O Enem e a educação
O Enem e a educação em valores no ensino médio
Celso Antunes
Muitos professores brasileiros que ministram aulas no ensino médio repudiam a ideia de desenvolver um projeto de formação de personalidade de seus alunos inspirado em valores éticos e morais, por acreditarem em duas falácias que esta breve crônica busca desmontar: a primeira é a alegação de que o tempo que se consome para a exposição dos conteúdos torna impossível um desvio para a educação ética. Já a segunda é a de que materializar competências em sala de aula – e, dessa forma, melhor preparar os alunos para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – constitui tema explícito às áreas de conhecimento tradicionais, de modo que questões procedimentais e reflexões morais seriam capítulos à parte das linguagens, dos códigos e suas tecnologias, das ciências humanas, das ciências da natureza e da matemática.
Quando assim se acredita, realmente não sobra tempo para a discussão de procedimentos e a formação da pessoa do aluno, nem mesmo é perceptível a contextualização de temas curriculares aos desafios de uma vida física e mentalmente saudável. A desmontagem dessa concepção não é apenas possível, como temos acompanhado com interesse inúmeros casos em que os alunos tornaram-se “afiados” para os desafios do Enem e, mais ainda, conscientes de sua singularidade como pessoa e da assunção de um protagonismo ético em casa, no emprego e na construção de suas amizades. Como, então, integrar essas vias e desmontar a ideia de que trabalhar valores segue via distinta de formar consciências?
Aprimorar a capacidade plena de compreensão de textos (em língua portuguesa ou estrangeira), mas também de diagramas, gráficos, charges, pinturas e quadrinhos é essencial em todas as disciplinas do currículo e seguramente nenhuma delas se afasta de associações à ética e à bondade, à justiça e à coragem, à autonomia e à leitura e à aceitação da pluralidade. Qualquer professor que agrupar seus alunos e desafiá-los a buscar esses valores na literatura, em revistas de histórias em quadrinho, nas novelas exibidas na televisão ou nos filmes em cartaz perceberá resposta entusiástica a esse desafio e vai se surpreender com como a discussão em grupos sugere alternativas que ligam o que se aprende na escola e a leitura que se faz do entorno e da rua. De igual maneira, a compreensão e a interpretação de fenômenos aparecem nos livros como aparecem nos shoppings, emanam dos filmes e das novelas como se destacam nos livros didáticos. Uma discussão coletiva em que o protagonismo do aluno é instigado traz surpreendentes revelações. Se essas competências básicas emergem dos eixos cognitivos e se espalham pelos caminhos que se percorrem, mais ainda se evidenciam e se destacam quando a discussão visa solucionar problemas, dominando linguagens e olhando os fatos.
Construir argumentação e elaborar proposta requer o domínio de conteúdos conceituais e a percepção de que estes também podem ser vistos nas ruas em que se anda, nas festas que se frequenta, nos esportes que se aplaude ou pratica. Qualquer aluno em qualquer lugar do mundo que encontrasse um adulto (pai, amigo ou professor) que o desafiasse, em cada instante e curva da estrada, a fazer das competências do Enem o seu jeito de ler a vida e pensar seu tempo – e, mais ainda, propiciasse espaço e oportunidade para discutir essas observações com seus colegas –, estaria sendo simultaneamente preparado para viver melhor e, de quebra, ser ainda “fera” nas provas do Enem.
Artigo publicado na edição de maio de 2014.