Evasão e série errada
33 mil abandonaram o Ensino Médio; 156 mil estão na série errada
O índice de abandono é o menor dos últimos seis anos, mas ainda preocupa a Seduc. Distorção idade-série é outro dado alarmante
Fonte: O Povo (CE) 04 de agosto de 2014
A mãe adoece. E a garota vê o amor esbarrar numa outra necessidade. Tornar-se sentença de um possível abandono. “Era só nós duas lá em casa. Se eu fosse pro colégio, não tinha quem cuidasse dela”. Faltou quase nada para a jovem afastar-se dos estudos. Foi preciso a escola intervir. “O pessoal (diretor/coordenador) chamou tio, primo... Pediu pra um ficar um dia, outro ficar outro...”. Não fosse isso, ela teria reforçado a estatística preocupante dos 33 mil alunos do ensino médio cearense que abandonaram a sala de aula no ano passado.
Segundo a Secretaria Estadual da Educação (Seduc), isso representa 9,6% do corpo discente dos cinco níveis do último período da educação básica, que é formada pelo primeiro, segundo e terceiro anos regulares, o quarto ano dos ainda existentes cursos pedagógicos para formar professores e as turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A rede pública do Ceará no ensino médio é composta por 350 mil estudantes.
Esse índice de abandono de 9,6% em 2013 é o menor dos últimos seis anos no Ceará. Em 2008, era de 15,7%. Por outro lado, apesar de também ter caído, é alarmante a elevada quantidade de alunos cursando as séries do ensino médio fora da idade considerada ideal pelas diretrizes educacionais nacionais para cada nível.
Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2014, o Ceará teve em 2012 – dado mais atual - uma taxa líquida de matrícula de 55,3%. Isso significa dizer que os 44,7% dos demais estudantes estão na chamada distorção idade-série. Não concluem o primeiro, segundo e terceiro anos aos 15, 16 e 17 anos, respectivamente. Estimativas feitas pela Seduc ao O POVO apontam pouco mais de 156 mil estudantes com esse perfil.
Outro indicativo incômodo do Anuário é o elevado percentual de jovens de 19 anos que não concluíram o ensino médio no Ceará. Eles não terminaram os estudos por já estarem em anos errados (distorção idade-série) ou por terem abandonado a escola. Quarenta e sete por cento dessa faixa etária do Estado estava nessa situação em 2012. Das nove maiores regiões metropolitanas do País, Fortaleza tem o quarto maior índice de não conclusão (49,4%).
Titular da Seduc, Maurício Holanda diz que boa parte do abandono no ensino médio concentra-se nas turmas noturnas, cujo perfil do alunado difere daquele dos períodos diurnos. À noite, em geral, estudam os jovens que trabalham pela manhã e à tarde.
Mas ele lista outros motivos para ainda existirem tantos abandonos e distorções. “A perda de interesse diante de fracassos (reprovações) acumulados; a pressão pra ganhar dinheiro e se afirmar como consumidor independente; o clima escolar, de o jovem chegar na escola e nem sempre encontrar um ambiente de coleguismo; e o currículo escolar, que poderia ser enxuto, mais consistente e menos academicista e descontextualizado”.
Na análise do secretário, o Ceará “vai bem” nos indicadores nacionais. “Quando você analisa a taxa líquida de 1995, o Ceará tinha 13,2% e o Brasil tinha 23,5%. Em 2012, o Ceará tinha 55,3% e o Brasil tinha 54,4%. Nós crescemos 42 pontos, enquanto nacionalmente se cresceu 30. Estamos num ritmo melhor, mesmo sendo um estado pobre. Mas o ensino médio é o grande gargalo da educação. Você vê as coisas melhorando no ensino fundamental e um gargalo muito forte no ensino médio, porque os meninos já têm uma certa decepção. A gente está tentando deixar a escola mais desejada pelos alunos”.
Além de mudanças no currículo escolar, ele defende a oferta de uma rotina diferenciada de estudos para os alunos do período noturno. Ao invés de o ensino médio ter três anos, passar a quatro, por exemplo. E com menor carga de horas/aula/dia. “É pesado o cara passar o dia trabalhando e ir para a escola à noite. A gente precisa compreender as especificidades”, pondera.
Serviço O “Anuário Brasileiro da Educação Básica 2014” pode ser acessado em www.todospelaeducacao.org.br
Procurado pelo O POVO, o Ministério da Educação (MEC) destacou, em nota oficial, o programa Ensino Médio Inovador (ProEMI) como medida para tentar conter o abandono escolar. Criado em 2009, o ProEMI induz “as escolas à elaboração do redesenho dos currículos para a oferta de educação de qualidade com foco na formação humana integral.”
O MEC citou também o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, lançado em 2013 e que “representa a articulação e a coordenação de ações e estratégias entre a União e os governos estaduais e distrital na formulação e implantação de políticas para elevar o padrão de qualidade do ensino por meio de diferentes estratégias”.
A Seduc destaca dois projetos criados para evitar a evasão/abandono escolar. Um deles chama-se Professor Diretor de Turma (PDT), no qual cada turma do primeiro e do segundo ano do ensino médio tem um professor para acompanhar de perto o rendimento de cada estudante. O outro é o Programa
Agente Jovem. Cada sala tem um líder e um vice-líder. Eles fazem a chamada dos alunos, identificam os faltosos e acionam a direção. Também fazem o acompanhamento disciplinar dos colegas.
Acompanhar cada caso é fundamental
Ao identificar um aluno em risco de abandono dos estudos, a primeira medida da gestão escolar é procurar o jovem. E a família. Pais e responsáveis precisam acompanhar o processo de perto e conhecer a real situação do(a) garoto(a). Um diagnóstico preciso da causa das faltas deve ser traçado.
A diretora do Liceu do Conjunto Ceará, Socorro Nogueira, faz um pente fino nas salas de aula periodicamente. “Não mando ninguém porque acho que esse é o papel do diretor. Se falta, ligo pra saber. Acho que é bacana esse olho no olho. Porque os problemas são múltiplos.”
Ela já deparou-se com casos de alunos que deixaram de frequentar as aulas por não terem dinheiro para o transporte, por terem que cuidar dos pais doentes, por terem de fazer algum tratamento de saúde, por precisarem trabalhar para terem como arcar com os custos de casa, por tornarem-se pai/mãe... “A gente explica que deve haver uma colaboração familiar. A gente só consegue quando responsabiliza a família. Se preciso, fala do Conselho Tutelar. Em geral, só essa “ameaça” resolve. Eles (os pais/responsáveis) têm medo”.
A rotina de acompanhamento discente de Socorro é similar a do diretor da Escola de Ensino Fundamental e Médio José de Alencar, Jefferson de Queiroz Maia. A unidade fica em Messejana. “Existem casos que a gente não consegue evitar o abandono porque os fatores são externos. Mas em muitos casos a gente consegue. O maior problema da nossa juventude na escola é o mau desempenho. Isso desestimula. Em geral, eles saem porque querem entrar logo no mercado de trabalho. É muito raro o aluno abandonar pra ficar em casa”.
Casos de desestrutura familiar também são diagnosticados. “A gente se depara com situações em que a mãe e o pai perderam o pulso com o garoto. Se a escola não tiver uma cobrança mais firme, o aluno fica muito à vontade. Mas tem muito caso que é falta de atenção da família. Porque a mãe trabalha o dia todo e não acompanha de perto. Aí, a gente chama e pede pra ela acompanhar. Ela assina um termo se comprometendo”, explica Jefferson.
Ele pondera que cada caso requer uma resolução específica. É preciso compreender as realidades familiar, social e de aprendizagem do aluno. “Quando é porque ele começou a trabalhar e não está conseguindo chegar no horário da aula, a gente entra em contato com a empresa e pede pra liberar mais cedo. Quando não tem jeito, pra não perder o aluno, a gente muda ele de turno. Porque, muitas vezes, eles priorizam o trabalho mesmo. A gente sempre tenta achar uma alternativa pra não perder esse aluno.
Quando a gente perde, a gente não cumpriu a nossa função.”
"Não vejo dinamismo do professor", diz promotora
Titular de uma das promotorias de Educação do Ministério Público do Estado (MPE), Elizabeth de Oliveira cobra mais agilidade dos educadores na identificação de casos de abandono e na tomada de providências para reverter o quadro. “Não vejo dinamismo do professor atento pra isso; de comunicar ao diretor. E o diretor, imediatamente, procurar saber o que está havendo. O que eu percebo é que tem uma pouca comunicação da escola com o Conselho Tutelar, quando deveria ser muito rápido”.
Entretanto, ela admite que a atual estrutura dos conselhos tutelares de Fortaleza, por exemplo, inviabiliza muita coisa. A cidade não tem nem o número ideal de unidades. Deveriam ser 19 conselhos. São seis. “Eles trabalham de forma heroica. Não deixa de ser um faz de conta. Porque você cria o jovem e Município e Estado não estruturam para atender uma demanda”.
A promotora acredita que os índices educacionais vão melhorar quando os professores começarem a combater a infrequência escolar. “É ele quem constata primeiro. É preciso fazer um link entre professor, diretor, conselho tutelar e, depois, Ministério Público. Esse é o andamento normal da coisa que, infelizmente, não tem andado de forma harmônica”.
Elizabeth de Oliveira alerta que quanto mais jovens o Ceará tiver fora da escola, maior será o risco de eles envolverem-se em atos ilícitos. “Serão mais jovens em assaltos e a gente sentindo isso na pele. Nós temos que resolver isso não pelo medo. Mas por solidariedade enquanto sociedade. Por acreditarmos que só existe um poder transformador: a educação.