Transformando a vida de seus alunos

Transformando a vida de seus alunos

Como professores de todo o Brasil transformaram a vida de seus alunos

Histórias de quem superou as adversidades da profissão e ampliou o impacto de suas atividades para além dos muros da escola

Fonte: Revista Educação           10 de outubro de 2014

 

No município de Campo Bom (RS), alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Santos Dumond fazem mutirões para recolher lixo e plantar mudas de árvores nas margens do arroio. Em São Paulo (SP), estudantes do colégio Stance Dual fizeram um levantamento dos problemas do bairro, elegeram prioridades, se organizaram e enviaram uma carta à subprefeitura responsável pela região, solicitando a recuperação da praça Contos Fluminenses. Em Cacoal (RO), alunos da Escola Estadual Cora Coralina estão envolvidos numa iniciativa que ajuda a controlar a dengue no município: eles distribuem sementes de crotalária, uma planta que atrai libélulas, predadores naturais das larvas e do mosquito que causa a doença.

Embora diferentes entre si e fortemente vinculadas às realidades em que estão inseridas, as iniciativas acima descritas possuem algo em comum: foram colocadas em prática por professores e extrapolaram o ambiente escolar, impactando o entorno de suas escolas. No Rio Grande do Sul, a evasão escolar diminuiu junto com a redução das enchentes do arroio Peri. Em Rondônia, o projeto Cacoal contra a dengue ganhou fôlego e escala, resultando numa parceria da escola com as secretarias municipais de Saúde e do Meio Ambiente. Em São Paulo, a praça foi reformada e, agora, o desafio é envolver os comerciantes da região da Bela Vista para fazer a manutenção do local.

Esses exemplos mostram que, apesar de um cotidiano atribulado e permeado de desafios, em todas as partes do Brasil muitos docentes transformam problemas e desafios do dia a dia em iniciativas que mudam (para melhor) a vida dos alunos, das escolas e, muitas vezes, da comunidade. Quais seriam, então, as características que fazem com que esses profissionais se destaquem em seu grupo? Como eles conseguem superar a realidade muitas vezes desanimadora das escolas brasileiras? O que faz com que eles se tornem professores transformadores?

Para Bernadete Gatti, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, são muitos os professores que realizam ações transformadoras e inovadoras no Brasil e que, para isso, muitas vezes, superam as dificuldades que encontram no trabalho e, até, as falhas de formação. Segundo a pesquisadora, o diferencial desses profissionais é aliar uma insatisfação com a realidade ao impulso de encontrar soluções para os problemas.

COMPROMISSO SOCIAL
Como se sabe, o cenário para o exercício da docência no Brasil oferece condições distantes do ideal. Um a cada quatro docentes tem contrato precário ou é terceirizado, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A remuneração ainda deixa a desejar, embora tenha melhorado nos últimos anos: na média, o salário dos docentes corresponde a 51% do salário médio de um profissional com curso superior, formado em outras áreas. Além de ganhar menos, os professores trabalham longas horas, muitas vezes em diversos estabelecimentos: cerca de 40% dos professores fazem jornada dupla ou tripla, segundo dados de 2009 do Ministério da Educação (MEC).

Para Bernadete, o que faz surgir algo de diferente em meio a esse cenário de problemas marcados é o sentido de compromisso social que impulsiona alguns profissionais a buscar soluções para os problemas que identificam, articulando-as com práticas educativas que, por vezes, assumem caráter inovador. A pesquisadora ressalta ainda que esses professores estão insatisfeitos com os modelos tradicionais de ensino e aprendizagem e acreditam que a educação pode melhorar, apostando em seu poder transformador.

Por vezes, as iniciativas e ações são individuais, gestadas na convivência com os alunos na sala de aula, conforme o docente vai percebendo suas dificuldades e potenciais, identificando seus interesses e possibilidades de mobilização. Quando se abre o canal de diálogo e interação entre alunos e professores, as ações se traduzem em ampliação do universo de conhecimento (tanto de alunos quanto dos professores), melhoria da aprendizagem, desenvolvimento da consciência cidadã, dentre outras.

PARCERIAS ESTRATÉGICAS
Outras vezes, as iniciativas inovadoras estão associadas a projetos de maior fôlego, ligados a organizações sociais, cada vez mais presentes no cotidiano das escolas. Para Maria Amabile Mansutti, coordenadora técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), a presença das ONGs e outras entidades é um fator que tem colaborado para o surgimento de experiências inovadoras e transformadoras na escola.

“As ONGs complementam o papel do poder público, oferecendo apoio técnico, o que pode ajudar a potencializar projetos e ações que se diferenciam das práticas tradicionais”, analisa Amabile.

Na cidade de Irecê, no interior da Bahia, a criação de uma rádio e de um jornal escolar, com apoio de uma entidade do terceiro setor, o Instituto Brasil Solidário, foi a via para modificar profundamente o ambiente da Escola Municipal Luiz Viana Filho. Na medida em que os alunos assumiram a rádio e o jornal, o clima e as relações sociais foram melhorando, a ponto de a escola deixar de ser temida, para se tornar uma das mais concorridas da região. “Hoje temos fila de professores querendo ser transferidos para cá”, conta o professor Jefferson Maciel Teixeira, que há três anos assumiu a direção do colégio.

DIREITO DE APRENDER
Para o chefe de Educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Marcelo Mazzoli, o somatório de compromisso social com valorização do aluno, típico das experiências transformadoras que acontecem no ambiente escolar, remete a uma dimensão fundamental: a garantia do direito de aprender. “Esses professores assumem um compromisso desenvolvendo ações que materializam, no cotidiano da escola, o direito de aprender”, diz Mazzoli.

Mas, como ganhar escala em iniciativas que hoje se restringem ao âmbito do esforço pessoal? Por isso a importância de que as ações lideradas por professores sejam valorizadas, ganhem cada vez mais espaço como prática didática e sejam propagadas, diz Mazzoli. “São iniciativas que estabelecem a adesão do aluno, da escola e da comunidade do entorno a um projeto educativo”, justifica.

Nesse ambiente, o professor assume uma posição de protagonista, na medida em que desencadeia processos que modificam hábitos, práticas, comportamentos, além de ampliar horizontes. Nesse sentido, resgata-se a centralidade do papel do docente no processo educacional. Veja, nos links abaixo, as histórias de quem já assumiu um papel central na educação brasileira.

Professor de história cria projeto de pesquisa de campo sobre a escravidão

Professor de história na cidade de Leopoldina (MG), João Paulo Pereira de Araújo desenvolveu no ano passado um projeto de pesquisa sobre escravidão no qual os alunos saíram a campo para ouvir a comunidade local e puderam finalmente entender sua vida frente aos acontecimentos históricos, conectando a história global e a local. “No início do ano fiz uma avaliação diagnóstica e percebi que eles não reconheciam como o fato de ter havido uma grande população escrava aqui no passado influenciava as formas de ser do lugar, onde há muita prática de capoeira, muito samba, uma festa importante em 13 de maio.Eles tinham imagens estereotipadas da escravidão, não viam nenhuma herança dela”, relata. O primeiro passo foi orientar pesquisas em documentos. Em seguida, partiram a campo. “A comunidade tem saberes e a escola precisa deles. Uma das nossas principais entrevistas foi com um senhora de 102 anos, filha de escravos. Ela faleceu em agosto deste ano e, de certa forma, sua memória pôde ser preservada.”

Além do envolvimento dos alunos, João conta ter se surpreendido com o envolvimento das famílias. “Os pais de alunos vinham me procurar na saída para discutir o tema, as famílias iam junto para acompanhar as entrevistas”, conta. João, que nasceu e tem raízes na comunidade onde fica a escola, acredita ser essencial o professor conhecer a realidade de seus alunos para entender o que eles desejam aprender. “Escola e comunidade são uma coisa só. A proximidade entre elas é fundamental para transformar a educação.”

Professor cria concurso de fotografia e envolve estudantes das redes pública e particular de Corumbá (MS)

Professor de geografia há oito anos, Jorge Sambrana está sempre levando seus alunos para fora da escola. Já desenvolveu uma ação sobre resíduos sólidos em que os alunos foram aos principais pontos turísticos dessa cidade do Pantanal para recolher lixo. Uma das iniciativas que mais ganhou destaque foi um concurso de fotografia, em 2009. “Eles tiravam fotos de tudo, até dentro da sala de aula. Resolvi aproveitar esse interesse de forma pedagógica”, conta.

Inicialmente, seria uma premiação para os alunos de sua escola, que teriam de tirar fotos sobre oito temas de várias disciplinas. No fim, participaram estudantes de toda a cidade, das redes pública e particular. “Pais de alunos de outras escolas ficavam sabendo do concurso e vieram me procurar, pedindo para incluir aquela escola também”, relata. Com o crescimento do projeto, Jorge conseguiu patrocínio para um coquetel de premiação e uma exposição das melhores fotos num clube da cidade. Em 2012, fez uma gincana de conhecimentos geográficos com alunos do fundamental 2 e seus pais, num estilo de programas de TV. Teve um ano em que levou suas turmas até a Bolívia, onde passaram um dia brincando junto a crianças de uma comunidade carente.

“Tudo começou com a pergunta de um aluno, que tinha curiosidade sobre a Bolívia, que para nós fica aqui ao lado”, diz. Para Jorge, todos saem ganhando com esse tipo de ação. “É uma troca. O aluno passa a se ver como uma parte da comunidade; e a comunidade passa a enxergar a escola.”

 Alunos e professores no RS fazem mutirões para recolher lixo e plantar árvores

O maior problema na escola municipal onde Vanessa Cristina Müller leciona, em Campo Bom (RS), acabou virando tema de um projeto multidisciplinar e, após três anos de trabalho, o impacto para toda a vizinhança da escola é visível: as enchentes do arroio Peri finalmente foram reduzidas. O projeto nasceu de uma necessidade dos alunos, professores e escola. “Em uma reunião dos docentes no fim de 2011 constatamos que um dos principais motivos das faltas eram as enchentes. O arroio fica a três quadras da escola e, quando dava enchente, muitos alunos ficavam dias sem vir, porque tinham de ajudar a limpar a casa, ficavam sem roupas limpas, perdiam o material escolar”, recorda-se a professora de informática. Entre as ações, as crianças criaram um sistema de alerta de cheias: elas monitoram o nível de água do arroio e soltam mensagens para os celulares cadastrados quando o nível sobe muito. Também já foram feitos diversos mutirões para recolher lixo e plantar mudas. “Tudo partiu de ideias deles: são os alunos que propõem e decidem o que fazer”, diz.

No início, alunos do 6º ao 9º ano foram convidados para participar, fazendo atividades no contraturno. Mas Vanessa nunca perdeu o foco no aprendizado e, para poder mensurar os possíveis resultados, no ano seguinte, junto com a direção, escolheu uma turma de 6º ano para tocar o projeto. Se ainda é cedo para mensurar os impactos pedagógicos – embora haja indícios positivos – as enchentes já diminuíram. “Chegou num ponto que a gente não tinha mais como agir. Era necessário fazer um desassoreamento com máquinas. E este ano, finalmente, as duas prefeituras por onde corre o arroio firmaram uma parceria e começaram o trabalho”, comemora Vanessa, para quem o destaque das ações na mídia local e o fato de o projeto ter sido escolhido para concorrer a um prêmio mundial da Microsoft foram fundamentais.

Vanessa diz ainda que, o professor, embora seja um líder e possa dar o pontapé inicial, não alcançará bons resultados se estiver sozinho. Direção, colegas, alunos e comunidade precisam se envolver. “É importante que o professor se sensibilize com as histórias e as pessoas da comunidade onde ele está inserido. Se eu não me envolvesse, se não me sentisse tocada, não iria adiantar. É um projeto feito com carinho.”

 Em Manaus, professora mobiliza comunidade escolar para organizar um sarau

A professora Ana Telles começou em 2010 um projeto multidisciplinar com alunos de 6 a 9 anos, que resultou num “sarau” para a comunidade. As crianças estudaram sobre plantas e animais, trabalharam a leitura com poesias da Arca de Noé, de Vinicius de Morais, depois conheceram as músicas e, por fim, montaram coreografias. “O projeto envolveu conhecimentos das mais diversas áreas: ciências e pesquisa científica, geografia, artes, letramento e alfabetização. Também tem toda uma preparação para a criança declamar em público”, conta Ana.

As crianças participam de todo o processo, montando cenários e fazendo os figurinos. A comunidade carente da região adorou – e adotou – a iniciativa. Nos anos seguintes, recolheram dinheiro para melhorar os cenários, mães ajudaram a costurar as roupas, conseguiram um auditório emprestado de uma escola vizinha. No ano passado, uma rede de TV local foi à comunidade fazer matéria. O projeto continuou crescendo até mesmo quando, há dois anos, Ana foi transferida para outra escola. “Plantei uma sementinha e agora o projeto continua com as próprias pernas – e pode ser mantido por muitos anos, basta ter boa vontade”, diz a professora.

É claro que, mesmo de longe, Ana fez questão de se manter envolvida, atuando como uma espécie de mentora. “Além de mobilizar a todos, a escola está evoluindo no Ideb, as crianças estão lendo melhor. Isso é ótimo, em especial por ser uma área de risco social”, conta. E a docente não para nunca: Ana começou um projeto semelhante na nova escola, só que com alunos de ensino médio. “Trouxe o projeto em formato para adolescentes.”

 Criação de rádio e jornal ajudou a transformar realidade de escola considerada perigosa

Professor de história, Jefferson Teixeira foi nomeado há três anos coordenador de uma escola de uma região muito perigosa, em Iracê, interior da Bahia. “Minha família não queria que eu aceitasse o cargo por medo”, lembra-se. Hoje, porém, ele sai da escola já de noite e com tranquilidade; em geral fica até mais tarde quando há partidas de futebol com a comunidade. “Era daquelas escolas a que o professor tem medo de ir. Hoje, tenho fila de professores querendo transferência para lá”, diz. A mudança veio com trabalho coletivo.

Durante um mês, o Instituto Brasil Solidário deu formação para que fossem montados uma rádio escolar, um jornal dos alunos e um grupo de teatro. “O estudante virou protagonista. Eles que escolheram o nome da rádio, do jornal, o que tocar ou escrever; eles produzem suas próprias imagens, contam suas próprias histórias”, afirma Jefferson. Vencidas as resistências iniciais, o colégio passou a ser um lugar onde todos querem estar. A rádio, que no princípio só entrava no ar com a presença de Jefferson, hoje é completamente gerenciada por um grupo de estudantes.

“Um pai me procurou porque sabia que a horta da escola estava meio abandonada, se oferecendo para vir cuidar dela junto com o filho, por exemplo. Até que minha grande dificuldade passou a ser como comportar um número tão grande de pessoas querendo vir no contraturno, para ajudar na biblioteca, fazer mutirões, etc.”, relata. Jefferson já foi procurado por sete escolas da cidade, convidando-o para ser coordenador nelas, mas por enquanto ele preferiu ficar onde está porque acha que ainda há muito a fazer.

 Projeto em escola de SP reforma praça do bairro

Um projeto sobre as transformações sofridas pela cidade, implementado pela professora Claudia Maria D’Alimberti Vieira Araújo, da escola Stance Dual, em São Paulo em 2013, resultou na reforma de uma praça que estava deteriorada no bairro da Bela Vista, onde fica o colégio.“O projeto começou com uma pesquisa sobre a cidade, como ela se organiza e é administrada. A partir disso fomos a campo para identificar aspectos positivos e problemas na região e buscar alternativas para melhorar o espaço onde a escola está”, conta Claudia, que leciona no 3º ano do ensino fundamental 1.

Dos vários problemas identificados – excesso de trânsito, poluição, calçadas sem reparo, dentre outros –, o que mais chamou a atenção dos alunos foi a degradação da praça Contos Fluminenses, próxima da escola. Depois de várias discussões foi decidido enviar uma carta para a subprefeitura responsável pela região. Para surpresa dos estudantes, a resposta foi rápida e em poucas semanas, a praça se tornou limpa e organizada. “Além de o bairro ter ganhado uma praça renovada, foi muito importante para os alunos perceberem que eles podem ter voz e que suas ações podem ajudar a modificar as coisas”, analisa a professora. “Para mim reforçou uma ideia de que é papel do professor se manter engajado, buscando alternativas para ampliar a consciência cidadã das crianças”, afirma.

Arrumada a praça, o desafio agora é encontrar meios para que ela se mantenha em ordem por meio de parcerias com os comerciantes da região. Este é um dos desafios do projeto que Claudia está desenvolvendo com a turma de 3º ano em 2014.

 Estudantes da rede pública ajudam a controlar a dengue em município de Rondônia

Há três anos e meio a professora de biologia Viviane Briokowiec iniciou o projeto “Cacoal contra a dengue”, que consiste na distribuição de sementes de crotalária. A planta atrai as libélulas, predadores naturais das larvas e do mosquito causador da dengue. Os alunos do fundamental 2 e ensino médio aprendem sobre o assunto, recebem mudas para suas casas e são incumbidos de distribuir outras mudas para a população, explicando sobre a doença e como evitá-la. Mais de 900 alunos da escola estadual de Viviane já se envolveram com a ideia. “Eles adoram sair às ruas, abordar as pessoas, explicar o que conhecem. Adolescente gosta desse contato, de falar e ser ouvido”, diz. Segundo Viviane, a direção, colegas e toda a equipe pedagógica sempre deram apoio, desde o início.

“Seria muito difícil, se não impossível, fazer algum projeto sozinha.” O projeto continua e hoje conta com uma parceria com as secretarias da Saúde e do Meio Ambiente, cujos agentes passaram a distribuir mudas da planta durante as visitas que fazem às residências. Viviane tem planos para um novo projeto, sobre o caramujo africano, que deve ser iniciado ainda este ano. “É uma praga na cidade, em todo o estado”, relata. A intenção é conscientizar a população sobre os perigos e ensinar o que fazer ao encontrar um desses no quintal. “A escola está na comunidade, por isso sempre tento envolvê-la. Não dá para a gente trabalhar isolado”, acredita.


  




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