Cargo público por decisão judicial
Decisão do STF: Assunção de cargo público por decisão judicial provisória e a teoria do fato consumado
13 de agosto de 2014
Com a aposentadoria do Min. Joaquim Barbosa e já sob a presidência do Min. Ricardo Lewandowski, passada uma primeira sessão em que se dedicou a eliminar da pauta mais de uma centena de agravos regimentais e embargos de declaração que a atravancavam, o Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) retomou, este início de semestre, a análise de casos submetidos à sistemática da repercussão geral. E concluiu, desde logo, o julgamento de tema que, por diferentes razões, atinge os interesses tanto de órgãos e entes da Administração pública, como daqueles que pretendem ingressar em seus quadros: a possibilidade ou não de aplicação da chamada “teoria do fato consumado” a situações em que a posse ou o exercício em cargo público se tenha dado por força de decisão judicial de caráter provisório (RE 608.482, Rel. Min. Teori Zavascki).
No caso que serviu à discussão carreada pelos Ministros do STF, para fins de repercussão geral, uma candidata inscrita em concurso para agente de polícia no Estado do Rio Grande do Norte obteve, no ano de 2002, uma liminar em ação cautelar para ser empossada no cargo, tendo a posse se dado sem que a candidata houvesse sido aprovada em exame físico (objeto de questionamento na ação), tampouco se submetido a exame psicotécnico – respectivamente, segunda e terceira etapas do certame, conforme previstas no edital respectivo. Sete anos mais tarde, diante do decurso do tempo e do fato de que a interessada não só obtivera êxito no curso de formação para a atividade como, até então, desempenhara a contento as funções que assumira, o TJ (Tribunal de Justiça) estadual, embora reconhecendo que não lhe assistia razão no mérito da impugnação efetuada judicialmente, manteve-a em exercício no cargo, com base na teoria do fato consumado. Foi em face do acórdão do TJ que o Estado do RN interpôs o recurso extraordinário que, com repercussão geral reconhecida desde setembro de 2.011, teve seu mérito julgado esta semana.
O interesse despertado pela questão é tamanho que a União solicitou e teve deferida sua participação no processo como amicus curiae, tendo uma representante da AGU (Advocacia-Geral da União) feito sustentação oral na sessão de julgamento, com vistas a reforçar os argumentos esposados pelo Estado recorrente, no sentido da impossibilidade de se convolarem em definitivos, pelo simples transcurso do tempo, a posse e o exercício que hajam sido determinados por decisão judicial de natureza provisória não confirmada no mérito, sob pena de afronta ao princípio constitucional que determina a realização de concurso público para acesso a cargos e empregos públicos.
Em seu voto, o Relator destacou, de início, que a solução para a problemática que se apresentava ao colegiado deveria passar pela ponderação entre, de um lado, o interesse individual do candidato de manter cargo público que já vinha sendo exercido havia alguns anos, independentemente de aprovação em concurso, em virtude de medida liminar, e, de outro lado, o interesse público em se dar força ao dispositivo constitucional referente à realização de concurso público – que, a seu turno, daria ainda concretude a princípios como os da impessoalidade, moralidade e eficiência, encartados art. 37, caput, da Constituição. A “quebra da exigência de concurso”, nos dizeres do Ministro, representaria, ainda, “severo comprometimento do princípio da igualdade em matéria de acesso aos cargos públicos”.
Salientou, então, que a jurisprudência do STF, em casos dessa natureza, tem se firmado no sentido de “dar prevalência à estrita observância das normas constitucionais”, arrolando decisões das duas Turmas do Tribunal, bem como monocráticas, que concluíram pela “inaplicabilidade da teoria do fato consumado a casos em que se pleiteia a permanência em cargo público cuja posse tenha ocorrido de forma precária, em razão de decisão judicial não definitiva” (a título de exemplo, contendo referências a outros precedentes: RE 405.964 – AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli; RE 587.934, 2ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia). A “solidez da jurisprudência” da Corte, assim evidenciada, “sopesando os interesses e valores em conflito, faz preponderar, sobre o interesse individual do candidato, o peso maior do interesse público na manutenção dos elevados valores jurídicos que de outra forma ficariam sacrificados”.
Antecipando-se, então, à discussão que viria a se instalar quando da declaração de voto divergente, o Min. Teori Zavascki observou que não seria o caso sequer de se considerar, nessa ponderação, o argumento da boa-fé ou o princípio corolário da confiança legítima do administrado. “Esse argumento é cabível”, disse o Relator, “quando, por ato de iniciativa da própria Administração, decorrente de equivocada interpretação da lei ou dos fatos, o servidor se vê alçado a determinada condição jurídica ou vê incorporado a seu patrimônio pessoal determinada vantagem, fazendo com que essas peculiares circunstâncias provoquem em seu íntimo uma natural e justificável convicção de que se trata de um status ou de uma vantagem legítima”; por essa razão, a verificação a posteriori da ilegitimidade do status ou da vantagem “caracteriza, certamente, comprometimento da boa-fé ou da confiança legítima do administrado”, provocado por ato da Administração, “o que pode autorizar, ainda que em nome do fato consumado, a manutenção do status quo ou a dispensa da restituição de valores”. Daí que, em seu entendimento, não faria sentido invocar esse argumento em prol do interesse do candidato empossado e em exercício de cargo por força de medida liminar, uma vez que, neste caso, a vantagem obtida se teria dado não por ato da Administração, e sim do próprio servidor, contra a vontade da Administração. No caso vertente, lembrou que “não se desconhece a natureza precária” que possui toda decisão judicial provisória, cuja execução, por expressa previsão legal (art. 475-O do Código de Processo Civil), “corre por conta e risco de quem a requer” e dela se beneficia, ficando assim sujeito “aos riscos de sua revogação” – revogação que opera efeitos retroativos (ex tunc), restabelecendo as partes ao estado das coisas anterior à decisão.
Caminhando para a conclusão de seu voto, o Relator assinalou que, se nem esse princípio pode ser contraposto aos que orientam o acesso aos cargos públicos por concurso, restaria tão somente o interesse individual do candidato, que não poderia se sobrepor ao interesse público de fazer valer a exigência da realização de concurso público para acesso aos quadros da Administração. Diante disso, entendendo pela impossibilidade de se aplicar a teoria do fato consumado a situações em que a posse ou o exercício em cargo público se tenha dado por força de decisão judicial de caráter provisório, o Min. Teori Zavascki votou por dar provimento ao RE 608.482, sem prejuízo, contudo, de assegurar à recorrida os vencimentos e vantagens recebidos até a data do julgamento pelo exercício efetivo do cargo.
Veio do Min. Roberto Barroso a proposição de solução do caso em sentido diverso do apresentado pelo Relator, não apenas para se resolver a demanda concreta que o ensejara, mas, sobretudo, para fins de fixação de tese em sede de repercussão geral. Procurando tirar o foco da teoria do fato consumado – que assinalou ter “nome infeliz”, por dar a entender que uma ilegalidade consumada poderia gerar direitos – e ressalvando que concordava com muitos dos conceitos e premissas, mas não com o enquadramento dado pelo Relator à situação retratada no caso, observou que aqui estaria em jogo saber se existe ou não hipótese de prevalência do princípio da proteção da confiança, quando em ponderação com o do concurso público.
Frisando que o princípio da proteção da confiança (ou confiança legítima) seria uma “vertente subjetiva” do princípio da segurança jurídica – cuja “vertente objetiva” seria a que veda a retroação da lei, de modo a proteger o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada – o Ministro sugeriu a adoção de três parâmetros que, no seu entendimento, seriam capazes de distinguir as situações em que haveria ou não sua aplicação: a) o “tempo decorrido entre as decisões judiciais contraditórias”, se maior ou menor do que um determinado lapso temporal – considerando razoável, para tanto, o prazo de 5 anos, por analogia ao estabelecido pela Lei 9.784/1.999 para anulação dos seus atos pela própria Administração; b) o “grau de estabilidade da decisão judicial” – sendo mais frágil a situação de quem obteve acesso ao cargo público por força de provimento judicial liminar, um pouco mais consistente quando por sentença de primeiro grau e mais forte para situações consolidadas por força de acórdão de Tribunal de segundo grau; e c) o órgão do qual provém a decisão – salientando que, “quanto mais elevado o grau do órgão, maior a expectativa de direito a ser protegida”.
Transpondo o raciocínio para o caso concreto, objeto do RE 608.482, o Min. Roberto Barroso entendeu que se estaria diante de hipótese de prevalência do princípio da proteção da confiança – mais de 5 anos decorridos entre a decisão liminar que assegurara posse e exercício no cargo e a análise do caso pelo STF, decisão liminar confirmada por decisão definitiva, inclusive em segunda instância – de maneira que, a seu ver, deveria ser negado provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Estado do RN. Para fins de repercussão geral, sugeriu que se consignasse tese segundo a qual “no caso de investidura em cargo público por força de decisão judicial ainda sem trânsito em julgado, a aferição de eventual confiança legítima a ser protegida envolverá a consideração dos seguintes fatores: a) permanência no cargo por mais de 5 anos; b) plausibilidade da tese jurídica que justificou a investidura e ausência de conduta processual procrastinatória; e c) decisão de mérito proferida por órgão colegiado”.
Entre intervenções assertivas e momentos de certa tensão, intercalados por pequenas – e por vezes jocosas – provocações entre os membros da Corte, a divergência aberta pelo Min. Roberto Barroso foi seguida tão somente pelo Min. Luiz Fux, tendo prevalecido, por maioria, o entendimento esposado pelo Relator, reforçado sob alguns aspectos pelos colegas que o acompanharam, inclusive para refutar argumentos levantados pela divergência. Assim, o Min. Gilmar Mendes observou que o princípio da confiança legítima não poderia ser invocado na situação vertente porque pressupõe inércia da Administração (que não teria havido no caso) e ausência de má-fé por parte do administrado (sendo que a interessada não poderia alegar desconhecimento quanto à natureza precária da decisão que a beneficiara); que fixar um prazo determinado para ensejar sua aplicação, como regra, não só funcionaria como um estímulo para “falsas medidas liminares”, já que estas se convolariam em definitivas depois desse tempo determinado, como ainda instituiria “um novo modelo de coisa julgada, a coisa julgada intercorrente”, uma vez que frustraria a manifestação das instâncias judiciais superiores, inclusive do próprio STF. A Min. Cármen Lúcia, a seu turno, asseverou que a exigência do concurso público é “uma garantia da República, que não pode permitir que alguém aposte na morosidade do Judiciário para deixar de cumprir o que é devido”; que a medida liminar tem natureza precária – “não gera direitos, não acarreta obrigações e não convalida situações”; que, na situação subjacente ao RE 608.482, não houve o cumprimento pela interessada do que estava previsto em edital. Este último aspecto foi destacado igualmente pelos Ministros Rosa Weber – que relembrou ter sido a candidata reprovada na 2ª fase e não ter realizado a 3ª fase do concurso, sendo empossada com base em medida liminar – e Celso de Mello – que afirmou que “o ato de conteúdo sentencial”, referindo-se ao acórdão do TJ estadual, “apenas confirmou a procedência (da demanda) por uma única e singular razão: a invocação da teoria do fato consumado”, tendo em verdade sido afastada, no mérito, a plausibilidade do direito invocado pela candidata em busca de tutela jurisdicional, como destacara o Relator.
Ao fim, foi dado provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Min. Teori Zavascki, vencidos os Ministros Roberto Barroso e Luiz Fux. E, ainda que não se tenha proclamado formalmente a tese consagrada, para fins de repercussão geral – o que há de se elucidar quando vier a ser lavrado o acórdão respectivo – o que se extrai desde logo do julgamento, em essência, é o entendimento pela inadmissibilidade da aplicação da teoria do fato consumado a situações em que a posse ou o exercício em cargo público se tenha dado por força de decisão judicial de caráter provisório.
O resultado e os debates havidos no julgamento do RE 608.482 comportam algumas observações. Em primeiro lugar, quanto ao mérito da questão posta à apreciação da Corte, evidencia-se uma reiteração nos pronunciamentos da jurisprudência do STF no sentido de se tratar a norma constitucional relativa ao concurso público como um princípio, ao qual se deve assegurar a maior efetividade possível, ainda que sujeito a ponderação quando em potencial colisão com outras normas e valores da mesma magnitude. Assim o foi no caso emblemático em que o Tribunal reconheceu o direito à nomeação dos candidatos aprovados em concurso público (RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes), no qual, embora se tenham reconhecido situações excepcionais que permitiriam não fosse a nomeação efetuada, se invocou o princípio da proteção à confiança não em contraposição ao do concurso público, mas sim para reforçá-lo, na medida em que se restringiu o campo de discricionariedade da Administração em prol da confiança do administrado, para obrigá-la em regra à nomeação dos aprovados, de maneira a garantir a efetividade da norma constitucional que estabelece o concurso público como forma principal de acesso a cargos e empregos públicos no país. No julgamento do RE 608.482, também a norma constitucional do concurso público foi submetida a um exercício de ponderação, que igualmente resultou, no entendimento da maioria dos Ministros, em sua precedência sobre princípios e valores outros com ela colidentes diante de determinadas circunstâncias.
Em segundo lugar, o julgamento do RE 608.482 é ilustrativo de uma dificuldade inerente à sistemática da repercussão geral. A Min. Rosa Weber, em seu voto, após constatar as especificidades da situação concreta subjacente à discussão que se propunha a uma solução genérica, observou que talvez o caso não fosse “o melhor para analisar a tese proposta pelo Min. Roberto Barroso”. Se, de um lado, o instituto da repercussão geral se presta à “objetivação” do recurso extraordinário como mecanismo de controle de constitucionalidade, de outro lado, não deixa de existir uma situação concreta a ser resolvida, para cuja solução a questão da constitucionalidade é incidental, e não o objeto principal. Há uma espécie de “tensão interna” entre os contornos do caso concreto e a necessidade de proclamação de resultados com alcance genérico, para fins de repercussão geral. Já houve situações, a exemplo de julgamento comentado nesta coluna, em que a tese que se reconhecera em repercussão geral poderia levar à “perda de causa” pelo recorrente que a invocara, exigindo esforço e contorcionismos por parte dos Ministros para que não se perdesse a tese, nem sucumbisse o direito da parte.
Em verdade, já em uma de suas primeiras participações em julgamentos como membro da Corte, quando se discutia a constitucionalidade de uma determinada forma de majoração da base de cálculo do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), nos termos de certo recurso extraordinário ao qual se reconhecera repercussão geral, o Min. Roberto Barroso indagara a seus colegas se não seria o caso de se pensar em solução diversa daquela para a qual se encaminhava o caso, com vistas ao estabelecimento de parâmetros objetivos, mediante os quais se pudesse encontrar um “ponto de equilíbrio” entre a proteção ao contribuinte e as necessidades de arrecadação do Município (RE 648.245, Rel. Min. Gilmar Mendes, aqui igualmente comentado). E já naquela ocasião a Min. Cármen Lúcia observara que a questão levantada pelo colega não se apresentava diante do quadro fornecido pela situação de fato e de direito que ensejara a discussão, salientando que o julgamento, sendo restrito a um quadro específico, não permite que haja o debate que se exigiria no sentido do quanto ponderado pelo Min. Roberto Barroso, embora não obstasse que isso fosse feito em caso com quadro diverso, com outra caracterização, em que cabível a discussão.
O alerta de então da Min. Cármen Lúcia é essencial para se compreender o alcance do que veio a ser decidido agora, no RE 608.482: reconheceu-se a inadmissibilidade da aplicação da teoria do fato consumado apenas às situações como as descritas no caso que ensejou a discussão, em que a posse e o exercício no cargo se deram exclusivamente em virtude de decisão de caráter provisório. Nem mais, nem menos, tão só nos limites exatos de fato e de direito da controvérsia subjacente à decisão.
Mas o alerta em questão, a bem dizer, é tão ou mais essencial para que sejam lembrados os limites da atuação do Tribunal no exercício da jurisdição constitucional: se é certo que não lhe é dado omitir-se quando provocado a pronunciar-se sobre questão de índole constitucional, é igualmente certo que não pode extrapolar dos limites da questão submetida à sua apreciação, para pretender formular enunciados genéricos, com efeito vinculante e eficácia geral, sob pena de perpetrar ofensa ao princípio da separação de poderes, enunciado como garantia na Constituição mesma que ao STF, por missão institucional, incumbe proteger.
Christianne Boulos
Christianne Boulos é doutora em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo).