Construindo a luz nas trevas
No país mais pobre das Américas, devastado por um terremoto, aonde a energia elétrica é restrita e metade da população é analfabeta, todos sabem que o futuro depende da educação e lutam para reconstruir suas escolas
Flavio Forner/XIBÉ (texto e fotos)
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Aluno em escola da periferia de Porto Príncipe |
Embaixo de um poste recém-iluminado, no meio da rua, um jovem estuda. É o começo de mais uma noite quente e abafada em Porto Príncipe, capital do Haiti, a nação mais pobre das Américas. Adolescentes e crianças que estudam usando a iluminação pública como apoio é uma cena recorrente e recente em sua principal cidade. Ainda não há eletricidade na maioria dos domicílios. Em 2014, a intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) completa uma década, e o terremoto que devastou o país faz quatro anos de aniversário.
Sem energia elétrica suficiente para abastecer o país, as ruas ficam às escuras depois do entardecer. Contudo, desde o ano passado uma iniciativa internacional tem ajudado a mudar esse cenário. Capitaneadas pela Clinton Global Initiative, da Fundação Clinton (do ex-presidente dos EUA Bill Clinton), organizações sociais estrangeiras realizaram uma campanha para doar lâmpadas que funcionam à base de energia solar: a instalação em Cité Soleil, a maior favela da capital, foi feita pelo pessoal do Brabat (Minustah). Durante o dia, seus sistemas captam a abundante luz solar do calor equatorial e a transformam em luz à noite. Até o momento, aproximadamente 20 mil lâmpadas foram instaladas no Haiti, a maior parte em Porto Príncipe.
Contudo, a nação inteira, incluindo o jovem ali, sabe que o seu futuro depende literalmente da luz que se joga na educação e não nas ajudas humanitárias que recebe no presente. Por analogia, eles ainda andam nas trevas. Mais da metade da população não sabe ler e escrever e o analfabetismo funcional ultrapassa 60%, de acordo com a ONU. No fosso haitiano da desigualdade de acesso à educação, apenas 1,4% dos homens e 0,7% das mulheres chegam à universidade. Uma situação agravada pelo abalo sísmico de 2010, que matou 300 mil pessoas.
Perdidos em um sonho
Estive em Porto Príncipe, capital do Haiti, entre os dias 16 e 22 de fevereiro deste ano, a convite do Ministério da Defesa brasileiro e da Organização das Nações Unidas. Antes de viajar, fui informado da necessidade de tomar diversas vacinas e me preparar para o sol e a grande quantidade de poeira. Em um primeiro momento, não levei a sério a história da poeira, achando que fosse um pouco de paranoia e exagero dos que já tinham ido antes. Cheguei em uma tarde ensolarada de luz brilhante e, de fato, minha primeira impressão no caminho até a base militar Campo Charlie, a uma hora e meia de distância do aeroporto, ficou marcada pela robusta camada de poeira que pairava suspensa no ar. Essa densa névoa dá quase um aspecto de sonho aos elementos mais notáveis do que encontrei por lá. Á beira da estrada, a percepção de estar em um estado de limbo é realçada pelas várias pessoas que vi sentadas sem fazer nada, em um ócio inexplicável, como se alheias à passagem do tempo.
A parte alta da cidade, chamada Petionville, é aonde está o bairro “bom”. Por lá, estão as ONGs, os consulados, os condomínios fechados e as melhores escolas. No Brasil, temos o costume de ver os bairros de alta renda em áreas próximas à costa, na parte baixa da cidade, e as favelas nos morros e encostas. Mas no Haiti ocorre o inverso, os ricos vão para a parte alta e os pobres para perto do mar. Com as fortes chuvas, e algumas vezes furacões, durante agosto e outubro, as águas carregam todo o lixo e esgoto para o mar, da parte alta para a parte baixa. Foi no nível inferior, Cité Soleil e seus bairros periféricos, que conheci o verdadeiro Haiti. Montanhas de lixo, córregos entupidos a céu aberto, chorume escorrendo por todos os lados, entre as pessoas que andam, entre os velhos que se sentam ao sol, entre as brincadeiras das crianças, as muitas crianças haitianas.
Biscoitos de barro
Depois do terremoto de 2010, muitas crianças ficaram órfãs ou perdidas dos seus parentes. É comum ver muitas delas vagando sozinhas ou em grupos por áreas descampadas ou sobre o lixo, como se procurassem por alguém ou algo para comer. Na favela chamada Jamaica, o futebol é uma das poucas diversões para elas. Lá, alguns ônibus de escola americana, doados ao Haiti para servirem de transporte público, estão abandonados e servem de esconderijo para alguma brincadeira de esconde-esconde. Uma quadra de basquete é forrada de biscoitos de barro feitos com uma mistura de manteiga, sal e barro. Essa massa é usada para enganar a fome e já salvou a vida de muitas crianças desnutridas, principalmente durante o período pós-terremoto. Próximas desta quadra de basquete, as crianças perambulam com a certeza de ter algo para comer em algum momento, muitas delas magras com as barrigas avantajadas típicas de indivíduos vitimados por verminoses. A renda da responsável pela produção dos biscoitos é insuficiente para pagar a escola dos cinco filhos. Como tantos outros, eles passam o dia na rua e, quando algum militar se aproxima, eles logo pedem chocolate, água e sal, que sabem ser mais importante que um doce por conta do sódio.
Segundo as Nações Unidas, cerca de 15 mil escolas primárias e 1,5 mil secundárias foram destruídas ou danificadas pelo terremoto, além de três universidades de Porto Príncipe. Com grande parte dos haitianos não conseguindo entrar na escola, a situação se torna mais desoladora quando os que entram não ficam o tempo suficiente para se formar. Cerca de 33% das crianças com idades entre 6 e 12 anos (500 mil crianças) não frequentam a escola. A taxa de abandono é particularmente elevada no ciclo básico: 29% abandonam a escola no primeiro ano e 60% se evadem antes de receber seu certificado de ensino fundamental, apontam dados do Ministério da Educação.
Há poucas escolas públicas e elas também são pagas, tornando difícil o acesso até nas mais simples. Quase 90% dos estudantes são alfabetizados por instituições privadas, mantidas por igrejas ou organizações sociais sem fins lucrativos. Nas particulares, por sua vez, são poucos os pais com condições de pagar. Algumas famílias criam porcos para pagar a escola dos filhos e, apesar da fome, não abatem os animais para garantir as mensalidades. “O nível da educação no Haiti hoje é triste por conta dos problemas que nós encontramos pelo caminho para ensinar. Há crianças que têm muita vontade para vir para a escola, mas não podem por falta de economias”, conta Dieunane Antoine, diretora de uma escola em Cité Soleil.
Campos, árvores e barcos
A falta de recursos e professores são duas das causas da precariedade da educação no país desde 2010. Muitos professores morreram e escolas foram destruídas no terremoto. Junte a tudo isso a corrupção política e os desvios de verbas destinadas ao setor e dá para se ter uma vaga ideia da dimensão do problema.
Achei que deveria visitar uma escola, e por sorte, os militares brasileiros da Minustah iriam distribuir água potável para a população e kits com escova de dente para alunos de uma escola pública, a Petit Coeur de Jésus (Pequeno Coração de Jesus), na região de Cité Soleil.
Encravada em um barranco com mais de dez metros de lixo seco acumulado, seu cheiro era horrível. No interior, carteiras improvisadas, velhas e quebradas, lousas pequenas e pouca ventilação constituíam o cenário das salas de aula. Nem todos conseguem sentar-se ao mesmo tempo e o revezamento de lápis é normal. Enquanto alguns escrevem, outros aguardam sua vez. Mas os desenhos dos estudantes pendurados nas paredes não expressam violência nem armas, a realidade constante. São campos, árvores, barcos e, quando colorem figuras de histórias em quadrinhos e heróis, quase sempre os corpos são pintados com lápis marrom. Pato Donald e Mickey são curiosamente negros, como uma forma de não fugir de suas origens e mostrar que não existem diferenças pela cor.
A diretora e também professora Dieunane Antoine explica como é possível lecionar com tão pouca estrutura e apoio do Estado. “O governo não oferece vantagens para a área da educação. Os que estão ficando no Haiti ficam porque têm muita coragem para trabalhar”, diz ela. “Tenho muitos amigos que foram embora para a Europa e os Estados Unidos. Eu também tive essa chance de mudar de vida, mas não consigo ficar distante e dar as costas para tudo isso. No fim, eu gostaria de pôr mais crianças aqui dentro, mas não cabe”, desabafa.
Para ela, a educação é uma necessidade imediata para a recuperação social e humana do país. “Formação acadêmica não é suficiente para permitir que um ser humano possa desempenhar o seu papel corretamente como um cidadão em uma comunidade. Podemos ver que as práticas predominantes na sociedade haitiana, como a corrupção, a violência, a delinquência e o desrespeito, são o oposto desta abordagem.”
Usar a iluminação de postes para estudar por conta própria e tentar evoluir com este esforço é digno. Mas a tudo isso somam-se alimentação precária e a violência das ruas durante a noite. Imagine estudar embaixo de um poste com a barriga vazia. Em alguns lugares do Brasil, isso não é muito diferente.
Plano 2010-2015
Mesmo com as graves deficiências do setor, muitos líderes haitianos têm tentado implantar metas de melhoria na educação. Após o terremoto de 2010, foi feita uma parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento para propor um novo plano educacional de cinco anos. Nele, espera-se que todas as crianças com idade para frequentar até a 6ª série estejam matriculadas na educação pública até 2015. Em 2020, espera-se abarcar todos os estudantes até o 9º ano.
Para tanto, o plano prevê subsidiar as escolas privadas existentes e financiar a construção de novas unidades públicas, além de pagar os salários dos professores e administradores, modernizar as instalações e garantir a compra de materiais educativos. O projeto visa também o uso misto dos espaços das escolas para fornecer serviços como nutrição e cuidados de saúde às crianças. Muitas luzes serão necessárias então.