotivados, sentindo-se desvalorizados", explica a pesquisadora.

O problema se repete em redes municipais e também em outras redes estaduais do país. No caso da cidade de São Paulo, 5.647 docentes estavam readaptados em março de 2012, segundo o Atlas Municipal de Gestão de Pessoas da Prefeitura de São Paulo 2013. O número representa 9,7% dos professores da rede na época.

Fora da sala de aula, readaptado sofre preconceito

Quando voltam para a escola no programa de readaptação, os professores passam por perícia médica para atestar quais atividades podem exercer dentro da escola. O readaptado deveria ser colocado em função pedagógica, o problema, segundo a terapeuta e pesquisadora do tema Amanda Macaia, é que esse "rol de atividades" não deixa claro quais são as funções que o profissional pode cumprir e isso fica a cargo da gestão da escola.

Assim, os readaptados muitas vezes são designados pelo diretor para ajudar na secretaria, atendendo telefones e cumprindo burocracias, na inspeção de alunos ou mesmo na cozinha.

"[A colocação em atividades pedagógicas] depende muito das relações sociais que o adaptado tem dentro da escola, então ele fica dependente. Também há um problema que é o laudo não ajudar o diretor a incluir o readaptado na escola", afirma Macaia, que estudou o tema na rede municipal de São Paulo.

Fora de função, os readaptados deixam de ser vistos como professores por seus colegas. Macaia explica que essa situação dá origem à discriminação do profissional, que às vezes é tido como acomodado. A mesma situação é relatada por Antunes, na rede estadual.

"Na recolocação desse profissional em outras atividades, cujas funções não pertencem ao docente concursado e qualificado, a situação mostra-se insatisfatória e depreciativa. O professor vítima da degradação das condições de trabalho impostas pelas políticas públicas educacionais, além do próprio adoecimento, sofre na readaptação com auto-culpabilização, isolamento, estigmatização, preconceito e discriminação", indica Sandra Antunes.

'É como se eu fosse uma inútil', afirma readaptada

Após uma crise de depressão profunda desencadeada por um caso de violência com alunos de sua escola, a professora Rosi Tomura, de 48 anos, voltou à escola em 2002, com um quadro de fobia social controlado à base de antidepressivos.

Apesar das dificuldades para vencer seus medos, ela conta que por anos ajudou no cuidado da sala de leitura da escola em que trabalha em Mococa (SP). Mas, em 2013, a diretoria resolveu trocá-la de função e aí recomeçou seu calvário. "A diretora não falou comigo. Em janeiro, eu cheguei na escola e tinha duas pessoas na sala de leitura. Uma delas me disse que achava que eu não ia mais trabalhar ali. Ela falou isso e eu fiquei sem saber o que fazer, o que ia ser da minha vida."

Rosi relata que após procurar a diretora, essa apenas confirmou que não era para ela continuar na sala de leitura. "Como não tinha o que fazer, ela disse 'você distribui o material quando alguém pedir'." E assim ela conta que passou os últimos dois anos dentro da sala de almoxarifado, sem função a maior parte do tempo. "Subestimam minha capacidade. É como seu eu fosse uma inútil. Eu pensava 'não sirvo mesmo para nada'."

"Eu jamais queria ter ficado doente. Queria ter minha sala, ter meus alunos. E não ficar jogada igual eu fico, sem opção", afirma.

Após quase dois anos em que diz ter enfrentado a piora de seu quadro depressivo, Rosi voltou a exercer funções pedagógicas sob coordenação de uma nova diretoria na escola. Agora a professora ajuda na mediação de conflitos.

Temporários não fazem parte das estatísticas

Segundo Sandra Antunes, o número de 14 mil professores readaptados na rede estadual engloba apenas os professores efetivos e não há registos dos afastamentos no caso de docentes temporários. "O número de afastamentos temporários, por meio de licenças médicas, na rede estadual é enorme, mas infelizmente, não são contabilizados e não há controle sobre isso. Entretanto, crescem as denúncias sobre a falta de professores nas escolas."

A rede paulista tem atualmente 240 mil professores, desses 56 mil são temporários, segundo dados conseguidos por Lei de Acesso à Informação e publicados pelo jornal Folha de S.Paulo. A Secretaria Estadual de Educação não informou até a publicação da reportagem o número atual de professores readaptados.

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'Sinto que o Estado quer me enterrar viva', diz professora readaptada

Desde dezembro de 2013, professores readaptados da rede estadual se reúnem pela internet para compartilhar experiências, dificuldades e informações sobre sua categoria. O grupo, criado no Facebook pela professora Rosi Tomura, já reúne mais de 500 docentes.

Na rede estadual de São Paulo, 14.340 professores estavam fora das salas de aula em maio de 2013. O número de docentes readaptados após licença médica cresceu 25% em 2 anos: eram 11.872 em 2011. O problema se repete em redes municipais e também em outras redes estaduais do país. No caso da cidade de São Paulo, 5.647 docentes – o que corresponde a 9,7% da rede – estavam readaptados em março de 2012, segundo o Atlas Municipal de Gestão de Pessoas da Prefeitura de São Paulo 2013.

O iG conversou com algumas das professoras para saber quais os principais problemas que enfrentam na escola. Confira abaixo.

'Me sentia deslocada, como um peixe fora d'água'

A professora Glizélia Gonçalves, 34, está readaptada em escola estadual da capital paulista desde 2012 por problemas na coluna que a obrigam a usar bengala. Trabalhando em uma escola cheia de escadas, a professora conta que só restou a ela ficar na secretaria da escola.

"Eu me sentia deslocada, como um peixe fora d'água. Nunca tive pretensão de fazer trabalho burocrático. Sem falar que o problema na coluna me deixa muito limitada quanto a fazer esforços físicos, isso passa a impressão para os gestores da escola de que não quero trabalhar."

Nesse período, Glizélia conta ter sido vítima de assédio moral. "Pegava dois ônibus para ir trabalhar, machucando a coluna no trajeto, para chegar lá e ouvir que eu não servia para nada. Ouvir a vice-diretora gritar comigo, como se eu tivesse culpa por ter ficado doente. Eu superei muitas coisas na minha vida, mas não sobrevivi à readaptação. Às vezes, eu sinto que o Estado quer me enterrar viva."

Após isso, a professora diz que desenvolveu síndrome do pânico. "[A vice-diretora] não aceitava minhas limitações físicas. Às vezes, fazia até piadinhas pelo fato de eu não ser tão ágil quanto elas. Dava a impressão que ela odiava conviver com uma pessoa doente ou limitada. Comecei a passar muito mal no horário de ir trabalhar, tinha crise de falta de ar, palpitações etc."

Hoje, Glizélia está afastada após perder a visão de um dos olhos e aguarda cirurgia no Sistema Único de Saúde.

'Perdemos nossa identidade, não sabemos mais quem nós somos'
Professora em Santo André, Maria do Socorro Silva, 50, teve que se afastar da sala de aula por causa de problemas ortopédicos. Desde 2006 faz parte da categoria de readaptados. Ao longo de oito anos, a professora conta que desempenhou diversas atividades ligadas aos alunos: "trabalhei na biblioteca, na sala de informática, organizava as festas dos alunos".

Após um desentendimento com o diretor da escola em dezembro de 2013, a professora conta que ficou sem função dentro da escola. "Sofri assédio moral. Sofri perseguição. E cada dia que eu ia para a escola e não me era atribuída uma função, eu registrava", conta.

"Quando eu estava trabalhando com a parte pedagógica, eu tinha estímulo para estar lá, eu ia trabalhar feliz. Nesse período desde dezembro, eu lutei diariamente para não entrar em depressão." O que Maria do Socorro quer é uma função na área pedagógica para que possa aproveitar seus conhecimentos no ensino. "O limbo é exatamente onde estamos. Nós perdemos nossa identidade, não sabemos mais quem nós somos."

'Sinceramente, não sei o que faço na escola'

Com problemas ortopédicos por conta de obesidade mórbida, diabetes e tomando antidepressivos, a professora K. Silva, 53, tem experiências bastante diferentes entre dois momentos em que foi readaptada na rede estadual de São Paulo.

"Na primeira readaptação, ajudava na secretaria, na biblioteca, junto à direção e à coordenação. Elaborava excursões, festas e passeios, e ajudava a fazer, por exemplo, o Plano de Gestão da Escola. Me sentia bem útil. Quando voltei desta vez a ser readaptada, me sinto inútil, pois não tenho uma função estipulada. Hoje sinceramente não sei o que faço na escola. Procuro atividades que possam auxiliar minhas colegas em sala de aula. Ligo e desligo datashow, abro a biblioteca pela manhã", afirma.

K. diz que gostaria de voltar a ajudar professoras, mas é impedida pela equipe gestora da unidade. "A pior coisa é levantar cedo e não ter nada para fazer ao certo." "Poderia auxiliar mais as professoras na parte pedagógica, pesquisando temas que elas necessitassem em suas aulas. Sei da grande dificuldade que é estarmos lecionando e ainda termos tempo para pesquisar novas atividades, recursos para melhorarmos nossas aulas", sugere. 

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