Conheça Mia Couto

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Mia Couto responde Pergunta Braskem por Equipe Fronteiras

No Fronteiras do Pensamento São Paulo, o escritor moçambicano Mia Couto escolheu, como título de sua fala, A peneira e a água, em alusão ao poema O menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros. Segundo Couto, esta é a melhor definição de poeta: aquele que transporta água com uma peneira.

Em sua conferência, Mia Couto falou sobre histórias e memórias, algo que, de acordo com ele, é uma espécie de "conjugação de impossibilidades". O escritor, que se considera antes de tudo um poeta, explicou com versos escritos sobre o tema: “De que vale ter memória se o que eu mais vivi foi o que nunca se passou.”

Mia Couto também criticou a ideia de memória enquanto lembrança factual de eventos passados. Para ele, esta visão dissocia memórias e História, colocando as memórias ao lado da natureza e as histórias ao lado da cultura. Para Couto, esta separação é "duplamente equivocada". Primeiro, porque "ninguém sabe exatamente o que é natureza humana, nós somos em grande parte inventores da nossa própria natureza". Segundo, porque criar histórias pode não ser algo cultural, "pode ser algo tão biológico como a ansiedade de comer e de beber. A fantasia está nos nossos genes desde que somos quem somos."

Na nova iniciativa da Braskem, patrocinadora dos canais digitais do Fronteiras do Pensamento, perguntas de todo país foram enviadas pelos seguidores do Fronteiras para Mia Couto através do e-mail digital@fronteiras.com. Após a conferência, o convidado respondeu a Pergunta Braskem de Ricardo Coelho. Confira abaixo:

 

PERGUNTA BRASKEM “O que é o Brasil para o homem comum de Moçambique, de crenças e culturas diferentes, que ‘aceita a existência de deuses plurais e a existência de animais que têm alma e que partilham (consigo) o sagrado e o profano’, expressando, possivelmente, mais sabedoria que o homem comum brasileiro?”

RESPOSTA DE MIA COUTO “Bom, eu não sei se podem ser comparadas sabedorias. Mas, a sabedoria que os moçambicanos desenvolveram serve para o seu próprio mundo. E a que os brasileiros criaram no Brasil serve para a realidade brasileira. É só para que eu não fizesse minha essa forma de colocar a coisa.

Mas, o que é o Brasil? Quando chego ao Brasil, a impressão imediata é que existem outros Brasis que não é aquele que chega a Moçambique. Não é aquele que é exportado, que é um Brasil muito simplificado, muito reduzido. Como se todos os brasileiros vivessem bem e fossem de uma só raça.

Bom, é um Brasil que lhe falta uma grande parte do Brasil e, portanto, a primeira sensação é que nós estamos realmente chegando a alguma coisa que tem outras verdades, que tem essa grande diversidade, que é um Brasil muito plural.

Mas, há uma coisa que eu tenho que dizer: quem vem da África encontra a África no Brasil a níveis que não são estes imediatos. Não é porque encontra gente de certa cor de pele. Não é porque encontra gente de certo tipo físico, mas é porque permeia toda a sociedade brasileira certa ideia de tempo, certa ideia de corpo, certa ideia de convívio. Essa fronteira entre rua e casa ainda está presente mesmo nas grandes cidades brasileiras. Há aqui qualquer coisa que nos faz pensar muito em casa.”

Mia Couto respondeu diversas perguntas do público após sua fala. Veja abaixo os principais temas abordados e as respostas do convidado:

Mia Couto sobre crença e fé "Sou um ateu, mas sou um ateu não praticante. Significa que eu não tenha tanta crença assim, porque, para ser ateu militante, eu teria que ter uma crença maior que também não tenho. Estou aberto a escutar outras crenças e a ter essa relação com aquilo que, sendo eu um cientista, me faria perdido. Eu sou muito disponível para aquilo que é o lado misterioso, inexplicável."

Mia Couto sobre o lado feminino "Quando eu me coloquei essa tarefa de escrever um personagem feminino, eu pensei que faria isso porque entrevistaria mulheres que contariam histórias, mas o modo como fiz esse caminho foi um modo interior. Foi um modo por dentro. Eu pensei: dentro de mim tem que estar esse lado feminino, esse lado mulher, e eu tenho que ter uma relação com proximidade. Não tenho que ter medo."

Mia Couto sobre memórias e esquecimentos "Esquecer é quase tão mentira quanto lembrar. Nós temos, em relação ao esquecimento, a ideia de que se trata de alguma coisa que acontece do ponto de vista neurológico, em um lugar qualquer onde as coisas se dissolvem e se afundam. Isso é verdade, sim, mas não é só isso.

O esquecimento é um trabalho ficcional. É preciso que essa história seja coberta por outra. O silêncio sobre o qual deitamos o passado é um silêncio que mente. Há qualquer coisa que fala sempre."

Mia Couto sobre as fronteiras entre prosa e poesia "Essas fronteiras, pelo menos para quem está do lado da produção, quem faz prosa ou poesia, são praticamente impossíveis de definir com esse rigor. Eu não consigo. Eu acho que estou sempre do lado da poesia."

Mia Couto aconselha novos escritores "Nunca olhar para alguém como um escritor experiente. Não existe isso. Nenhum escritor tem experiência. Escrever é uma coisa próxima de amar, nunca se tem experiência em amar. Ama-se sempre pela primeira vez e com risco, com esta coisa que parece que é a última vez.

Há vários jovens que batem à porta em Moçambique porque estão em uma situação muito solitária e não tem a quem apresentar os seus textos e falo muito com eles.

Uma das coisas que eu noto é que ficam prisioneiros de uma coisa que ninguém sabe exatamente o que é, que é ‘escrever bem’. Eu acho que essa é uma coisa que a escola, no sentido convencional da relação com a língua, com a gramática, pode matar um menino que fica com medo de errar. E ninguém escreve se tiver medo."  

A Braskem patrocina os conteúdos exclusivos dos canais digitais do Fronteiras do Pensamento.

http://fronteiras.com/canalfronteiras/noticias/?16,277

Conheça Mia Couto, conferencista do Fronteiras São Paulo desta quarta-feira

Mia Couto é o conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo desta quarta-feira, 03 de setembro. No palco do Teatro do Complexo Ohtake Cultural, o escritor moçambicano propõe uma nova forma de ver e de viver o mundo, que incorpore a poesia e que torne permeáveis as paredes que separam nossas identidades. Conheça o autor e envie sua Pergunta Braskem para Mia Couto por meio do e-mail digital@fronteiras.com. Uma pergunta será selecionada e feita ao conferencista no evento. A resposta será divulgada na quinta-feira, nos canais digitais do Fronteiras do Pensamento, um oferecimento da Braskem.

Nascido na cidade de Beira (Moçambique) e filho de uma família de emigrantes portugueses, Mia Couto é considerado um dos principais autores do continente africano. Sua carreira começou aos 14 anos, quando publicou seus primeiros poemas em um jornal local. Em 1975, ingressou na atividade jornalística e, a partir da independência do país, tornou-se diretor da Agência de Informação de Moçambique e também comandou a revista semanal Tempo e o jornal Notícias de Maputo. Em 1985, formou-se em Biologia pela Universidade Eduardo Mondlane, em seu país natal. Desde então, concilia as atividades de biólogo, professor e escritor.

Sua estreia na literatura ocorreu em 1983, com o livro de poesia Raiz de orvalho. Sua obra é extensa e diversificada, incluindo poemas, contos, romances e crônicas, e seus livros já foram traduzidos em diversos idiomas. Seu romance Terra sonâmbula é considerado um dos dez melhores livros africanos no século XX. Sua publicação mais recente é A confissão da leoa, lançado em 2012.

Em 2013, Couto foi agraciado com o Prêmio Camões pelo conjunto da obra. A premiação foi instituída em 1988 pelos governos do Brasil e Portugal e é considerada uma das mais importantes no âmbito da língua portuguesa. No mesmo ano, também recebeu o Prêmio Literário Internacional Neustadt, concedido pela Universidade de Oklahoma nos Estados Unidos e pela World Literature Today.

Na área da Biologia, Mia Couto dirige uma empresa que faz estudos de impacto ambiental em seu país, concentrando-se na gestão de zonas costeiras, além de desenvolver trabalhos de pesquisa sobre mitos, lendas e crenças que intervém na gestão tradicional dos recursos humanos.  

Leia, abaixo, excerto do artigo exclusivo de Mia Couto, que integra a obra Pensar a cultura, compilação de entrevistas, conferências e outros textos organizados pelo jornalista Cassiano Elek Machado. Acesse o site da Arquipélago Editorial e conheça a série Pensar  

MIA COUTO | Nós, brasileiros e moçambicanos, não fomos feitos para caber numa receita puritana encomendada para domesticar e padronizar o mundo. O discurso do politicamente correto é um crime contra as nossas nações, contra a originalidade e a diversidade dos nossos povos.

Se, em Moçambique, eu vivo uma realidade tão próxima da brasileira, a pergunta certa não seria porque gosto tanto de visitar o Brasil. A verdadeira pergunta seria outra: por que, vindo ao Brasil, me converto em Brasil? E a resposta é: porque aqui sou autor de travessias interiores, aqui sou viajante de histórias que, mais do que pessoas, mestiçaram deuses e crenças divinas. Os brasileiros têm essa tão feliz dificuldade de não pertencerem a uma identidade só.

Cada brasileiro é mais do que ele próprio, mais do que a sua raça, o seu gênero, a sua origem. Cada brasileiro é o Brasil inteiro. E assim é impossível definir o que é um brasileiro típico, um brasileiro representativo, um brasileiro puro.

Uma das nossas primeiras fronteiras interiores é aquela que nos separa dos animais. Fazemos essa demarcação ontológica através de fábulas que, ao longo dos séculos, povoaram a fantasia infantil. Os animais ocuparam as paredes das cavernas, ocuparam os contos, os vídeos, as canções e o cinema. E fizeram tudo isso para nos dar lições de humanidade. Os animais fizeram-nos mais humanos.

Quando nos tornamos adultos, torna-se ridículo acreditar nesse outro tempo em que os animais falavam. Convertemo-nos nos reis da existência, exclusivos habitantes da fala e da razão. E decretamos que a Natureza existe apenas fora de nós. É assim que nos inventamos: puramente humanos, centro do universo e topo de gama da evolução.

Mas eu vivo num país em que se desenharam outras fronteiras, menos definitivas, entre bichos e gente. E são permitidos trânsitos entre a animalidade e da humanidade. E eu vivi recentemente um caso curioso quando trabalhava como biólogo numa pequena aldeia bem no Norte de Moçambique. Em apenas quatro meses 26 pessoas foram mortas e devoradas por um grupo de leões. Durante as primeiras duas semanas eu permaneci no local para tentar criar respostas contra essa que era para mim uma inimaginável ameaça.

Os leões rondando a tenda traziam mais do que o medo. Mostravam que havia um território que não era governado pelo Homem. De repente, se abria em mim um tempo em que os homens é que não sabiam falar. Assim, eu aprendia a lição da minha própria fragilidade.
Mais tarde, quando me juntei à aldeia para enfrentar aquela ameaça, entendi que, para aqueles camponeses, a linha divisória entre o humano e não humano era uma outra: fluida, osmótica e plástica. Um homem pode ser leão e um leão pode ser homem. As identidades podem-se trocar, como a onça e o tio no célebre conto de Guimarães Rosa.

Este episódio arrisca consolidar uma percepção exótica dos africanos. Parece confirmar a ideia de que os outros continentes têm sabedorias e a África apenas tem crenças. Mas nós, que nos fundamos no conhecimento científico, não imaginamos o quanto a ciência ainda desconhece sobre quem somos. A biologia descobriu recentemente o seguinte: nós, humanos, somos feitos principalmente de material não humano. Nove em cada dez das nossas células não são humanas: são bactérias e microrganismos que vivem dentro de nós.

O nosso lado humano é absolutamente minoritário. Se no universo das nossas células houvesse eleição seríamos certamente dirigidos por uma bactéria.

O que se deve concluir daqui é que, mesmo neste outro universo mais moderno, a fronteira entre animal e humano tem que ser redesenhada. Porque essa fronteira passa bem por dentro de nós. É por isso que precisamos de novas fábulas para nos reconciliarmos com quem vive conosco dentro em nós.

De qualquer modo, a filosofia integradora dos africanos não decorre de uma qualquer ingenuidade. Ela existe porque aceita a existência de deuses plurais e a existência de animais que têm alma e que partilham conosco o sagrado e o profano.

O pensamento nasceu para nos tornar livres, para nos dar asa e voarmos para além dos nossos limites. Foi o pensamento que nos deu barco e destino na épica viagem em que nos fizemos humanos e sobre-humanos. Tudo o que aqui falei não pretende reduzir o brilho dessa jornada épica com que fintamos o nosso próprio destino.

Falo apenas do modo como, entretanto, nos deixamos cercar por uma razão que se considera já feita, definitiva, cristalizada em certezas. Aquilo que nasceu para ser fecundo tornou-se estéril, o que nasceu para ser semente tornou-se pedra.

Acontece ao pensamento o mesmo que acontece à linguagem. Na infância, estávamos disponíveis para aprender idiomas diversos. Depois, qualquer coisa se fecha, se sedimenta e nós ficamos prisioneiros do que já sabemos. É verdade que usufruímos de um tempo com acesso instantâneo à informação. Mas não podemos confundir ideias novas com informação recente. Muitas vezes são as ideias que temos que nos impedem de termos ideias novas. São esposas ciumentas que fecham as cortinas e trancam a porta. E rondamos dentro nós, num saturado monólogo interior. Cansadas, as ideias nada fazem senão dormir na cama da memória. E nós tornamo-nos naquilo que já fomos.

A Braskem patrocina os conteúdos exclusivos dos canais digitais do Fronteiras do Pensamento. Acompanhe as novidades

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