Esfaqueou o professor
Foi na escola e esfaqueou o professor
Paulo Ghiraldelli
Os professores no mundo todo estão ameaçados. Mas, é claro, não se trata de algo assustador e deplorável como no Brasil.
Aqui, com o professor ganhando nove reais a hora-aula, sobra no magistério, não raro, as pessoas menos aptas e menos vocacionadas, as com menos recursos intelectuais para lidar com o ensino daqueles que não possuem background cultural. Além disso, essas pessoas, como professores, estão em um nível de pobreza que lhes tira qualquer possibilidade de autoridade em uma sociedade como a nossa, marcada pelo status vindo da riqueza. Agregado a isso, temos a falta completa de uma política educacional contínua, que valorize efetivamente a capacidade intelectual dos jovens, estudantes e professores. Eis então que a escola pública tornou-se antes um campo de perigo para o professor que um vale de desânimo.
Pelos estudos de especialistas, o magistério hoje, em vários lugares do Brasil, tem um índice de periculosidade igual ao do serviço público de segurança. Sair na rua correndo para pegar marginal é até menos perigoso que ficar numa escola pública, tentando ensinar alguém depois das nove da noite. Aliás, dado os casos de sumiços de alunos e selvageria com os professores (feita por alunos que nunca sabemos o quanto são ou não estudantes) na universidade pública, também o chamado ensino superior entra agora para a amostragem do leito de mais uma deterioração brasileira.
Os governos teimam em se desviar do problema: querem porque querem negar que a questão é salarial. Insistem em todo tipo de diagnóstico, menos os que apontem para o salário. Há até governos que passam anos diagnosticando, e desse modo, ao final, a única política que criaram foi a de pagar instituições para a pesquisa de dados escolares sobre o que todo mundo já sabe. Vocês não imaginam o quanto o MEC e as secretarias de educação dos estados são experts nisso.
As correntes políticas no Brasil atuam pouco ou nada para mudar esse quadro.
A direita política fala sobre a questão do ensino público apegada à visão tradicional, carcomida, de que o magistério é atividade de mulher, onde deve imperar o amor e o sacerdócio. Sobre o ensino, vigora o “ame-o ou deixe-o”. É o que dizem os governadores conservadores para seus professores. A esquerda política faz a mesma coisa, apegada a uma visão pretensamente não tradicional: de tanto repetir o erro de dizer que “educação não é mercadoria”, acaba se esquecendo de que no capitalismo a força de trabalho dos professores é sim mercadoria. Desse modo, a esquerda deixa de lado uma verdade do capitalismo: que para ter bons profissionais em um setor do mercado de trabalho é necessário que tal setor seja atrativo às melhores cabeças, e isso só se faz por melhoria salarial em primeiro lugar.
O pior de tudo é que, como solução dos problemas, a direita e a esquerda falam a mesma língua: acreditando que o ensino propedêutico deveria servir só para seus filhos, os ricos ou os mentalmente colonizados por eles querem para os filhos dos outros o ensino técnico-profissionalizante. Só isso seria propício para os pobres, uma vez que estes, segundo tal visão, se tornam bandidos em sala de aula porque não sentem utilidade no que ali se ensina. Ora, na busca do imediatamente útil, os ideólogos que assim falam, criam o ensino inútil. O que se entende por “ensino técnico” no Brasil é sempre um ensino que exagera na não-reflexão, incentivando as coisas práticas que, ao fim e ao cabo, nem são aprendidas, pois sem teoria boa e sem bons equipamentos e bons professores, nada acontece. Todos se esquecem que em uma sociedade industrial e moderna como a nossa, o ensino técnico profissional tem sentido como cursos paralelos, não pode estar vigente na rede pública, na sua estrutura.
Armas na escola
A estrutura da rede pública é lenta em tudo, e só faz a sua parte quando fornece ensino geral,fundamental no sentido de expor e cobrar fundamentos, e jamais pode se envolver com o ensino que exige troca da maquinaria, troca de professores e alterações segundo o gosto do mercado. Não se cria no ensino público em nenhum grau e nem se deve criar aquele ensino que é típico do sistema paralelo, as escolas particulares de cursos profissionalizantes rápidos, ou então o sistema SENAC-SENAI.
Direita e esquerda não conseguem ler Marx a respeito do ensino. Nem Nietzsche! Por isso tropeçam.
Marx foi enfático, quanto ao ensino básico: se é para unir ensino e trabalho (um ideal socialista), que o ensino seja o de fundamentos das ciências e das técnicas. Marx nunca disse que o ensino deveria ser não-reflexivo e voltado para o trabalho profissional; ele disse que o trabalho deveria dar o norte para o ensino. Dar o norte significava, para ele, observar o campo no qual as ciências estão se desenvolvendo, e então partir para a compreensão das ciências. Por isso Marx falou na educação do homem omnilateral. É incrível que as pessoas que se dizem de esquerda, hoje, não entendam que essa palavra é tudo, menos a criação de um homem feito de uma só laterialidade, homem de formação estreita, “profissional” no sentido da especialização “burguesa”.
Nietzsche foi também enfático, quanto ao ensino superior: o ensino dos homens destinados a serem cultos não pode ser historicista, no sentido de transformar tudo em uma “sobrecasaca burguesa”, que vestimos para sair e que depois, em casa, tiramos. Um homem criado como quem recita a filosofia, por exemplo, mas não a tem como guia da sua vida, não pode ser um professor universitário. O estudante que sai das mãos de gente assim, também irá, ele próprio, não ser outra coisa que aquele que sequer imagina a vida dos gregos, que adotavam posturas filosóficas para suas vidas.
Em outras palavras: com um ensino básico “profissionalizante” no sentido estreito e com um ensino superior de caráter historicista (tudo é história, tudo é já para ser contado sem ser vivido), só teremos no final, no máximo, o “filisteu da cultura”, aquele elemento deplorável e nojento tão bem delineado por Hannah Arendt. Aquele que até parece saber alguma coisa e até sabe mesmo, mas que não tem nenhum apreço pelo saber senão o de apresentar com seu saber uma forma de angariar posições de riqueza, poder, influência etc.
No ensino básico público há o caos. No ensino superior, começa agora o caos.
Estamos no ensino superior vendo levas e levas de alunos que não querem mais estudar, não
querem respeitar o professor, desejam processar professores por conta de piadas e, enfim, até mesmo por conta do próprio conteúdo da aula. Tudo ofende esses ignorantes. A teoria da evolução os ofende, a Bíblia os ofende, a sexualidade descoberta por Freud os ofende, a imagem de um deus com falo os ofende, a descrição de vários pontos polêmicos da plataforma feminista os ofende, a polêmica os ofende e assim por diante.
Chamada Escolar
O aluno que você imagina estudante é exatamente o que não estuda. Ele ganha uma bolsa do CNPq para se dar ao direito de só assistir aula com o orientador dele, a quem toma como guru. Assim, não raro, como uma espécie de capanga, passa a fustigar os professores desafetos do orientador dele. Vira um puxa-saco de quem lhe dá a bolsa. Um vigarista. Uns então vão à imprensa dizer que estão sendo obrigados a só ler marxismo, e outros vão à reitoria dizer que estão sendo agredidos ao terem de ler e respeitar “autores conservadores”. No fundo dessa aparente vontade de teoria há, sim, a verdade desse estudante atual da universidade: a sua incompreensão, típica do filisteu da cultura, do que a cultura. Ele não gosta da vida cultural, mas não abandona a universidade.
Nesse imbróglio a universidade começa a ser um lugar não mais de acolhimentos dos melhores intelectuais. E assim a bola de neve vinda do ensino básico atinge o ensino superior. No frescor disso tudo, vem o fim do vestibular e as alterações no sentido de que qualquer energúmeno possa fazer um Enem da vida e entrar para o ensino superior, no qual ele não pode se desenvolver se não ocorrer a baixa geral da qualidade. É isso. É o que ele passa a pedir: que a universidade fique em um nível simiesco que é o dele.
É o retrato do Brasil, e não há no horizonte nenhuma plataforma de mudança. Muito pelo contrário. Estamos a meio passo de ver também nas universidades o que vemos todos os dias no ensino básico público, as facadas literais de alunos em professores que não lhes deram boa nota.
Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
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