A arte e a paixão de ensinar
No Dia do Professor, seis educadores brasilienses explicam o amor pela profissão e o prazer de dedicar a vida à sala de aula. Em comum, histórias de superação e de homenagem aos mestres
Fonte: Correio Braziliense (DF) 15 de outubro de 2014
“Se a Educação, sozinha, não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda.” Hoje, 15 de outubro, dia dedicado aos Professores, a frase do Educador Paulo Freire é, ao mesmo tempo, uma homenagem aos mestres e um convite à reflexão. Na reportagem, seis mestres de um total de 67,5 mil no Distrito Federal comentam sobre o ofício de ensinar, as dificuldades e as inspirações para seguir em frente na profissão, geralmente mal remunerada.
Os Educadores Célio da Cunha, 71 anos, e Carlos Benedito Pereira da Rocha, 69, têm em comum a vasta experiência no Ensino. O primeiro se aposentou, mas continua nas salas de aula. O segundo tem somente mais um ano antes da aposentadoria compulsória como Professor do Estado. “Ainda não sei o que vou fazer. Talvez trabalhar como voluntário com Alunos com dificuldade de aprendizado”, planeja Carlos. A motivação para continuar? “O gosto pela Escola. Conheço muitos Professores reclamando das condições de trabalho, das turmas grandes, da falta de estrutura das instituições. Mas vejo poucos com projetos para sair. A maioria ama o que faz”, acredita. Inspirado na adolescência por um Professor de filosofia, o mestre Célio, de pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Católica, encanta jovens e adultos por onde passa. Na biblioteca de casa, guarda cartas de ex-Alunos. A homenagem mais recente foi há dois anos, no encerramento das aulas de uma turma de mestrado. “Eles entregaram uma caixa bonita, toda enfeitada. Até pensei que fosse chocolate. Quando abri, encontrei cartas escritas de próprio punho. Você precisa ver que coisa linda. Cada uma com letra diferente, com um estilo”, conta.
Ao avaliar o que mudou na Educação ao longo dos anos, Célio conta que o passar do tempo proporcionou uma lenta evolução em direção ao verdadeiro papel de um Professor. “É o (papel) de ajudar os seus Alunos, não somente nos processos de aquisição organizada do conhecimento como também em relação à ética e à cidadania. Ética, cidadania e Educação constituem um trinômio fundamental para a profissão Docente”, defende.
Idealismo Independentemente do sexo, da idade, do estilo e da origem, o idealismo parece mover quem dedica a vida ao Ensino ou quem começa a trilhar esse caminho. O jeito despojado e o vocabulário dEscolado são algumas das ferramentas do Professor Ramon Silva Ferreira, 35anos, 10 deles dedicados à profissão. O sonho da mãe de ser Educadora — ela vendia balinhas em frente ao colégio onde ele estudava — e o encontro com Claristina, a inesquecível Professora de geografia, o inspiraram a escolher o ofício. E a frase “educar é transformar palavras em atitudes”, ouvida tantas vezes da boca de Claristina, virou um lema na vida de Ramon. Cabe a ele detalhar aos Alunos de uma Escola de Ceilândia os mistérios das forças centrípeta e centrífuga. “Não pretendo criar especialistas em física, mas também não quero empurrar a matéria com a barriga”, afirma.
Aos 36 anos, o Professor Gabriel Fernandes tem dias movimentados. Ele acumula dois empregos e arranja tempo para fazer trabalho voluntário. Na quadra de esportes do Colégio Mackenzie, onde ensina Educação física na parte da manhã, ele ensina handibol para comunidades carentes, à noite. “A profissão é sofrida, tem muito trabalho e pouco reconhecimento. Mas, quando um Aluno sorri e te dá um abraço, parece que todo o esforço valeu a pena.”
Ensinar a tolerância e a solidariedade é meta perseguida por Daniele Leite de Souza, 34 anos. Desde 2008, ela leciona na rede pública. Cercada por Alunos da Escola Classe do Núcleo Bandeirante, ela está atenta ao bullying. “A Escola é o lugar certo para mostrar que as diferenças são normais. Promover trabalhos e discussões sobre o tema ajudam a diminuir o bullying e as brigas entre as crianças.”
A lógica da matemática, o terror de muita gente por aí, é como música para o Professor do Departamento de Matemática da UnB Diego Marques, 30 anos. “Eu tento incentivar mais os meus Alunos e repassar a paixão que eu sinto pela matemática. Percebo que muitos se encantam com a disciplina quando são ensinados de uma perspectiva mais ampla”, conclui.
Protesto da rede particular
Em 1963, o então presidente João Goulart instituiu por meio de um decreto que em 5 de outubro seria celebrado o Dia do Professor. Nessa data, algumas Escolas preferem não abrir as portas, enquanto outras antecipam o feriado ou até o ignoram. Pelo menos 200 Docentes da Educação básica de rede particular de Ensino do DF aproveitarão a folga para protestar pelo aumento de salários, congelados há mais de dois anos. Entre os argumentos para a manifestação, está o aumento das mensalidades, que crescem até 20%, enquanto o ganho permanece inalterado. A manifestação será às 14h em frente ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT), no Setor de Autarquias Sul.
Professor também é psicólogo.
Os Alunos vêm de realidades diferentes e demandam cuidados individuais. O desafio é fazer com que se respeitem. Combater o bullying é uma das coisas que posso fazer para melhorar a convivência entre as pessoas no futuro” Daniele Leite de Souza, 34, seis anos como Professora. Atua na Escola Classe 4 do Núcleo Bandeirante
Parece-me que houve uma democratização do Ensino. A Escola hoje no Brasil está quase chegando à universalização do Ensino fundamental. Nos anos 1950 e 1960, não era todo mundo que estudava, só os mais abastados” Carlos Benedito Pereira da Rocha, 69 anos, 46 de docência, é Professor no Centro de Ensino fundamental 1 do Lago Norte
A rotina de um Professor é muito intensa, e a profissão, pouco reconhecida. Para lecionar em qualquer esfera, é preciso ter muita paixão e força de vontade. A maior recompensa é a gratidão e o reconhecimento do Aluno” Gabriel Fernandes, 36 anos, sendo 16 como Professor de Educação física. Leciona no Mackenzie
O Aluno que me incentiva é o esforçado, o que, mesmo com um série de dificuldades, está ao meu lado, com os olhos colados em mim. É aquele estudante que trabalha pela manhã, mas vai à aula à tarde e, mesmo cansado, está na sala, pois acredita na Educação. Educar é transformar palavras em atitudes” Ramon Silva Ferreira, 35 anos, 10 de profissão. Trabalha no CEM 12 de Ceilândia
O maior desafio do Educador é o de continuar a ser significativo em sala de aula, o que requer contínuo aperfeiçoamento, por um lado. Por outro, perseguir sempre o ideal de Rousseau, ajudar a formar pessoas, ensinar a ser gente, ensinar a aprender a ser (gente)” Célio da Cunha, 71 anos, 47 dedicados à Educação. É Professor de pós-graduação na UnB e na Universidade Católica
No caso específico de Professor de matemática, temos de exorcizar o medo da matéria. É possível transmiti-la de uma forma mais clara e com consequências motivadoras. Como eu digo, é preciso ouvir a música da matemática. E muitos Alunos estão abertos a ouvi-la” Diego Marques, 30 anos, há 6 anos como Educador. É Professor de matemática da UnB
Opinião: Dinheiro não é problema
Ruy Martins Altenfelder Silva “Em São Paulo existem 300 mil Professores e só quem deu aula sabe como essa profissão é difícil. Você entra na sala e enfrenta uma audiência que nem sempre é amistosa. E essas 300 mil pessoas fazem isso todos os dias. A expressão guerreiro da Educação vale para cada uma delas.” Essas são palavras de José Goldemberg, eleito Professor Emérito 2014 — Troféu Guerreiro da Educação — Ruy Mesquita, numa homenagem do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) e do jornal O Estado de S. Paulo extensiva a todos os Professores do Brasil.
Hoje, os Professores raramente recebem o reconhecimento merecido pela profissão que exercem, quase sempre enfrentando adversidades de toda ordem, em especial no Ensino básico. Até há algumas décadas, contavam com o apoio dos governantes, a gratidão dos pais e o respeito dos Alunos. Mas, numa perniciosa inversão de valores, passaram a ser agredidos por Alunos, questionados por pais, mal remunerados e não amparados na medida necessária pelos governantes. Um dos resultados é o desprezo dos jovens pela carreira, tanto que, de 2012 a 2013, houve uma queda de 22 mil concluintes dos cursos de licenciatura, segundo o Censo do Ensino Superior. Ou seja, centenas de Escolas do Ensino básico continuarão sem Professores para disciplinas estratégicas, como matemática e português, entre outras.
Há mais fatores desestimulantes, como precariedade ou ausência de segurança dentro e fora das Escolas; despreparo de gestores; transferência pelas famílias da responsabilidade pela transmissão ao Aluno de valores pessoais e sociais, de noções de cidadania e mesmo de questões de saúde.
Além disso, é comum pais isentarem os filhos quando estes são punidos por faltas graves, em mais um exemplo da cultura de impunidade que viceja no país. São pais que criticam os Professores e não pronunciam uma palavra de recriminação, correção ou orientação contra malfeitos dos filhos, muitas vezes graves, como agressões físicas e morais ao Docente, aos colegas ou ao patrimônio físico da instituição.
Além de prejudicar a qualidade de Ensino, as deficiências da gestão Escolar, em especial na rede pública, acabam também por prejudicar o Professor que, na melhor das hipóteses, se vê privado de condições adequadas para exercer seu ofício. Primeiro ponto criticado por especialistas: a prevalência de indicações políticas para cargos de gestão, sem critérios de competência ou formação profissional.
Dois recentes editoriais do jornal O Estado de S. Paulo colocam o dedo na ferida, ao afirmar que a má qualidade do Ensino não se deve — como é voz comum — à falta de verbas para a Educação. Analisando os números do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), a Controladoria-Geral da União (CGU) detectou que, de 2007 a 2013, os repasses saltaram de R$ 67 bilhões para R$ 116 bilhões, a serem usados para pagamento de Professores, compra de equipamentos e atividades básicas, como transporte e merenda. Apesar da dinheirama, a maior parte dos estados beneficiados, principalmente no Norte e no Nordeste, não atingiu patamares médios de qualidade de Ensino, havendo queda no Pará e no Piauí. Além da má gestão, tais recursos são alvo de corrupção: a CGU aponta para a existência de desvios de verbas em 73% de 180 municípios fiscalizados.
Entre os ralos pelos quais escoa o dinheiro da Educação, a CGU identificou gastos perdulários, financiamento de campanhas eleitorais, falhas administrativas, contratos irregulares, superfaturamento, fraudes em licitações, notas fiscais frias, documentos falsificados, empresas de fachada, envolvendo políticos, servidores e prestadores de serviços — sendo que as vencedoras de licitações municipais pagam uma comissão média de 20% do valor do contrato.
Como o número de Alunos não cresce na mesma proporção do salto constatado nas transferências do Fundeb para estados e municípios, é razoável inferir que há algo estranho, pois as contas não fecham. Se há mais dinheiro, por que a qualidade do Ensino vem subindo, na média geral, a passos de tartaruga, como confirmam os péssimos indicadores nacionais e internacionais? Sem um órgão eficaz de fiscalização dos recursos, o Ensino público continuará a ser mais uma prova de que, no serviço público, nem sempre o que falta é dinheiro para corrigir as distorções e melhorar o desempenho do mestre e do Aluno. Do que a Educação necessita, de verdade, para atingir o patamar de qualidade desejável, é de ética no trato da coisa pública, de competência na gestão e de olhar vigilante da sociedade.
*RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA Presidente do Conselho de Administração do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) e da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ)