Entenda o sistema da dívida pública
Entenda o sistema da dívida pública e a proposta de auditoria da Frente de Esquerda
Em 1997, o governo federal, comandado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), elaborou um plano para assumir as dívidas dos estados, o que, em tese, os livraria momentaneamente de um problema que estava inviabilizando as administrações regionais. No Rio Grande do Sul, isso significou um empréstimo de R$ 11 bilhões feito pelo Palácio do Planalto ao Palácio Piratini.
Para pagar esse valor, o estado assinou um contrato comprometendo-se a repassar, mensalmente, até 13% de sua receita líquida para os cofres federais. A expectativa era de que até o ano de 2028 a dívida já estivesse paga.
Contudo, ao analisar as prestações de conta do estado, verifica-se que de 1999 a 2010, o Rio Grande do Sul já pagou R$ 22 bilhões ao governo federal e, hoje em dia, segue devendo mais de R$ 40 bilhões. É fácil constatar, portanto, que trata-se de uma dívida que, quanto mais se paga, mais cresce e drena recursos dos gaúchos e das gaúchas.
Para se ter uma ideia, o orçamento de 2014 para todo o estado é de R$ 51 bilhões. Deste montante, R$ 3,2 bilhões são destinados ao pagamento da dívida pública. Serão R$ 1,6 bilhões em parcelas para amortização da dívida e R$ 1,5 bilhões em pagamentos de juros. Com esses R$ 3,2 bilhões, seria possível construir 40 hospitais como o Hospital da Restinga, que custou R$ 75 milhões.
Mas para onde vão esses R$ 3,2 bilhões? Quem são os beneficiários desta dívida? Que tipo de engenharia financeira permite que um governo federal assine com administrações regionais um contrato tão oneroso? Quantos recursos sobrariam aos cofres gaúchos se esta dívida deixasse de ser paga? Essas e outras perguntas só serão respondidas se o Rio Grande do Sul realizar uma auditoria de sua dívida pública.
Nestas eleições, a candidatura da Frente de Esquerda, representada por Roberto Robaina (PSOL), defende a realização de uma auditoria da dívida. Isso porque entendemos que a população tem o direito de conhecer todas as informações a respeito desse contrato. Também temos a certeza de que o processo está recheado de inconstitucionalidades, o que fará com que, após uma análise profunda de suas contas, o montante da dívida seja drasticamente reduzido.
O economista Márcio Pochmann, ao publicar o “Atlas da exclusão social no Brasil”, constata que as cinco mil famílias mais ricas do país são as beneficiárias do sistema da dívida pública – tanto em nível nacional quanto nas esferas subregionais – e da estrutura tributária em vigor. Por isso, é importante que se faça uma detalhada auditoria na dívida do Rio Grande do Sul, para que seja possível tornar público o destino destes recursos.
O sistema da dívida e sua relação com o capital financeiro
Roberto Robaina explica que não existe apenas uma dívida do Rio Grande do Sul com a União, mas, sim, um “sistema da dívida pública”. “É uma expressão muito particular de um sistema de drenagem de recursos públicos para o capital financeiro. A economia e os partidos políticos estão dominados pelo capital financeiro, portanto tentam vender a ideia de que não se pode tocar na dívida, de que é normal que ela continue sendo paga”, observa.
O candidato da Frente de Esquerda ao governo gaúcho aponta que tanto o governador Tarso Genro (PT) quanto a senadora Ana Amélia Lemos (PP) defendem a continuidade do sistema da dívida e não questionam a sangria dos recursos públicos para o capital financeiro. O governador tem dito que o projeto de renegociação da dívida está consolidado no Congresso Nacional, quando, na verdade, a medida somente foi aprovada em uma comissão do Senado e não foi votada em plenário.
Mesmo assim, a proposta do governo federal incide apenas sobre o resíduo da dívida – ou seja, o valor que deverá ser pago após o fim do contrato, em 2028. Essa medida não reduz em nada os repasses mensais feitos pelo Rio Grande do Sul ao capital financeiro. E nem mesmo esse projeto – que sequer arranha as estruturas do sistema da dívida – recebe o aval do governo federal para ser aprovado, ainda que tenha sido o próprio governo o autor da iniciativa.
“Tarso e Ana Amélia não questionam o sistema da dívida. Ambos tentaram fazer uma renegociação no Congresso. Tarso tem dito que o projeto é o primeiro passo para resolver o problema, mas isso não é verdade. A renegociação não foi votada em plenário porque o governo, que foi quem encaminhou a proposta, acabou a engavetando por pressões do capital financeiro”, analisa Roberto Robaina.
A proposta da Frente de Esquerda é totalmente diferente do que é defendido por Tarso Genro e Ana Amélia Lemos. O petista aposta na aprovação do projeto de renegociação do resíduo da dívida para ampliar o espaço fiscal do Rio Grande do Sul e, com isso, continuar contraindo empréstimos com bancos internacionais. “O Tarso aposta em mais dívida. O estado ficará ainda mais endividado e, portando, dependente do capital financeiro e comprometido em termos de futuro”, alerta Robaina.
Já Ana Amélia Lemos propaga o discurso do ajuste fiscal, o mesmo defendido pelo governo de Yeda Crusius (PSDB). Trata-se de um projeto político baseado em arrocho salarial, retirada de direitos do funcionalismo, privatização de setores fundamentais do estado e diminuição de suas funções públicas.
O que a Frente de Esquerda propõe não é nem a manutenção da dependência em relação ao capital financeiro, nem a defesa de um estado mínimo. Queremos romper com o sistema da dívida, auditar esse contrato e informar à população quanto já foi pago, para quem foi pago e de onde saíram esses recursos.
Enquanto essa auditoria é feita, propomos a suspensão dos pagamentos da dívida, o que nos possibilitará investir com recursos próprios em educação, saúde e nas áreas consideradas prioritárias pela população.
Equador enfrentou sistema da dívida e deixou de pagar 7 bilhões de dólares
Sempre que se fala em auditoria da dívida pública, os defensores do capital financeiro dizem que, se isso for feito, o Rio Grande do Sul ficará isolado do restante do país e deixará de receber recursos federais. Mas existem exemplos de governos que já realizaram essa medida e comprovaram a perversidade dos contratos, reduzindo o montante devido e ampliando os recursos destinados ao que realmente interessa à população.
O caso mais emblemático é o do Equador, onde o presidente Rafael Correa criou, por decreto, uma comissão para realizar auditoria da dívida interna e externa do país. O grupo era composto por funcionários públicos, juristas, professores, representantes de movimentos sociais e seis especialistas internacionais.
Dentre os estrangeiros, estava Maria Lúcia Fattorelli, que é auditora aposentada da Receita Federal brasileira e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida. Em entrevista ao Sul21, ela relata que o trabalho no Equador durou um ano e quatro meses. O grupo foi dividido em diversas equipes, como “dívida interna”, “dívida externa”, “dívida bilateral” e “contratos com os bancos”.
“Entregamos em outubro de 2008 todos os relatórios e o presidente ficou particularmente interessado nos dados da dívida com os bancos, porque era a parcela maior, onde os juros eram mais caros. Conseguimos apresentar o relatório comprovando, com documentos, as diversas ilegalidades, irregularidades e até fraudes nesse processo. O presidente submeteu esse relatório ao crivo jurídico nacional e internacional e recebeu o aval de que o documento tinha sustentação jurídica”, conta Maria Lúcia.
Após o intenso trabalho de auditoria, o presidente Rafael Correa apresentou uma proposta à nação: arremataria a dívida por 30% de seu valor e daria um prazo para que os credores interessados entregassem seus títulos. Quem não concordasse poderia entrar na Justiça contra o país.
“Qual foi a grande surpresa? O mundo não caiu. Dizem que se você enfrenta o sistema financeiro, o mundo desaba. E isso não aconteceu no Equador. Cerca de 95% dos detentores acataram a proposta. Os outros 5% nunca apareceram. Ninguém entrou na Justiça contra o Equador”, recorda Maria Lúcia Fattorelli.
Para ela, a experiência do Equador “foi uma lição de soberania ao mundo” e comprova “que a auditoria é uma ferramenta que permite acessar a verdadeira história do endividamento”. “Depois dessa atitude, o Equador obteve um alívio orçamentário de US$ 7 bilhões, o que representa muito para a sua economia. E o país não ficou isolado, continua tendo acesso a créditos”, explica.
É neste modelo que a Frente de Esquerda pretende basear a auditoria que deve ser feita na dívida do Rio Grande do Sul. O processo irá contar com o protagonismo dos técnicos do estado, como os auditores da Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (CAGE), e com ampla participação da sociedade, através de diversas entidades, dentre elas, o movimento Auditoria Cidadã da Dívida, que possui experiência neste tipo de mecanismo.