Ensino nas prisões

Ensino nas prisões

As prisões brasileiras estão longe de oferecer um ambiente reeducativo. Superlotadas – o próprio Infopen, sistema de informações penitenciárias do Ministério da Justiça, admite que o número de detentos ultrapassa em cerca de 200 mil o total de vagas oferecidas nas penitenciárias estaduais e federais – e regidas pela égide da repressão, juristas e defensores públicos concordam que, hoje, a absoluta prioridade das unidades prisionais é a segurança pública, e não a recuperação dos detentos. Levar educação às prisões do País representa um desafio às secretarias de Educação, de Administração Penitenciária, a pedagogos e professores Brasil afora. E a demanda cresce desde a Resolução nº 3, de março de 2009, do Ministério da Justiça, que estabelece as diretrizes nacionais para a oferta de educação nas prisões. Com essa resolução, os estados perderam a liberdade para estabelecer suas próprias políticas educacionais para detentos, apesar de continuarem responsáveis por sua implementação. Além disso, desde 2011 é permitida por lei a remissão da pena pelo estudo, na mesma proporção que a remissão por trabalho (três dias de atividade, ou 12 horas de aula, anulam um dia de pena). Antes considerada um benefício, a remissão por estudo passa, com a resolução de 2011, a configurar um direito.

A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) desde 2011, faz um trabalho em conjunto com a Secretaria de Administração Prisional do Estado para implementar salas de aula nas unidades prisionais estaduais paulistas. Exemplificando o caráter estadual da oferta de ensino à população privada da liberdade, em São Paulo o governo optou por transferir à SEE a administração das unidades escolares prisionais. Pela resolução de 2009, o modelo de educação ofertado deve seguir parâmetros da educação de jovens e adultos (EJA) e dos ensinos profissionalizante e superior. A mesma resolução permite que os estados recebam verbas diretamente do Ministério da Educação para esse fim, fato que gerou ampla conformação dos governos estaduais em relação às diretrizes federais naquele momento.

Direito universal inalienável

Andrea dos Santos Oliveira, que faz parte da equipe da SEE, admite que a oferta de vagas ainda é bem menor que a demanda e muitas dessas vagas acabam sendo preenchidas arbitrariamente. “Uma de nossas principais dificuldades tem sido convencer a Secretaria de Administração Penitenciária de que a educação é um direito, e não um benefício”, confessa. Em São Paulo, as unidades de ensino prisionais contam hoje com 14.055 alunos matriculados, 69% deles no ensino fundamental. Não é um número muito expressivo se considerarmos que a população carcerária do estado chega a 100 mil detentos. Se pensarmos no percentual de penitenciárias estaduais atendidas hoje pela SEE – 154 de um total de 158 – fica fácil entender uma das principais queixas de professores e diretores pedagógicos dessas unidades: a falta de espaço adequado ao desenvolvimento das atividades de ensino. “Muitas dessas escolas são puxadinhos”, afirma Mariângela Graciano, que realizou um estudo em unidades prisionais femininas da região Oeste de São Paulo em parceria com a ONG Ação Educativa e a Pastoral Carcerária. O diagnóstico é conhecido de todos: falta espaço nas prisões brasileiras. O coordenador do Núcleo Especializado em Situação Carcerária, da Defensoria Pública do Estado, Patrick Lemos Cacicedo, afirma: “O espaço físico não existe ou é insuficiente, pois a prisão nunca foi pensada para garantir direitos, mas sim para violar. As bibliotecas são sempre improvisadas e dependem de doação, e há também dificuldade de acesso, [por parte dos professores, às dependências escolares dentro das prisões]”.

O direito universal à educação é princípio internacional e faz parte da Constituição brasileira de 1988. No entanto, de uma população carcerária nacional que ultrapassa 500 mil detentos, apenas 10,7%, ou seja, pouco mais de 50 mil, estão inscritos em alguma atividade educacional, segundo dados mais recentes (2012) do Infopen. Cerca de 23% realizam alguma atividade laboral, ou seja, mais da metade de todos os detentos brasileiros não está inscrita em atividade produtiva alguma. O fato é grave, pois 71% dos presos têm até 35 anos de idade, ou seja, são jovens e estão no auge de sua produtividade. Outro agravante: cerca de 40% da população carcerária é composta por presos provisórios, ou seja, não tem condenação definitiva.

Em Santa Catarina, por exemplo, dos 16.311 presos do estado (os números são de dezembro de 2012, o levantamento mais recente publicado pelo Infopen), 8.195 não concluíram o ensino fundamental e outros 697 declaram-se analfabetos; apenas 1.014 estão envolvidos em alguma atividade educacional. No Paraná, onde a população carcerária soma 31.312 pessoas, 753 são analfabetos declarados e 11.738 têm ensino fundamental incompleto; apenas 4.782 realizam alguma atividade educacional. Vale lembrar que a Constituição garante a todo cidadão, independentemente de origem étnica, condição socioeconômica ou situação legal, o direito a nove anos de estudo.

Roberto da Silva, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), afirma, em entrevista à Profissão Mestre, que foi a partir da Constituição de 1988 que se começou a aplicar melhor o conceito de direito relativo à educação, pois foi só então que a lei passou a enxergar parcelas mais vulneráveis da sociedade, como índios, afrodescendentes e crianças, o que abre caminho para o reconhecimento dos direitos da população carcerária. Ele segue contestando aqueles que argumentam que grande parte da população brasileira ainda não tem acesso à educação: “A universalização do ensino é fato, a qualidade é questionável”. De fato, a esmagadora maioria da população carcerária já teve ao menos alguma inicialização escolar, bem como a população em geral. Vale a pena reconhecer que essa conquista é fruto de 25 anos de luta pela democracia.

Diretrizes pedagógicas em debate

É lei e direito de quem está preso, mas que tipo de educação se quer oferecer a essa parcela da população e quais as expectativas que ela gera? Quais diretrizes pedagógicas são as mais adequadas? O governo federal determina que seja oferecida aos presos brasileiros uma educação nos modelos da EJA, além do ensino profissionalizante. Em alguns estados, como em São Paulo, o governo oferece também o ensino médio – 31% de todos os atendidos nas penitenciárias paulistas cursam essa etapa de ensino. O pesquisador Roberto da Silva sugere que se busque “a articulação entre os objetivos da recuperação penal e da educação e a erradicação do analfabetismo no sistema carcerário”. A também pesquisadora Mariângela Graciano, com base em seu estudo sobre a população carcerária feminina na Grande São Paulo, lembra também que, “na prisão, é impossível desvincular educação e trabalho”. Isso porque sua pesquisa mostra que é o trabalho o principal fator estimulante e, ao mesmo tempo, a principal razão apontada para a desistência dos estudos.

O professor Roberto da Silva, que é doutor em Educação e ex-detento, critica o modelo adotado pelo governo federal, da EJA, focado no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos, aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do MEC. “Não é tarefa da educação melhorar nossos péssimos índices penitenciários nem esvaziar as prisões ou converter os presos ou mesmo reduzir a reincidência. A educação tem um mote, que é qualificar essas pessoas para que, em liberdade, elas tenham as mesmas con­dições, dadas as oportunidades sociais, em comparação com as pessoas livres. O que as pesso­as farão desse ganho educacional parte do livre arbítrio de cada um”, avalia.

Sob essa perspectiva, vale a pena pensar em uma pedagogia que concilie educação e trabalho, aproveitando as oportunidades ofertadas pelo próprio ambiente prisional. E elas existem. A prisão é um microcosmo que precisa dos mais variados serviços para funcionar – por ela circulam profissionais como eletricista, cozinheiro, encanador etc. Muitos desses serviços são, hoje, terceirizados, o que fecha oportunidades para os presos. Poderiam funcionar como oficinas, na opinião de Silva. Ou seja, abre-se a oportunidade de formular um currículo aproveitando os ofícios, em que se desvelem os fundamentos científicos de soluções simples ligadas à hidráulica, elétrica, culinária etc. Uma sistematização, de acordo com as exigências escolares, dos saberes que os presos já têm.

Duas personagens interessantes do presídio, lembra o pesquisador, são o monitor educacional e o agente de saúde, que são presos que auxiliam os professores e a administração carcerária, respectivamente. “Essas pessoas podem ser treinadas para tornarem-se, em liberdade, monitor educacional e agente do Sistema Único de Saúde, que são profissões”, afirma o pesquisador.

Quanto à alfabetização, ele opina: “Não é o caso de se inventar novas abordagens pedagógicas na prisão. Mas, seguindo o modelo freudiano de alfabetização, parte-se dos saberes que o sujeito já constituiu ao longo da vida. São jovens e adultos que têm uma experiência longa de vida. Essas pessoas sabem das coisas, elas têm saberes acumulados. O que não sabem é sistematizar esses saberes de modo que seu conhecimento possa ser reconhecido pelo sistema regular de ensino. Essa parece uma abordagem adequada para o processo de alfabetização. Não esse “b-a-bá”, codificação de decodificação. Isso é resultado de um processo. A alfabetização dos presos não é uma alfabetização gramatical, e sim uma alfabetização social”.

Equilíbrio de forças

Mariângela Graciano conta como, no presídio feminino do Butantã, bairro da zona Oeste da cidade de São Paulo, a oferta de alguns cursos profissionalizantes às presas desestabilizou as relações entre elas e as carcereiras. “Observamos muita condenação, por parte das agentes penitenciárias em relação às presas, desde o início. Então, quando ofertamos um curso de estética facial, as agentes ficaram com muita vontade de fazer, mas as vagas eram limitadas às presas. A partir daí, a condenação moral se intensificou”, afirma.

Roberto da Silva lembra que, se levado a sério, o direito à educação sobrepõe-se a qualquer outro direito cerceado dentro da prisão. Os policiais não poderão destruir o material escolar dos alunos, não se poderá impedir o professor de entrar na prisão ou nas salas de aula. Por motivo disciplinar ou de castigo, o preso não será impedido de estudar. Se a prisão não puder oferecer ao preso as condições de estudo, será necessário criar alternativas. Todas essas limitações impactam positivamente a execução penal. Isso porque o ato de educar é, por definição, uma ação doadora de liberdade, um princípio de autonomia. A prisão, por outro lado, é a sentença da sociedade de que determinados indivíduos não são merecedores de sua autonomia. “Provavelmente, não se quer dentro das prisões a reprodução do modelo [educacional] que existe fora. Escolas de ensino médio que parecem prisões. O que se quer é o inverso, que prisões pareçam escolas. Nessas escolas, sobretudo as de ensino médio, os códigos do mundo do crime já estão instalados. O objetivo, agora, é trilhar o caminho inverso, fazendo com que dentro das prisões o ambiente se assemelhe ao de uma escola e, nele, adote-se a disciplina escolar. Então, de alguma forma, a educação enquanto política pública dentro da prisão vai impactar e modificar a execução penal”, acredita Silva.

 

Matéria publicada na edição de abril de 2014.

http://www.profissaomestre.com.br/index.php/reportagens/ensino/814-ensino-nas-prisoes




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