Do discurso para a execução
Especialista em políticas públicas educacionais, Carlos Roberto Jamil Cury destaca os desafios que se abrem com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) e as oportunidades de melhorias que ele traz consigo
Fonte: Revista Educação 14 de julho de 2014
Com três anos de atraso, o Congresso aprovou, em junho passado, a versão definitiva do Plano Nacional de Educação (PNE). São 20 metas que devem ser cumpridas pelo governo federal, estados e municípios nos próximos dez anos, contados a partir da sanção da lei pela presidente Dilma Rousseff. Nessa entrevista, Carlos Roberto Jamil Cury, especialista em políticas públicas educacionais, analisa os desafios do plano e seu potencial para mudar a educação brasileira. Cury é professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, entre outros cargos, ocupou ao longo de sua carreira a presidência do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Em suas palavras, o PNE representa a oportunidade de ouro para avançarmos na quantidade e na qualidade da educação, especialmente porque desta vez foi incluída uma meta de financiamento – elemento fundamental que ficou de fora do primeiro PNE e inviabilizou sua implementação. Apesar dos avanços, a execução da lei depende de muitos fatores, entre eles da concretização de um Sistema Nacional de Educação que articule estados e municípios e o Distrito Federal em “favor das finalidades maiores da educação”.
Analisando de maneira geral, o que o governo, os partidos e os movimentos da sociedade civil demonstraram ao longo desses três anos de negociações em torno do PNE? Qual a sua análise sobre esse processo?
Durante o tempo de tramitação do projeto, houve inúmeras audiências públicas na Comissão de Educação da Câmara e mesmo do Senado. Foram convidadas organizações da sociedade civil, como o Todos pela Educação, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, associações profissionais e científicas, além de representantes governamentais, a exemplo do Ministério da Educação (MEC), o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Havia um razoável consenso quanto à maioria das metas e das estratégias. Os pontos de conflito foram: os 10% do PIB; se se adicionaria ou não o adjetivo ‘pública’ após o substantivo ‘educação’; se o enunciado seria só os professores ou os professores e as professoras e, finalmente, o modo de inclusão do enunciado no Plano do Custo-aluno-qualidade, que consta da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). A delonga na aprovação do PNE também evidenciou a dificuldade de passar à ação e à efetividade a sempre proclamada (e adiada) prioridade da educação. Ficamos três anos sem metas oficiais para a educação.
O que o PNE recém-aprovado traz de novo em comparação com a proposta anterior? E qual o legado do primeiro PNE?
A grande novidade é a assinalação de recursos para o devido investimento. Que sejam os 7% do PIB para o primeiro quinquênio, sejam os 10% na chegada do ano 2022 (bicentenário da Independência), desta vez não se poderá dizer que haverá veto ao financiamento. O importante é que o investimento seja feito com rigor, com racionalização e com destinação legal. O legado do primeiro PNE foi o de ter registrado metas a partir de uma radiografia consistente. As metas, no entanto, ficaram muito mais como referências do que algo a ser atingido. Mas o que ficou de negativo, no anterior, foi a consciência aguda de que sem financiamento não há plano porque as metas não se sustentam.
Quais são as perspectivas que se abriram com a promessa de que, em até dez anos, 10% do PIB, no mínimo, será aplicado na educação?
É preciso notar que, no primeiro quinquênio, o investimento deverá chegar aos 7% do PIB. Já o de 10% é ao final do segundo quinquênio. Não se pense que é pouco dinheiro. Contudo, sem um controle civil destes recursos, como o exercido pelos Conselhos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), sem um controle dos órgãos existentes para tal, como os Tribunais de Contas, ou as metas não se atingem ou elas ficarão parcialmente comprometidas. Como o investimento é de grande porte, será possível ampliar significativamente o acesso a todas as etapas obrigatórias (de 4 a 17 anos) e se pensar nos flancos abertos da formação inicial dos docentes, na formação continuada, na melhoria salarial dentro de uma carreira e, então, na avaliação de desempenho. Em outros termos: é a oportunidade de ouro para avançar na quantidade e na qualidade.
Entre as metas do PNE estão a erradicação do analfabetismo e 25% de oferta de ensino integral. É possível cumprir metas ambiciosas como essas em uma década?
De fato são metas ambiciosas. Mas quem não sonha com catedral, não constrói igreja. Elas são urgentes e necessárias. É preciso, entrementes, que o regime de colaboração, agora à luz do Sistema Nacional de Educação – cujo perfil operatório é de fundamental importância –, entre em ação. Vale dizer, é preciso que os governos todos se empenhem, no regime federativo, em uma mesa de negociação para que a gestão não se disperse e nem os recursos se percam.
O governo federal conseguiu evitar que fossem retirados da base de cálculo os recursos aplicados em entidades filantrópicas e programas de expansão do ensino, como o Fies, e o ProUni. O relator do PNE disse que esses valores são insignificantes se comparados ao que será investido em educação pública. Você está de acordo?
Esses recursos, amanhã, poderão fazer falta. Trata-se de uma possibilidade. Ocorre que há um dispositivo constitucional, o artigo 213, que faculta essa possibilidade, reiterada na LDB. Por sua vez, o PNE é uma lei ordinária. Então o dispositivo está valendo. Será preciso regulamentar essa franquia, com as devidas condicionalidades, e, por outro lado, ampliar a face pública do Estado tanto na oferta da educação profissional quanto no ensino superior. O único programa que entendo fora deste cômputo, dentro do parâmetro legal, é o Fies. Trata-se de um contrato entre o indivíduo e um banco. E embora o banco possa ser estatal, o Fies depende de uma ação voluntária do sujeito em contratar tal financiamento.
O PNE não explicita qual deve ser o incremento financeiro que cabe à União e aos entes subnacionais para chegar aos 10% do PIB. Como então a sociedade poderá cobrar o cumprimento dessa meta?
Esse talvez seja o mais difícil dispositivo na forma de sua montagem e operação. Para tanto será preciso aprovar uma lei complementar, como previsto no parágrafo único do art. 23 da Constituição. Sem a aprovação desta lei complementar, o caminho será complicado e o Sistema Nacional de Educação não fechará. Para mim, é o artigo-chave dos recursos referidos ao PIB e o que possibilitaria a criação de um fundo de caráter nacional que, mediante uma radiografia minuciosa, seja redistribuído de forma a reduzir as disparidades regionais.
Qual seria a diferença entre esse fundo e o Fundeb?
O atual Fundeb é constituído por 27 fundos estaduais, sendo que em alguns estados há com-plementação da União. Um Fundo Nacional a ser dirigido pela União e assessorado por mesa interfederativa permitirá a redução de disparidades hoje existentes, seja nas transferências obrigatórias, seja nas voluntárias. Ou seja, um fundo nacional pode ser mais justo por ser equitativo.
Qual sua avaliação sobre a inclusão de metas para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa)?
Não acho que indicadores de avaliações nacionais ou internacionais devam compor o Plano. Uma lei tem um sentido permanente e estas avaliações são mutáveis. Esses indicadores são termômetros de uma situação. Logo evidenciam coisas que não vão bem, mas tomá-los como referência principal pode ocultar outras coisas importantes. Certamente que tais avaliações hão de continuar. Mas elas devem cooperar com o Plano, porém de maneira auxiliar.
Não estão previstas medidas contra os gestores que descumprirem as metas. Isso coloca o PNE em risco?
Hoje já temos medidas suficientes previstas em vários dispositivos, é preciso aplicá-las. A meu ver, seria importante uma espécie de código que reunisse em um só lugar todos os dispositivos. Um ponto, geralmente esquecido, apesar de constante em lei, é a obrigatoriedade de ouvidorias para que o cidadão tenha um canal direto com os gestores. A reunião de tais normas em uma Lei de Responsabilidade Educacional poderá se explicitar, clarificar e até aperfeiçoar as mesmas normas.