Ser (ou não ser) professor

Ser (ou não ser) professor

 A educação representa um dos pontos vitais para o desenvolvimento de qualquer país. E sem professor não há educação.

Mas no Brasil a profissão tem percalços como baixos salários, condições de trabalho precárias e até violência na sala de aula. Neste Dia dos Professores, oito brasileiros contam por que seguem na carreira ou por que a deixaram            

15/10/2014      

Política educacional e entorno violento me fizeram desistir, diz ex-professora

Michelle tinha que interromper aulas por causa de tiroteios na Maré. Turmas com muitos alunos e de diferentes níveis eram desafio, diz ela. educacional e entorno violento me fizeram desistir, diz ex-professora                      

A pegagoga Michelle Henriques Ramos no Conjunto de Favelas da Maré (Foto: Alexandre Durão/G1)A pedagoga Michelle Henriques Ramos no Conjunto de Favelas da Maré (Foto: Alexandre Durão/G1)

As calçadas estão tomadas de mercadorias, que vão de peixes a réplicas de roupas de marca. Todos caminham no meio da rua. Um morador brinca: "Não se preocupe com os carros, o problema aqui são as motos". Uma garota de não mais que 10 anos pilota uma delas, vestida com a camisa do colégio. Em um skate, também no meio da rua, um deficiente físico improvisa uma cadeira de rodas e usa uma luva de gari para impulsioná-lo protegendo as mãos. Era neste ambiente, no Conjunto de Favelas da Maré, Zona Norte do Rio, onde a pedagoga Michelle Henriques Ramos, de 32 anos, dava aulas. Por causa dos tiroteios que interrompiam as aulas e das frustrações do dia a dia, deixou a função.         

Mas não eram só os confrontos entre policiais e traficantes que interferiam no trabalho — provocando a situação delicada de ter que explicar para crianças pequenas o que é o enfrentamento armado, e o porquê dele ocorrer. O sistema de progressão automática de educação do município colocava alunos de diferentes níveis de aprendizado na mesma sala. Na prática, havia "turmas dentro das turmas". Meninos que nem sequer eram alfabetizados tentando elaborar uma frase complexa. Foi quando Michelle, que sempre atuou na rede pública, percebeu que queria trabalhar na outra ponta da educação. Cansada de colocar a vida em risco e de ser vítima da formulação de políticas públicas, decidiu ela própria elaborá-las.

Confira a seguir a trajetória de Michelle, uma das entrevistadas para o especial do G1 sobre o Dia dos Professores.

G1 - Por que decidiu lecionar?

Michelle Henriques Ramos - Sempre quis dar aulas, ser professora. Fiz faculdade e depois concurso para a Prefeitura do Rio. Como já tinha feito um projeto na Maré, por causa do trabalho com o Jaílson de Souza [do Observatório de Favelas, que faz pesquisa sobre ações públicas em favelas e fenômenos urbanos], acabei escolhendo uma escola aqui. Dava aula da educação infantil até o quarto ano, de todas as matérias. No ensino básico, a turma tem uma professora em todas as disciplinas, exceto arte e educação física.

G1 - Tinha de conciliar mais de um emprego?
Michelle Henriques Ramos - Enquanto dava aulas, eu trabalhava no Observatório de Favelas. Eu era técnica em um projeto e agora sou coordenadora de um projeto com crianças e adolescentes. Em um deles, os alunos aprendem a tirar fotos. Mas precisamos pedir autorização para o Exército para fotografar. Não de uma maneira formal, mas precisamos pedir autorização para tirar foto na rua.

G1 - Sabemos que os professores da rede pública têm salário baixo, infraestrutura deficitária etc. O que te motivava? Michelle Henriques Ramos - A motivação eram os alunos, gostava muito do carinho e do afeto deles. Da relação que construí. Sair não foi um momento fácil.

G1 - Qual foi o momento em que você falou: "Não dá mais"?
Michelle Henriques Ramos - Vinha de um processo de desgaste meu em relação a todas estas questões. Veio o período eleitoral, e eu continuava não vendo mudanças, as propostas continuavam sendo as mesmas. Aí teve o falecimento da minha mãe, uma questão pessoal, e concluí que estava me desgastando demais. A questão salarial realmente não compensa.

Atuava em uma escola que era considerada área de risco. Esta escola tinha bastante problema em questões de violência e tinha toda a questão política, que a prefeitura implantava dentro da escola. A quantidade de alunos por aula era muito grande, por exemplo. Era difícil. Havia turmas com 40 pessoas. Alguns, por causa da progressão automática, não eram nem alfabetizados. Era uma turma mesclada. Um grupo que não era alfabetizado estudando com outro grupo que já era. Havia também o problema da meritocracia: por estar em uma área de constante confronto com a polícia, a escola nunca era beneficiada com a gratificação porque o índice [resultado em provas públicas de avaliação] era baixo. A gente trabalha com vidas antes de trabalhar com educação.

A pedagoga Michelle Henriques Ramos no Conjunto de Favelas da Maré (Foto: Alexandre Durão/G1)

G1 - Como a meritocracia se torna um problema?
Michelle Henriques Ramos -
Comparando essa escola com uma da Zona Sul é lógico que a da Zona Sul tem mais condições de trabalho e ganha benefício, bônus. Esta escola não tem toda esta infraestrutura. Isso desanima bastante, porque não tem muito o que fazer. Isso [a violência] atrapalha a concentração e o desempenho dos alunos. É um jogo em que você fica imobilizado.

G1 - Como é o trabalho hoje no Observatório de Favelas?
Michelle Henriques Ramos -
O Observatório de Favelas é uma instituição que trabalha com a formulação de políticas. Hoje, é muito mais positiva do que na outra ponta. Percebi que, para mim, o melhor caminho seria a formulação de políticas. Percebi que seria uma contribuição maior.

G1 - Já foi vítima de agressão, de violência ou de ofensas na sala de aula?
Michelle Henriques Ramos - Não. O que existia eram situações em que a gente ficava com os alunos no corredor, evitando algum tipo de risco nos momentos de confronto [troca de tiros na Maré]. Minha relação com os alunos era muito boa, só havia problemas normais de adolescente e criança, que são facilmente resolvidos. Mas os problemas sérios de violência [fora da escola] tiravam a concentração dos alunos. Já aconteceu de não conseguir sair da escola, ficar presa durante algumas horas. Ou a escola nem abria. Em nenhum momento deixei de dar aula por causa dos alunos ou porque não gostava. Parei tanto pela política que era colocada quanto pela questão da violência.

G1 - Você pensa em um dia voltar?
Michelle Henriques Ramos - Não descarto voltar a dar aula, gosto muito da profissão. Não consigo me ver fora dessa área.

 

Lutem pelos alunos, diz professora da PB famosa por métodos e prêmios

Jonilda Frreira ajudou alunos de cidade paraibana a ganhar 130 medalhas. Ela usa itens do dia a dia como pizza e bolo para facilitar o aprendizado.

Os alunos da professora Jonilda Alves Ferreira se destacaram com várias medalhas em olimpíadas de matemática  (Foto: Diogo Almeida/G1)Os alunos de Jonilda se destacam com medalhas em olimpíadas de matemática (Fotos: Diogo Almeida/G1)

Cozinha da escola, mercadinho, posto de combustíveis e até farmácia. Não parece, mas todos esses lugares tem a ver com o ensino de matemática. Para a professora Jonilda Alves Ferreira, de 45 anos, o espaço para aprender não se limita à sala de aula. Ela promove aulas práticas por toda a cidade de Paulista e, assim, conquista os jovens do Sertão paraibano. Mais motivados e com desempenho acima da média, eles já ganharam 130 prêmios em olimpíadas de matemática nos últimos oito anos.

"As aulas práticas de matemática fora da sala são as que eles mais gostam, porque sai da rotina. Tem no horário normal e no extracurricular. Faço aula prática com pizza, bolo, chocolate...", diz.

 

Paulista, Paraíba
Município fica a 394 km da capital João Pessoa e tem cerca de 12 mil habitantes. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,587, considerado baixo

 

A professora conta que vence a batalha diária do ensino público com amor à profissão. “Eu não quero chegar à sala de aula e o aluno me detestar. Espero que o aluno queira estar presente e goste da minha aula.” Para ela, é preciso lutar pelos estudantes, porque eles precisam de apoio. Leia a seguir a história de Jonilda, uma das entrevistadas para o especial do G1 sobre o Dia dos Professores.

G1 - Qual a sua formação?
Jonilda Alves Ferreira - Sou formada em ciências econômicas pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP) e em matemática pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

G1 - Por que decidiu lecionar?
Jonilda Alves Ferreira - Foi meu pai quem me ensinou a ler e escrever, dentro de casa. Já fui para a escola alfabetizada. Sempre fui a melhor aluna em todas as séries e gostava de ajudar os colegas. Ainda adolescente, trabalhava numa indústria de doce. Perdi meu pai quando tinha 11 anos, e minha mãe ficou com oito filhos para cuidar. Fui por livre e espontânea vontade trabalhar embalando doce. Continuei durante sete anos e, enquanto isso, fiz faculdade e me casei. Depois que tive o primeiro filho, não voltei ao emprego. Quando tive o segundo filho, precisavam de professora de matemática na escola estadual, e a diretora me perguntou se eu queria o desafio. Daí aceitei. Quando fui ensinar, parecia que eu já sabia o que fazer. Estou aqui até hoje e não quero sair de sala de aula.

G1 - Leciona há quanto tempo, em quais disciplinas?
Jonilda Alves Ferreira - Sou professora há 12 anos, desde 2002. Também dei aula de física por seis meses, mas todo esse tempo me dediquei à matemática. Já lecionei para o ensino médio, mas hoje apenas para a segunda etapa do ensino fundamental, do 6º ao 9º ano.

G1 - Trabalha na rede pública?
Jonilda Alves Ferreira - Sou professora na Escola Municipal Cândido de Assis Queiroga, em Paulista, e agora vou dar aula em uma escola particular de Campina Grande. Também já atuei na rede estadual. Neste ano, graças às medalhas da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, conquistamos para Paulista um polo do programa de iniciação científica em matemática que só existia em Campina Grande e João Pessoa. O polo, onde também atuo, tem bolsas de estudo pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com aulas presenciais e virtuais, para alunos de 6º ano do fundamental até o ensino médio.

G1 - Já teve de conciliar mais de um emprego?
Jonilda Alves Ferreira - Já precisei fazer alguns "bicos". Precisar, a gente precisa sempre. Por um período, até o ano passado, montei um estúdio fotográfico, por gostar muito de fotografia. Neste ano não tive mais tempo e encerrei.

G1 - Como surgiu a ideia de ensinar a matéria de forma prática?
Jonilda Alves Ferreira - As aulas práticas de matemática fora da sala são as que eles mais gostam, porque sai da rotina. Tem no horário normal e no extracurricular. Faço aula prática com pizza, bolo, chocolate... A ideia da pizza foi um show de bola, porque o conteúdo é fração. O aluno precisa saber primeiro o que está estudando. Levo a turma para posto de combustível, onde trabalho números reais conferindo os preços das bombas. No mercadinho, fazemos uma pesquisa de preço e temos um projeto sobre economia familiar. Nas aulas de geometria, medimos a escola, a altura de prédios. Vamos à farmácia também olhar medicamentos. Onde tem ideia, estou pegando. Tem dia que pego a cozinha da escola para mim. A gente traz batedeira, faz bolo para eles aprenderem a proporção calculando a receita, depois todo mundo saboreia.

Jonilda (Foto: G1)

 

G1 - Sabemos que os professores da rede pública têm salário baixo, infraestrutura deficitária etc. Mesmo assim, o que te motiva?
Jonilda Alves Ferreira - O mais complicado é fazer o aluno gostar da disciplina. Foi difícil ver o desinteresse dos alunos. Sempre fui criativa e gosto de inovar. Eu não quero chegar à sala de aula e o aluno me detestar. Fui procurando maneiras de tornar minhas aulas melhores. Espero que o aluno queira estar presente e goste da minha aula. A gente não consegue despertar todos, mas tenta ao máximo. Nunca esperei reconhecimento para mim, faço isso pelos alunos. Ver o brilho nos olhos desses meninos que nunca nem saíram daqui e depois vão conhecer o Rio de Janeiro, Brasília, Recife... O aprendizado que eles conseguem adquirir é muito grande. É bom ver a melhoria deles em sala de aula e saber que seus alunos são capazes.

G1 - Nesses 12 anos de sala de aula, já enfrentou alguma crise?
Jonilda Alves Ferreira - Quando comecei, não foi muito bom. Eu estava trabalhando com adolescentes e foi meu desafio maior. Tivemos alguns problemas, mas graças a Deus tive sabedoria para superar. Ouvi pessoas dizendo "não vá", mas não desisti. Fui e deu certo.

G1 - Já foi vítima de agressão, de violência na sala de aula?
Jonilda Alves Ferreira - Sou uma professora sortuda, porque quase não tenho problemas em sala de aula.

G1 - Já foi vítima de ofensas na sala de aula?
Jonilda Alves Ferreira - Graças a Deus, os alunos me respeitam e eu tenho respeito por eles. Trabalhamos muito como parceiros. Tem que manter o aluno ocupado. Se ele está ocupado, não tem como dar trabalho em sala de aula. Até mesmo em tarefas individuais, quem terminou vai ser monitor da atividade do outro e se mantém ocupado.

G1 - Você sente que os alunos chegam no fundamental 2 [6º ao 9º ano] com dificuldade de aprendizado?
Jonilda Alves Ferreira - Demoram para acompanhar o ritmo, porque estavam vindo em fase de mudança, de uma fase em que eles tinham um "tio" e "tia" para ter aula com nove professores, com mais matérias. Tem uns que acompanham, mas tem outros que precisam de um trabalho mais delicado. A gente vê a dificuldade, faz uma revisão para trabalhar mais em cima daquilo e dá suporte.

G1 - No total, são quantas medalhas conquistadas pelo município?
Jonilda Alves Ferreira - Em Paulista, 130 prêmios de 2005 para cá em matemática, fora o resultado da Olimpíada Brasileira deste ano, que vai sair em dezembro. Temos [medalhas] da Olimpíada Campinense, Olimpíada Brasileira de Matemática de Escolas Públicas (Obmep) e da Olimpíada Brasileira de Matemática. O que aconteceu conosco, todo o sucesso nas olimpíadas, foi um pouco de surpresa. Era um trabalho que a gente já vinha fazendo de 2005 a 2008. Em 2009, saiu a primeira medalha de bronze. Em 2010, a primeira medalha de ouro, que foi do meu filho. Em 2012, tivemos cinco ouros no nosso município. Fizemos a preparação com eles e foi um ano muito bom. Não pensei que o resultado seria tão bom. Tivemos em 2013 mais 21 medalhas no município, 10 só aqui da escola.

G1 - Qual é a mensagem que você gostaria de deixar neste Dia dos Professores?
Jonilda Alves Ferreira - A mensagem que deixo é que continuem sendo bons professores, lutem por seus alunos, porque eles precisam de apoio. Tudo que você puder fazer por ele, faça. Se vier reconhecimento, ótimo. Se não, você está em paz consigo mesmo. A gente tenta passar o máximo de conhecimento possível, preparar para tudo, para a vida e para o trabalho. Quem trabalha em escola pública tem que ser um pouco de pai e mãe também. Acredito que a gente não precisava lutar tanto por remuneração, porque todos os governantes precisavam ver que o trabalho da gente é muito importante, que precisam dar melhores condições de trabalho. Temos professores que dão tudo de si e ninguém faz pelo financeiro, faz mesmo pelo amor à profissão.

Professora largou carreira após aluno agredi-la quando estava grávida

Joana* levou um chute na barriga de um estudante de 14 anos. Ela trabalhou por 20 anos em escolas públicas de Santos

(SPJoana* foi professora da rede pública de Santos, SP, diz que perdoa o aluno de 14 anos que a agrediu (Foto: Caio Kenji/G1)Joana* foi professora da rede pública de Santos (SP) e diz que perdoa o aluno de 14 anos que a agrediu (Fotos: Caio Kenji/G1)

Por 20 anos, Joana* foi professora em escolas públicas de Santos (SP). Chegou a fazer uma pós-graduação. Ainda guarda os agradecimentos de estudantes dedicados, que contaram com a sua ajuda para encontrar seus caminhos profissionais. Mas as lembranças ruins são as mais marcantes. Quando estava grávida de sete meses, levou um chute de um aluno de 14 anos. Devido a outras complicações de saúde, causadas pela agressão, acabou perdendo o bebê e nunca mais conseguiu voltar a uma sala de aula. Hoje, aos 52 anos, ainda convive com as sequelas físicas e psicológicas. “Eu achava que eu tinha nascido para ser mãe. Depois disso, aconteceu a agressão, uma agressão horrível”, conta. “Eu não consigo mais pisar na calçada de uma escola, ouvir o sinal.”

 

Para ela, a violência é um problema social. “O pai acha que manda o aluno para a escola e o professor tem que educar. Se o professor toma alguma atitude, ele vai à escola para bater no professor. Ele não acha que foi o filho que teve problema.” Conheça a seguir a história de Joana, uma das entrevistadas na série especial do G1 para o Dia dos Professores. Ela pediu para o nome ser trocado e não mostrar o rosto nas fotos.

 G1 - Como se tornou professora?
Eu escolhi o magistério, principalmente, pelo desejo de ser mãe. Entre todas as carreiras existentes, é a única que oferece uma licença médica quando você tem um filho doente. Eu tenho professoras na família. Quando era adolescente, via que minhas tias professoras conseguiam cuidar dos filhos. Elas podiam escolher o horário de trabalho e levar os filhos para a escola no mesmo horário em que elas estavam trabalhando, na mesma escola. Desde os 12 anos eu me preparava para ser mãe. Era o meu grande sonho, queria casar de véu e grinalda e ter filhos. Quando me formei, foi a maior emoção da minha vida. Trabalhei para pagar a minha faculdade. Depois, achei que duas coisas me fariam mais feliz: casar e ter filhos. Esses sonhos foram tirados de mim para sempre.

 G1 - Depois que se formou, já começou a trabalhar?
Eu comecei a dar aula durante a faculdade, porque eu tinha feito o magistério. Depois, eu fiz outra faculdade na área de humanas. Foram 20 anos dando aulas para ensino fundamental e ensino médio. Sempre trabalhei em escola pública, municipais e estaduais. Dava aula nos três períodos.

 G1 - Durante esse tempo que lecionou, como foi a sua experiência?
Foram muitas emoções. Eu passei pelas mais terríveis. Peguei piolho e peguei sarna. Quando eu peguei sarna comecei a sentir uma coisa estranha no braço. Fui ao médico e ele disse que fatalmente peguei na escola. O tratamento era uma coisa horrível.

Joana (Foto: Caio Kenji/G1)

 

G1 - E teve parte boa?
A parte boa é que eu tive alunos maravilhosos, principalmente no EJA [projeto de Educação de Jovens e Adultos]. A parte que eu mais vi resultado foi o EJA, onde você via pessoas que não tiveram oportunidade e chegavam lá com aquela vontade de aprender, de fazer alguma coisa. Você conseguir fazer alguns alunos passarem em testes para vidraceiros, ajudantes de marceneiro, fazerem uma medida para serem costureiras, é muito bom. Eu tenho certeza de que eu ajudei muita gente. De coisas boas, tenho cartinhas e bilhetes de agradecimento. Muitas coisas que assinei e gente me falou que ia levar para o resto da vida. Eu tenho meu relicário. De vez em quando eu sou reconhecida por algum aluno na rua. É muito legal. Mas eu não precisava ter pagado o preço que paguei. O preço que paguei foi muito alto.

G1 - O que aconteceu para você parar de lecionar?
Eu engravidei aos 39 anos, um pouco tarde, mas nada de absurdo. Eu estava namorando, era uma coisa rara. Dava aula nos três períodos e não tinha tempo. Não tinha sido planejado, mas quando aconteceu o rapaz assumiu, montou casa, aceitou, foi uma coisa boa. Eu me senti tão bem. Se soubesse que quando engravidasse eu teria tanta vitalidade, teria tido um filho aos 18 anos. Eu acordava antes do relógio, não tinha nenhum enjoo, era uma felicidade, era uma coisa tão maravilhosa, tão fantástica. Eu estava na minha casinha, com uma pessoa que gostava de mim, e minha barriga crescendo. O médico perguntou se eu queria entrar de licença por causa da minha idade, para descansar. Eu já tinha passado para o sétimo mês da gestação, e falei que estava me sentindo muito bem, que gravidez não era doença e que preferia ficar mais tempo trabalhando para depois ficar mais tempo de licença. Ia abrir mão de um dos empregos para criar a minha filha. Achava que eu tinha nascido para ser mãe, e sabia que ia ser tarde para ter outro filho. Depois disso, aconteceu a agressão. Foi uma agressão horrível. Foi um aluno de 14 anos.

G1 - O que você lembra disso?
Foi um chute rápido e certeiro na minha barriga. Na mesma época, eu também tive eclampsia [hipertensão específica da gravidez] e fiquei oito dias em coma induzido. Quando o meu marido chegou ao hospital, o médico perguntou se ele autorizava fazer o parto e salvar a criança, mas que não garantia a minha vida. Por causa da pressão, eu não podia encarar uma cesárea. Meu marido falou para ele me salvar. Em dois dias, a minha filha morreu na minha barriga e eu fiquei oito dias com a pressão muito alta. Fui direto para o centro cirúrgico fazer a cesariana. Eu acordei e não tinha mais criança. Eu tentei salvar o meu útero por dois anos, mas perdi. Fiquei com várias sequelas, como hipertensão e depressão. Meu colesterol subiu muito. Eu passei a ter fibromialgia, triglicérides altíssimo, passei a ser uma pessoa mal humorada.

G1 - Você demorou para procurar ajuda?
No início, o chão saiu de mim. Tem aquela revolta. Você quer processar, matar, mas eu tenho uma amiga que era professora, trabalhava comigo na época e é muito espiritualizada. Eu chamo de xará, porque ela tem o mesmo nome que eu. Ela foi a única pessoa que me ajudou e me ajuda até hoje. Ela me leva em palestras, me indica livros e não me abandonou.

G1 - Você tentou voltar a trabalhar?
Eu tentei voltar um ano após a agressão. No primeiro dia eu passei muito mal. No segundo dia, eu fui embora dentro de uma ambulância. Meu cardiologista falou que eu não tinha condições de voltar a trabalhar.

G1 - Você se aposentou?
Eu prefiro dizer que eu desisti.

G1 - Sua amiga te deu força nessa época?
Ela me encorajou a não querer brigar, embora isso seja muito difícil.

G1 - Você perdoa o garoto que te agrediu?
Eu perdoo esse rapaz. Nem sei se está vivo. Ele já tinha crimes na época. Uma pessoa que tem crimes não tem uma vida muito longa. Foi a primeira pessoa que eu perdoei e depois eu entendi que, por alguma razão, eu não tenha vindo para essa vida para ser mãe. A única coisa que eu não entendi é que se eu não vim para essa vida para ser mãe por que Deus me colocou esse desejo tão latente. Eu estou procurando entender.

G1 - Você voltou a dar algum tipo de aula?
Algumas palestras. É a minha área agora. Eu hoje posso dizer que sou uma consultora de saúde integral para o espírito e o corpo. Eu estudo cristais, naturopatia [medicina natural], evangelho segundo o espiritismo, estudo a cabala, numerologia. Para me ajudar. Eu já diminui muito os meus remédios. Eu tomava 16 comprimidos por dia. Hoje eu tomo 6.

G1 - Para que os remédios?
Cada um para uma coisa. Eu tomei muito psicotrópico. Eu já tomei muitas bombas pesadas. Hoje eu tomo um antidepressivo e um ansiolítico [que controla a ansiedade]. Não tomo mais estabilizador de humor e remédio para dormir. Tomo dois para colesterol, um remédio para pressão e uma vitamina. Pretendo eliminar os dois do colesterol e, gradativamente, os dois psicotrópicos.

G1 - Há quanto tempo você parou de dar aula?
13 anos.

G1 - Nesses 13 anos, você pensou em recomeçar?
De jeito nenhum. Eu não consigo pisar na calçada de uma escola, ouvir o sinal. Se eu estiver em um pizzaria e ouvir o barulho de adolescentes comemorando um aniversário, eu mando embrulhar minha pizza e vou embora. Eu tenho pânico. Eu não vou para a praça de alimentação de shoppings aos fins de semana. Eu não consigo escutar o barulho de adolescentes. Eu tenho pânico. Não consigo ouvir rap, funk, dancinhas. Ver meninos de bermuda caída mexe comigo. Eu só consigo ouvir música até a década de 90. Eu travei.

G1 - Você acredita que a violência na escola é um problema social?
Sim, é um problema social. O pai acha que manda o aluno para a escola e o professor tem que educar. Se o professor toma alguma atitude, ele vai à escola para bater no professor. Ele não acha que foi o filho que teve problema. Eu respondi a um processo por causa de uma aluna que estava despida na classe dançando na boquinha da garrafa. Eu mandei ela subir o short e cobrir os seios. A mãe veio dizer que eu chamei a filha dela de gorda. A aluna estava se mostrando sensualmente dentro da sala, a professora chama a atenção e leva um processo porque chamou a ‘santa’ de gorda. O aluno sempre tem razão.

G1 - A educação fez e faz parte da sua vida. Tem lembranças boas e, infelizmente, outras bem ruins. Qual a sua mensagem para o Dia dos Professores?
Eu acho que o problema vem de cima. Enquanto os nossos governantes não mudarem a estrutura, as condições, a valorização dos professores, vai continuar assim. Enquanto esse sistema de progressão continuada não acabar, vai ser péssimo. Eu acho que os professores têm que encontrar uma maneira de lutar pelos direitos deles, porque eles não vão conseguir existir como seres humanos. Eles não vão conseguir se impor como profissionais respeitáveis.

Em 1988, quando [o então governador de São Paulo] Orestes Quércia colocou o ciclo básico onde a criança passava da primeira para a segunda série sem saber ler, ele deu o primeiro passo para a desvalorização total do magistério. Quando uma criança passa da primeira para a segunda série sem saber ler, ela não aprende português, geografia, história e nem matemática. Nunca mais na vida. Depois, em 1996, veio a progressão continuada e se disse que ninguém podia usar a caneta vermelha. O professor só podia usar a caneta azul. O professor virou capacho de aluno. O aluno pode fazer xixi e cocô na cabeça do professor. Acabou o sentido de ser mestre. O que o professor vai fazer dentro de uma sala de aula onde o aluno pode fazer o que quiser e, mesmo assim, vai passar de ano? Ou o professor tem que tomar uma atitude para se valorizar ou vai procurar outra profissão e deixa o país sem professor. Eles vão ter que arranjar uma forma de valorizar o professor para os professores voltarem à sala de aula. É isso que eu digo para o professor.

 'Educação é importante demais para ficar só com o professor', diz Jailson

Criado em uma favela, ele virou professor universitário e fundou instituto. 'Ser professor permite que se torne mais humano', diz Jailson de Souza.                 

Jailson de Souza e Silva é professor da UFF e diretor do Observatório de Favelas (Foto: Alexandre Durão/G1)Jailson de Souza e Silva é professor da UFF e diretor do Observatório de Favelas (Foto: Alexandre Durão/G1)

Criado em uma favela do Rio, Jailson de Souza e Silva, 54 anos, foi o primeiro integrante da sua família a entrar na universidade. Ele é o caçula de cinco irmãos e viveu na comunidade da Mangueirinha (hoje um conjunto habitacional), em Brás de Pina, Zona Norte da cidade. Pelas bandas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se formou em geografia, sua origem causava estranheza. “Era o único aluno favelado, um ser exótico, recebia olhares enviesados. Um dia uma colega me falou: 'queria tanto ir na sua casa, nunca entrei em uma favela'. Eu respondi: 'ah, jura? Lá tem leão, girafa, zebra'. Ela ficou sem graça.”         

Jailson leciona há 32 anos, já foi docente no ensino fundamental e médio na rede particular e privada no Rio e há 23 é professor do curso de licenciatura em geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Fez mestrado e doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) sobre educação popular e pós-doutorado nos Estados Unidos. Autor de vários livros sobre educação, entre eles “Por que uns e não outros?”, sua tese de doutorado que traça a trajetória de estudantes da Maré que chegaram à universidade, e se tornou referência na área de desempenho escolar.

Defensor de políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades social, Jailson criou em 2001 o Observatório de Favelas, uma organização social que tem a missão de batalhar pela garantia desses direitos. Confira a seguir a entrevista parte do especial do G1 no Dia do Professor.

G1 - Por que decidiu lecionar?
Jailson de Souza e Silva - Sou primeiro membro da minha família a entrar na universidade. Até então não tinha entrado ninguém com nível superior na minha casa, nenhum médico, arquiteto ou advogado. O meu mundo, o da periferia do Rio de Janeiro, era muito restrito em termos de acesso a esse grupo. E eu comecei a frequentar a igreja com 13, 14 anos, e havia algo muito grande na valorização do conhecimento. Meu pai era um homem semiletrado, mas valorizava muito o conhecimento. Então se tornou natural para mim ter um tipo de ofício, trabalho, profissão, que eu pudesse estar aprendendo e ao mesmo tempo partilhando conhecimento. Ser professor se tornou uma decisão muito definitiva para mim já na adolescência. 

Sempre estudei na rede pública da periferia, tudo que aprendi devo à rede pública. Em 1984 me formei em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas já dava aulas para o ensino médio à noite. Assim que me formei dei sorte que abriu um concurso na rede municipal do Rio, passei, e nesta época já tinha muita clareza: "Vou viver com dignidade como professor".

G1 - Teve de conciliar mais de um emprego?
Jailson de Souza e Silva - Dava aulas na rede municipal do Rio e fui aprovado no concurso da universidade federal. Trabalhava nos dois empregos. Quando passei para o mestrado em educação na PUC-Rio, larguei a universidade federal, depois até ganhei uma bolsa. Um dia ouvi minha mãe falando para a vizinha que eu era um gênio, pois até me pagavam "um dinheirão" para eu estudar. Ela ficou espantada quando eu falei que ganhava para estudar. Terminei o mestrado e fiz um novo concurso para a UFF, passei e comecei trabalhar com formação de professores de geografia em dedicação exclusiva, onde estou há 23 anos.

G1 - O que te motivava?
Jailson de Souza e Silva - A igreja trabalhava muito com essa questão do importante é você "ser" e não "ter", na contramão da lógica da valorização do consumo. Meu pai era semiletrado, farrista, boêmio, mas gostava muito de ler, e investia prioritariamente na educação como forma de ascensão social. Ele teve cinco filhos, todos homens, eu sou o caçula, ele ganhava muito pouco, era o único provedor, mas não permitia que ninguém trabalhasse até 18 anos. Na cabeça dele, todo mundo tinha de terminar o ensino médio para entrar para as Forças Armadas. A questão do conhecimento era fundamental na minha vida, lia muito, adorava ler, era um leitor voraz e compulsivo, o que me estimulava muito.  

Jailson de Souza e Silva é professor da UFF e diretor do Observatório de Favelas (Foto: Alexandre Durão/G1)

G1 - Os problemas como salário baixo, estrutura deficitária das escolas, entre outros, fizeram com que você pensasse em desistir da carreira em algum momento?
Jailson de Souza e Silva - Não, porque tinha um projeto muito claro de ser professor de universidade. Dizia para o meu pai que para mim o auge da carreira era ser professor universitário com doutorado de uma universidade federal. Era a minha questão central.

G1 - Já foi vítima de ofensa ou violência na sala de aula?
Jailson de Souza e Silva - Nunca vivi, e acho que há exagero grande sobre isso. Sempre existiram episódios de violência, me lembro quando criança, uma vez, os alunos começaram a tirar os tacos do chão da sala e jogar na classe vizinha. Foi um furor. Mas eu, enquanto professor, sempre trabalhei muito essa questão da relação ética, com muito papo cabeça com os alunos.

Teve uma oportunidade em que eu trabalhei com dez turmas de 5ª série. Quinta série é o horror da escola, professor geralmente odeia trabalhar [neste nível]. As crianças me desafiavam muito. Como estratégia, negociava as notas, com autoavaliação, orientava os alunos sobre seu poder e como o reconhecimento desse poder tem de ser levado em conta. Não tinha insegurança até pelo fato de ter vivido na periferia, tinha muita conversa e não tinha problema em não saber algo.

Quando se fala em violência na escola é sempre a violência dos alunos, não se fala da violência sobre o aluno. A discussão tem de ser levada em conta em todos os níveis. Os conflitos só se tornam violência quando não há um caminho de mediação deles. Eu conheço várias alunos da favela que sabem quando o professor tem medo. O professor tem preconceito e se sente intimidado porque trabalha com um conjunto de juízo de que o aluno é um criminoso em potencial e não tem civilidade. Então é importante levar em conta tanto a violência promovida pelos alunos, quanto pelos professores e pela direção.

G1 - Vale a pena ser professor?
Jailson de Souza e Silva - A imensa maioria de professores que eu conheço melhora de vida em relação à sua origem, pois permite a ascensão social e econômica. Na carreira de professor, assim como a de advogado, tem as pessoas que ganham pouco e as que ganham bem, que melhoram as condições de vida. Mas, principalmente, acho que ao contrário do trabalho do policial, que lida com as piores mazelas, ou o bancário, que tem um trabalho repetitivo, o trabalho de professor permite que você se torne cada vez mais humano. O sentido é formar cidadãos cada vez mais plenos, que tenham ética e habilidades cognitivas desenvolvidas. Isso ninguém me tira. Ser professor permite que a gente se torne um ser mais humano, mais sensível, mais generoso, mais educado no melhor sentido do termo. Vamos torcer para a valorização do professor vir cada vez mais rápida. Educação é importante demais para ficar só na mão do professor, tem de ser um compromisso da família, da comunidade, das lideranças

'Meu negócio agora é tutu e torresmo', diz ex-professor

Antonio José Rossi lecionou por 21 anos até abrir restaurante mineiro. De SP, ele e a esposa, também ex-docente, trabalham juntos no negócio.                

Antônio José Rossi e Graças Oliveira Rossi dizem que não teriam io mesmo respeito dos alunos (Foto: Victor Moriyama/G1)
Antonio e Graça Rossi dizem que não teriam o mesmo respeito dos alunos (Fotos: Victor Moriyama/G1)

Foram 21 anos lecionando e lá se vão 25 como dono de restaurante de comida mineira em São Paulo. Do tempo na sala de aula, Antonio José Rossi, de 64 anos, fala com carinho. “Tenho ótimas lembranças, fui um professor muito feliz.” Deixou a carreira aos 46, quando se aposentou, e estava insatisfeito com as mudanças no método de ensino da escola católica da rede particular em que lecionava em São Paulo. Foi quando se juntou à esposa, Maria das Graças Oliveira Rossi, de 61 anos, que também foi professora, para tocar o restaurante de comida mineira. Ambos moram em São Paulo e só atuaram na rede particular de ensino.    

Mineira, Graça é boa cozinheira, sempre quis ter um comércio na área de gastronomia, e aproveitou a deixa, quando uma das escolas que trabalhava fechou, para abrir o primeiro restaurante. Três anos depois, o marido se juntou ao negócio. Hoje são 38 anos de casamento e uma parceria de sucesso. Apesar de se lembrarem com saudade dos tempos de docência, não voltariam a dar aula. Acham que hoje não teriam o mesmo respeito dos alunos e acompanham os percalços da profissão através das histórias de dezenas de amigos que seguem na carreira. Leia a seguir mais uma entrevista do especial do G1 do Dia dos Professores.

G1 - Por que decidiram lecionar?
Antonio José Rossi - Estudei letras por acaso. Nasci no interior do Espírito Santo, fui seminarista até os 18 anos, meus pais eram muito pobres, não podia estudar medicina ou engenharia. Letras era o curso mais em conta. Me mudei para São Paulo e fui convidado para dar aulas em colégio marista, por causa do seminário tinha muitos conhecidos. Comecei dando aulas de ensino religioso, depois de português e também fui coordenador do ensino fundamental e médio. Foram 21 anos.

Maria das Graças Oliveira Rossi - Me formei em psicologia, mas fui dar aulas como professora primária porque já havia me casado com o Rossi e podíamos tirar férias juntos.

G1 - Gostavam da profissão?
Antonio José Rossi - Eu vibrava como professor e era muito bom. Fui coordenador muito novo, de professores muito mais velhos que eu. Fazia dinâmicas, brincadeiras, teatro. Tinha a batalha dos verbos, dividia a classe em duas turmas e os alunos tinham de falar as conjugações. Os que respondiam errado ou não sabiam iam sentando. Levava música para aula de redação, estimulava as crianças. Adorava. Muitos ex-alunos agora frequentam meu restaurante.
Maria das Graças Oliveira Rossi - Sim, era muito bom, gostava dos meus pequenos. Me emociono ao me lembrar de alguns. 

Rossi (Foto: Victor Moriyama/G1)

G1 - Já foram vítima de ofensa ou violência? Têm alguma lembrança ruim?
Antonio José Rossi - Não. Os alunos tinham disciplina e o ensino da escola era rígido. Hoje é diferente. Meu maior problema era controlar o boné e o brinco na orelha [dos meninos] na sala de aula. Hoje tem celular, iPad. Outro dia uma criança muito pequena chegou no meu restaurante pedindo a senha do wi-fi para usar o iPad, aquilo me deu um frio na espinha de imaginar como é a sala de aula de hoje. Ainda bem que meu negócio hoje é tutu e torresmo.
Maria das Graças Oliveira Rossi - Tinha mais autoridade e boa convivência com os alunos. Era muito bom, mas hoje o professor não tem mais valor.

G1 - Qual foi o momento em que vocês disseram: "Não dá mais"?
Antonio José Rossi - A escola que eu trabalhava começou a mudar um pouco o método de ensino e comecei a sentir que teria problemas, fiquei um pouco desestimulado. Passaram a implantar o construtivismo e os professores começaram a ser mais exigidos no sentido de fazer o aluno criar mais. No ensino fundamental seria mais viável, mas no ensino médio não. Teria de ser uma mudança mais devagar, menos brusca. Nós, que levávamos a educação a sério, seguíamos uma linha mais tradicional, voltada ao vestibular, nos sentimos meio obsoletos. Os "modernosos" foram mais valorizados. Eu até poderia questionar, mas já estava com um pé no restaurante. Também estava me aposentando e, em escola, quanto mais velho, menos valor você tem. A Graça havia aberto o restaurante, estava indo bem, estava ligado a ele também. Saí da escola em 1995, deixei um carta de despedida, tem aluno que guarda até hoje. A escola era minha segunda casa. Alguns professores ficaram com inveja da minha decisão, diziam que pulei fora na hora certa.
Maria das Graças Oliveira Rossi - Sempre pensei em ter um restaurante. Foram 15 anos como professora primária, a escola que trabalhava fechou. Abri o meu negócio e foi muito difícil no começo, sabia cozinhar bem, mas não tinha experiência com mais nada. Crescemos devagar.

G1 - Voltariam a dar aulas?
Antonio José Rossi - Não para depender do dinheiro, só se fosse algo como voluntário em um trabalho beneficente, para alfabetizar quem quer aprender mesmo. Aprendi a dar aulas por prazer, mas antigamente a educação era papel do professor, da escola e da família. Hoje o pai paga a escola para o professor educar o seu filho e você é o culpado por tudo. Ninguém mais valoriza o professor. Aqui no meu restaurante é diferente, eu mando e trato meus funcionários muito bem.
Maria das Graças Oliveira Rossi - Não voltaria, não teria mais paciência. Não sinto alívio por ter deixado a carreira, mas também não sinto saudades. Eu tinha o controle da sala de aula, mas já naquela época ouvia colegas dizendo que tinha alunos que os tratavam como se fossem seus funcionários.

Saber que a educação gera inclusão social é a motivação, diz professora

Maria Botelho teve prêmios em todas as edições de olimpíada.
Professora de matemática em Uberlândia, ela diz que fez a 'escolha certa'.
            

Maria Botelho diz que sempre trabalhou com a certeza de que a educação pode mudar o mundo  (Foto: José Neto/G1)Maria Botelho diz que sempre trabalhou com a certeza de que a educação pode mudar o mundo (Foto: José Neto/G1)

Na primeira vez em que cogitou ser professora, Maria Botelho Alves Pena quase desistiu da ideia diante da perspectiva de baixos salários. Hoje, com 53 anos de idade e mais de 30 deles em sala de aula, e vários prêmios, ela está feliz por ter acreditado na vocação. "Fiz a escolha certa e vivenciei bons momentos na minha carreira."      

Maria assumiu uma missão difícil: ensinar matemática, uma disciplina complexa e odiada por muitos estudantes. Em vez de se deixar abater pelas dificuldades, encontrou prazer no lado desafiador da profissão. Foi isso que a fez adiar por oito anos o afastamento preliminar, uma espécie de "pré-aposentadoria". "A minha motivação sempre foi o desafio de conseguir despertar ou acentuar o gosto dos alunos pela busca de conhecimento, acreditar que eu posso inspirá-los a ir além dos limites que eles mesmos se impunham", afirma.

Formada em matemática, com especialização e mestrado pelo Instituto Nacional de Matemática Pura Aplicada (Impa), a professora começou a carreira em Iraí de Minas (MG), e há 20 anos leciona na Escola Estadual Messias Pedreiro, em Uberlândia. Ela foi premiada em todas as edições da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) até 2013 pelo desempenho de seus alunos na disputa. A seguir, conheça a história de Maria, uma das entrevistadas para o especial do G1 sobre o Dia dos Professores.

G1 – Por que você decidiu lecionar?
Maria Botelho Alves Pena – Eu sempre gostei de matemática, mas a princípio não tinha certeza se realmente queria ser professora, principalmente pela questão salarial. Hoje posso dizer que fiz a escolha certa e vivenciei bons momentos na minha carreira.

G1 – Você leciona há quanto tempo?
Maria Botelho – Eu comecei em fevereiro de 1981 e trabalhei como professora de matemática por mais de 30 anos. Há uma semana me afastei da sala de aula. Na verdade, eu poderia ter me afastado há mais de oito anos. De acordo com as leis de Minas Gerais, o professor pode se afastar e prestar outro tipo de serviço ao completar 25 anos de sala de aula, mesmo não tendo a idade mínima de 50 anos. No entanto, optei por continuar com as turmas porque sempre considerei que a sala de aula era um ambiente motivador, desafiador e prazeroso.

G1 – Você atuava na rede pública ou privada?
Maria Botelho – Eu já trabalhei na rede particular, mas desde 1990 atuo apenas na rede pública estadual.

G1 – Diante da sua experiência, qual é a diferença entre a rede pública e a privada?
Maria Botelho – Tanto a rede pública quanto a privada têm alunos interessados e alunos que não têm compromisso com o conhecimento e precisam ser despertados. Mas as condições da rede pública são piores. A carga horária, por exemplo, é menor do que a de uma escola particular.

G1 – Como você lida com o estereótipo da matéria que ministra, a matemática?
Maria Botelho – É uma questão cultural. Antigamente, o aluno já chegava com a ideia de que matemática é difícil, só para gênios. Hoje acredito que essa ligação está sendo quebrada, pois percebemos que a maioria dos nossos alunos tem optado por cursos na área de exatas, em diversas engenharias. Tudo depende da forma como você conduz a disciplina. Eu sempre disse que, se resolver um problema fosse fácil, alguém já teria descoberto vacinas para Aids e câncer. O problema da matemática é que é uma matéria cumulativa, e o aluno tem que conhecer determinados assuntos de séries anteriores. Nós vivemos em uma época em que muitos não trazem o conhecimento necessário, então devemos resgatá-lo e oferecer condições para que eles adquiram competências e habilidades essenciais para avançar. Às vezes, o crescimento é assustador depois que há esse comprometimento.

G1 – Você tem ou tinha que conciliar mais de um emprego?
Maria Botelho – Eu já tive dois cargos no Estado e ainda dava aula numa escola particular. Em 1990, optei por ficar com os dois cargos do Estado, dado o planejamento, a realização das atividades múltiplas para atender alunos em situações diferentes e aos projetos que fui desenvolvendo na escola. Com isso, acabei tendo jornada tripla, sacrificando finais de semana e o convívio com a família.

 G1 – Isso não te causou nenhum estresse ou problema de saúde?
Maria Botelho – Acho que sou uma pessoa privilegiada, pois não tenho nenhuma licença de saúde, a não ser a de gestação.

G1 – Sabemos que os professores da rede pública têm salário baixo, infraestrutura deficitária etc. Mesmo assim, o que te motiva?
Maria Botelho – Realmente, o piso nacional para 40 horas é vergonhoso. Mesmo assim, criaram um subsídio e as vantagens adquiridas ao longo dos anos foram incorporadas [ao salário] para dizer que se pagava o piso. Se a gente for olhar pela questão salarial, é extremamente desmotivador. Eu acho que tem outras compensações. A minha motivação sempre foi o desafio de conseguir despertar ou acentuar o gosto dos alunos pela busca de conhecimento, a ousadia de acreditar que eu posso inspirá-los a ir além dos limites que eles mesmos se impunham e, principalmente, a certeza de que a educação promove a inclusão social e pode mudar o mundo. Acho que todas essas motivações minimizaram a minha indignação com o baixo salário e a falta de condições de trabalho.

G1 – Você acredita que a sociedade tem ciência da desvalorização do profissional da educação?
Maria Botelho –
A própria sociedade desconhece a desvalorização do professor e a dificuldade que ele encontra. Por exemplo, eu tive um aluno de 3º ano do ensino médio que, em 2011, foi aprovado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em matemática e engenharia civil. Ele me falou que o sonho dele é trabalhar com o ensino fundamental, então ele desistiu da engenharia. Na época, os colegas de sala dele me pediram para não deixá-lo ser professor. Com isso, a gente nota que não há incentivo para uma graduação de licenciatura e que é mais fácil desistir ou abandonar a profissão.

G1 – Teve algo nesses mais de 30 anos de profissão que te desmotivou?
Maria Botelho – Sempre procurei olhar para o lado que me interessava e fazer que os alunos sentissem que valorizávamos aquele que queria aprender, e não o contrário. Com isso, houve a criação de uma cultura diferenciada, e o momento do 'não dá mais' não existiu.

G1 – Você já foi vítima de agressão, violência ou ofensas na sala de aula?
Maria Botelho – Felizmente, não. Já trabalhei em escolas em várias cidades e tenho o privilégio de falar que eu e meus alunos tivemos um convívio respeitoso.

G1 – Você acredita que mesmo afastada da sala de aula vai conseguir se desvincular da educação?
Maria Botelho – Mesmo estando afastada, eu assumi o compromisso com "meus alunos" da Escola Estadual Messias Pedreiro que vamos ter um dia de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Além disso, já estamos com um encontro marcado após o resultado da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) para uma confraternização. Eu estarei envolvida de alguma forma com o compromisso de melhorar a qualidade da educação básica. Para 2015, por exemplo, eu já aceitei o convite de ajudar na organização do 1º Simpósio da Região Sudeste de Formação do Professor de Matemática da Educação Básica, que será realizado em abril. E já há outras coisas que estou formatando e analisando. 

G1 – Fale um pouco do seu papel na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, na qual tem se destacado desde que ela teve início.
Professora Maria Botelho (Foto: José Neto/G1)
Maria Botelho –
 A olimpíada é uma realização do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada e tem como alguns dos seus objetivos descobrir talentos para a ciência e a tecnologia, melhorar a qualidade da educação básica e promover a inclusão social por meio da difusão do conhecimento. Desde a sua criação, em 2005, fui professora responsável na Escola Messias Pedreiro e, em função do desempenho dos meus alunos, fui premiada em todas as edições até 2013. O resultado deste ano sai apenas em dezembro. Pode ser que eu não seja premiada em 2014, mas já me sinto premiada, pois eu tinha 28 alunos classificados para a segunda fase. Eles se envolveram no processo. Eu acho que conseguimos tornar a olimpíada motivadora e não discriminatória. Fizemos ações em três pilares: mobilização, preparação e comemoração. Quando falo em comemoração não é comemorar o prêmio, e sim o crescimento. Os resultados positivos obtidos na Obmep me fazem defender uma olimpíada trabalhada em sala de aula, com todos os alunos. Trabalhar mais raciocínio do que conhecimento. A própria sociedade e as empresas estão valorizando a questão do raciocínio lógico desenvolvido, pois ele ajuda a produzir tecnologia para o país.

G1 – Teve algum momento nesses mais de 30 anos de carreira que te marcou de alguma forma?
Maria Botelho –
Eu acho que é difícil de falar em um momento mais especial. São vários momentos marcantes, e cada um tem a sua beleza. Mas não vou conseguir esquecer o dia em que eu entrei e o dia em que saí da rede pública estadual. É uma coisa que vai ficar.

G1 – Qual mensagem você quer deixar neste Dia dos Professores?
Maria Botelho – Primeiro, quero parabenizar todos os profissionais da educação que têm a coragem de enfrentar a difícil missão que é educar, que driblam as adversidades e que fazem a diferença. A data deve ser um convite para que todos nós – professores, pais, alunos, sociedade e dirigentes – repensemos o nosso compromisso com a educação. Que a educação deixe de ser a estrela só em época de eleição. Eu gostaria de agradecer a todos que me deram a oportunidade de brindar a carreira marcada por momentos gratificantes, de um modo especial a meus eternos alunos. Também não poderia deixar de reconhecer o apoio incondicional da minha família, que foi muito importante para que eu tivesse a tranquilidade necessária para desempenhar o meu papel. 

 http://g1.globo.com/educacao/dia-do-professor/2014/index.html




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