O Reino (des)Unido da Grã Bretanha

O Reino (des)Unido da Grã Bretanha

O Reino (des)Unido da Grã Bretanha: entendendo o referendo e seus possíveis impactos constitucionais em quatro atos. Primeiro Ato: Prelúdio

Carina Calabria, doutoranda pela Universidade de Manchester e integrante do projeto “The Sociology of the Transnational Constitution” financiado pelo Conselho de Pesquisa Europeu.

 

Há algumas semanas, andando pelas ruas de Glasgow, vejo janelas que me remetem à memorável descrição do encontro de John Lennon e de Yoko Ono. Era 1996 e Yoko realizava uma exibição privada prévia de sua exposição “Unfinished Paintings and Objects” na Galeria Indica em Londres. Uma de suas obras chamava-se “Ceiling Paint” e consistia em uma escada e um pedaço de papel emoldurado preso ao teto, do qual se desprendia uma lupa. A lente de aumento possibilitava enxergar um minúsculo sim, escrito no papel. Lendo consecutivos “Yes” pelas janelas da Byron Street transito entre aquele encontro, uma boa impressão da cidade – no mínimo simpática com essa mensagem positiva onipresente – e o real significado dos cartazes de fundo azul que figuravam naquelas janelas.

Nessa quinta-feira, dia 18 de setembro de 2014, acontecerá um referendo que pode vir a determinar a independência da Escócia, dissolvendo uma união de 307 anos. É verdade que a Escócia e a Inglaterra já haviam sido parte, temporariamente, de um mesmo arranjo em 1603 sob o governo de James VI da Escócia e entre 1653-1660 sob o governo de Oliver Cromwell. Entretanto, foi apenas em 1707 que estabeleceram, por vontade conjunta, o Reino da Grã-Bretanha. A Irlanda juntar-se-ia em 1801 – e boa parte desjuntar-se-ia subsequentemente em 1922 – transformando-o em Reino Unido da Grã Bretanha. O atual Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda da Norte inclui também o País de Gales, incorporado pelo Reino da Inglaterra desde o século 16. É à possível dissolução desse Reino que o sim das janelas de Glasgow manifesta-se. Por meio do referendo, alguns dos residentes da Escócia e escoceses presentes no país podem ir às urnas para responder a questão: “Deve a Escócia ser um Estado independente?”. Poderão votar todos aqueles aptos a eleger representantes para o Parlamento Escocês e para o governo local, além daqueles que tem idade entre 16 e 18 anos – uma inovação trazida pela contenda.

Inicialmente, não se deve descartar a influência da carga semântica presente entre as duas possíveis respostas ao referendo. À primeira vista parece indissociável o pessimismo do não, o que foi, de certa forma, corroborado pelos argumentos utilizados por seus defensores durante a campanha que antecedeu a votação. À segunda vista, parece, de fato, haver um espaço polissêmico significante entre o “Não” e o “Movimento Unionista” da campanha do “Beter Together” de um lado, e entre o “independencionismo”, “separatismo” e o Sim, da campanha do “Yes Scotland” do outro. Todo esse espaço ilustra os diferentes movimentos e posições distintas que são obrigados a se polarizar diante de um procedimento inevitavelmente binário.

Embora algumas declarações, como o recente pronunciamento do Primeiro Ministro inglês David Cameron durante um debate “If you don’t like me, I won’t be here forever“, possam indicar um possível caráter circunstancial da questão, o referendo é, na verdade, o resultado de um processo espaçado de busca de uma maior autonomia e representatividade. Reflete, portanto, o amadurecimento político e institucional seja de Westminster, seja de Holyrood, delineado, entre outros fatos, pelos referendos de 1979 (em que o Sim prevaleceu, mas não chegou a atingir os 40% exigidos alavancar quaisquer reformas) e de 1997, que teve como consequência o estabelecimento do Parlamento Escocês, por meio do Ato Escocês de 1998.

Nesse sentido, a ideia de transferência de poder (“Scottish Devolution”, doravante devolução), deslanchada com a criação do Parlamento Escocês e acentuada pelo Ato Escocês de 2012 que lhe garantiu poderes mais abrangentes, é um dos principais pontos em debate. Começou a ser discutida mais seriamente na década de 1970, porém passou a ocupar um espaço progressivamente maior na medida em que representava uma medida paliativa à independência. Os três maiores partidos unionistas (o Partido Conservador, os Liberais Democratas e o Partido Trabalhista) têm elaborado propostas de devolução, oferecendo à Escócia o que defendem ser “o melhor dos dois mundos”: autonomia e Reino Unido. Ainda que parte das questões referentes à devolução orbitem sobre aos limites de autonomia legislativa do Parlamento Escocês, existe uma crítica contínua à centralização e consequente déficit representativo das decisões de Westminster, o que dificilmente seria resolvido apenas por meio de devoluções graduais.

A conformação de um processo de certa forma brando e deliberado remonta à precocidade e imunidade inglesa diante do”século das revoluções burguesas”. Enquanto outros Estados equilibravam-se diante das ondas revolucionárias que emanavam após as Guerras Napoleônicas, em 1820, 1830 e 1848, a Inglaterra manteve-se relativamente protegida de radicalismos uma vez que havia antecipado e institucionalizado os principais pleitos liberais. De forma consonante, a possível saída da Escócia do Reino Unido não acontecerá por meio de um ato unilateral, mas de um processo brando, diferentemente do ocorrido durante a independência de parte da Irlanda. De acordo com o Secretário de Estado da Escócia: “The union was constituted by a treaty followed by two Acts. If it is now to be dissolved, it would presumably need that at the very least.”

Na prática, o processo de legalização do referendo teve início por meio de um acordo estabelecido em outubro de 2012 entre os governos da Escócia e do Reino Unido, o “Agreement between the United Kingdom Government and the Scottish Government on an Independence Referendum for Scotland”, coloquialmente denominado de Acordo de Edimburgo. O ato estabeleceu entre outras diretrizes, que: (i) o referendo tem uma base jurídica definida, buscando eliminar dúvidas sobre sua legalidade; (ii) que seria legislado pelo Parlamento Escocês (uma concessão cuja constitucionalidade foi discutida, uma vez que o estabelecimento de um referendo sobre independência é, a priori, uma matéria sob competência do Reino Unido e dúvidas permanecem sobre quem deverá conduzir o processo de negociações pós-referendo); e (iii) que o seu resultado será respeitado por todos.

Em que pese a persistência de discussões sobre a natureza legal do Acordo de Edimburgo (que, de fato, se aproxima mais de um ato político ou, ainda, de um Acordo de Cavalheiros, para utilizar uma expressão comum ao direito internacional), não parece haver dúvidas sobre o seu caráter vinculante na prática, estabelecido por meio de um regime implícito de reciprocidade. De maneira similar, o “tratado” Anglo-Irlandês de 1921, que confirmava o prosseguimento da independência Irlandesa, também teve sua legalidade questionada. Conquanto haja questionamentos sobre o caráter legal do instrumento, a previsão de que o resultado do referendo será “respeitado por todos” parece, inicialmente, indicativa do caráter imperativo da decisão manifestada pelas urnas.

Apesar desse respeito manifesto, o resultado do referendo parece indicar não o final, mas o início de um longo processo. Caso decida-se pela independência, a saída da Escócia da União não será automática, existindo a previsão de um período de negociações. Ainda não se sabe perfeitamente as reais consequências do desmembramento. O governo do Reino Unido preparou uma série de 12 tendenciosos relatórios com focos em economia (relações de trabalho e pensões, macroeconomia e performance fiscal, negócios e microeconomia, serviços financeiros e banos, câmbio e política monetária), consequências da independência, energia, fronteiras e cidadania, relações internacionais, ciência e pesquisa, defesa, que defendem o Unionismo. Há dúvidas em relação à acomodação da Escócia na União Europeia e em outras organizações como a OTAN e a ONU que tem suscitado um amplo debate (algo, quem sabe, a ser discutido em outro post sobre possíveis consequências convencionais da independência escocesa). Há também dúvidas sobre as relações de trabalho, a migração de residentes, o NHS (espécie de Sistema Único de Saúde britânico), a organização política, a política de fronteiras, a sustentabilidade econômica do novo Estado (que talvez precise diversificar alternativas ao petróleo e gás garantidos pelo Mar do Norte), a moeda a ser adotada (euro, libras ou uma nova moeda?), entre outros tópicos relevantes. Dúvidas que, para os defensores da independência, serão respondidas de maneira mais legítima e democrática, por meio de instituições mais representativas dos desejos azul e brancos.

Entre as questões constitucionais trazidas por uma possível separação destaca-se, inicialmente, a questão da cidadania. Ainda é incerto quem se tornará ou estará apto a se tornar escocês; quem permanecerá um cidadão do Reino Unido e quem poderá aceder a ambas possibilidades. De acordo com o artigo 18 do rascunho de junho de 2014 do que seria uma constituição escocesa (Scottish Independence Bill; doravante Constituição de Junho), tornar-se-iam automaticamente escoceses: (i) os britânicos que residem ou nascerem na Escócia; (ii) os nascidos na Escócia de pais escoceses ou com permissão de visto permanente; (iii) os nascidos fora da Escócia mas registrados por pais que detêm a cidadania escocesa. São ainda previstas possibilidades de naturalização àqueles que têm descendência escocesa ou alguns tipos previstos de conexão com o país. É interessante notar que tal artigo prevê, em seu parágrafo 3, a polipatridia (A person holding Scottish citizenship may also hold other nationalities or citizenships at the same time), garantindo legalmente uma possível dupla cidadania britânica e escocesa aos seus nacionais – o que, caso a cidadania britânica permaneça após a independência, constituiria a regra, de acordo com a previsão do rascunho constitucional.

Uma segunda questão, que talvez represente um dos maiores impactos institucionais desse processo (mais do que da composição da Suprema Corte ou da Câmara dos Lordes, composta por 92 membros hereditários, dos quais apenas 6 são escoceses) deve ocorrer na Câmara dos Comuns, na qual atualmente existem 59 representantes escoceses. Questiona-se qual seria o papel desses parlamentares no hiato entre o referendo e a independência, considerando que suas decisões podem impactar uma União de que virtualmente não fariam mais parte. Além disso, as eleições gerais de 2015 estabelecem um curto cronograma para decidir sobre a composição de uma instituição cuja balança de poder pode ser severamente afetada.

Um outro item interessante, do ponto de vista estratégico-militar, diz respeito à base de lançamento de mísseis nucleares denominada de Trident e localizada em território escocês. O deslocamento da base resultaria em um processo complexo e demorado, de maneira que uma possível saída da Escócia pode forçar o Reino Unido ao desarmamento nuclear unilateral, algo previsto no artigo 23 da Constituição de Junho.

Outro ponto em discussão refere-se à sucessão de instituições, bens e responsabilidades dos dois Estados. Sabe-se que a Escócia – ainda que não constitua necessariamente um Estado totalmente novo, já que a independência resultaria antes na volta de uma condição anterior que em uma secessão – seria o Estado sucessor, mas detalhes sobre as obrigações de cada uma das partes ainda são discutíveis. Ainda que não constitua um novo Estado em sentido pleno, o contagioso princípio da auto-determinação dos povos expresso pelo referendo pode promover reverberações em regiões que buscam uma maior autonomia e representatividade – como na Bélgica e na Espanha, por exemplo.

O fato do referendo acontecer exatamente no ano em que Glasgow sediou os jogos da Commonwealth (uma organização constituída em 1949 e formada por 53 Estados, boa parte desses antigos territórios do Império Britânico, agora unidos pelos “valores comuns”) e a possibilidade de permanência da libra como unidade monetária parecem fatos representativos de que a independência não representaria uma separação completa ou isolamento de quaisquer dos Estados. Acredita-se em uma ‘união social’ que transcenderia as lógicas de governo e de estado sob uma identidade britânica – o que me faz pensar no imaginário do gaúcho em nossa tríplice fronteira, mas sobretudo no fato de que a identidade britânica parece ter sido sempre criada a sombra do Outro. A ideia de “Três Estados, Uma Nação” parece mais comum a ingleses que enunciam-se britânicos que a escoceses que tem se assumido simplesmente escoceses.

Em um recente vídeo, um personagem dos Simpsons mostrava uma frase no peito que poderia ser considerada uma versão escocesa de nosso Independência ou Morte. Bradava, ao final, que não era uma tatuagem, mas uma marca de nascimento. De certa forma, contrapunha a escolha (tatuagem) ao inescapável (a carga hereditária que transita no sangue e em marcas que começam a se manifestar desde o nascimento). O referendo relativiza essa relação, demonstrando que, por vezes, o inescapável inicia por escolhas. Uma possível independência da Escócia – inescapável diante de um sim majoritário – não esclarece totalmente o quão independente seria essa nova Escócia. Talvez porque existam mais desmembramentos, impactos e questionamentos entre as margens do rio Tweed do que pode prever a nossa vã filosofia.

Por fim, caso você se pergunte porque o título desse artigo enunciava uma lista de quatro atos e aparentemente existe apenas um primeiro, revelo que como estrangeira, há apenas alguns meses à beira do Tâmisa, não me sinto totalmente à vontade para escrever sobre o referendo. Há mais do que uma seca análise a ser feita e isso demanda tempo e convivência. É por isso que os próximos atos são descritos em línguas estrangeiras, demarcando bem a fronteira entre Irlanda, Escócia e, antes que Inglaterra, Grã-Bretanha. Não arrisco – ainda – opinar sobre um possível voto. Permaneço como observadora do que pode vir a acontecer, mesmo não tendo muitos problemas em subir as escadas para tentar vislumbrar, como quem descobre terras à vista, o que existe adiante de um ‘unfinished process’.

Fontes indicadas:

http://www.britac.ac.uk/policy/Enlightening_Constitutional_Debate.cfm

http://constitution-unit.com/tag/scottish-independence/

http://www.economist.com/news/britain/21614177-peculiar-smallness-scotlands-independence-debate-war-attrition

https://www.gov.uk/government/policies/informing-the-debate-on-scotlands-constitutional-future

https://www.gov.uk/government/topical-events/scottish-independence-referendum

http://www.legislation.gov.uk/asp/2013/14/enacted

https://www.opendemocracy.net/ourkingdom/john-robertson/bbc-bias-and-scots-referendum-new-report

http://www.publications.parliament.uk/pa/ld201314/ldselect/ldconst/188/188.pdf

http://www.scottish.parliament.uk/parliamentarybusiness/Bills/61076.aspx

http://ukconstitutionallaw.org/tag/scottish-independence/

http://www.scottishconstitutionalfutures.org/

http://www.criticaconstitucional.com/o-reino-desunido-da-gra-bretanha-entendendo-o-referendo-e-seus-possiveis-impactos-constitucionais-em-quatro-atos/

 

 




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