Cada geração tem a Copa que a define
Cada geração tem a Copa que a define
Há algo de bonito em ser um país que usa as Copas para recordar de si mesmo.
Perceba: não há uma conversa sobre o Mundial em que nossas memórias não sejam convocadas. Parece um caminho que facilmente nos explica, balizando o tempo em meio a nossas histórias e ainda define nossas gerações, como as guerras definem as gerações americanas e os golpes, as tailandesas. Pelas Copas, sabemos o que ouvíamos, o que sorríamos, o que chorávamos, com mais facilidade e precisão do que, por exemplo, pelos Carnavais.
Eu? Eu sou da geração que viu o mundo encaretar antes de ter idade para aloprar. Fechei os anos 80 com 11 anos, na zona oeste do Rio. Não cheirei na Hippopotamus, não tive blazer com ombreiras, perdi a virgindade com camisinha – algo impensável para os meus tios.
Quando virei adolescente – 12 anos em 1990 -, meu mundo tinha medo da Aids, da hiperinflação, dos excessos de cores e de 4-3-3 com um único cabeça de área. Era um ensaio do pós-Apocalipse: ganhávamos pouco, tudo perdia valor rapidamente, só nos restava abrir mão do prazer em nome da sobrevivência.
Camisinha. Compras do mês. Dois volantes. Três zagueiros. A Copa de 1990, de lazarônica lembrança, foi a epítome futebolística de um mundo que morria de medo de gozar.
A Itália registrou a pior média de gols dos Mundiais – 2,21 por partida – num festival de empates surdos selado por uma final controversa e a sensação de que talvez o futebol trouxesse ansiedades demais. O zen-budismo surgia como possibilidade de remédio contra essas angústias.
Acabaríamos, por caminhos tortos, chegando ao Nirvana no ano seguinte, e o Nirvana acabaria em 1994. Todo niilismo tem fim, e não vestiríamos flanela no verão americano. A economia ensaiava uma reação, e Parreira parecia um economista da PUC-Rio no comando de medidas impopulares: Dunga e Mauro Silva, com vistas a Bebeto e… Müller. Não, isso foi até 1993, quando Romário voltou à camiseta canarinho nos brados do povo. Mesmo assim, até as mulheres reclamavam, já que os shortinhos tinham se encompridado em bermudas de surfista.
Em múltiplos sentidos, 1994 foi o ano que marcou minha geração. Aos 16 anos, eu continuava virgem, mas já era campeão do mundo e a latinha de coca era R$ 1. Trocávamos Senna por Romário, e muito embora zero a zero e pênaltis fossem um final meio mais ou menos, ser tetra era um barato, e nossas adolescências estavam salvas.
Se me dissessem que, vinte anos depois, a Copa seria num Brasil de tanto prazer represado, de medos renovados e ranço, eu jamais acreditaria. Carregamos esta Copa como um fardo, envergonhados por não sermos o que nunca fomos.
Por outro lado, vimos um país no divã, desconstruindo a si mesmo, em busca de seu verdadeiro eu, evitando ao máximo o transe do futebol como se fosse não apenas um vício, mas uma crendice que deveríamos abandonar em nome do desenvolvimento, do próximo passo, da quebra de padrão.
O melhor legado desta Copa 2014 foi reunir tanta gente em torno de um debate de país. Talvez esta Copa tenha sido fundamental para o alvorecer de uma nação diferente, catalisando almas, frustrações e sonhos, mais do que obras, mais do que investimentos.
Só ficou chato quando começamos a negar a nós mesmos, minimalizando nossa vocação de festa. Como se, depois da encaretada da culpa sexual, fosse a vez da encaretada da utopia, enquadrando o prazer e revistando a consciência nacional.
Fechados para balanço, entendemos que o futebol muito nos deu como nação e orgulho, mas muito nos tira também. Que não é direito básico nem religião, embora nos inspire e nos una em torno de algo que se sente ao longo de 8 milhões e meio de quilômetros quadrados. Que é um dos fios que seguram essa trama, como a língua portuguesa e a herança cristã que também respiramos sem ver. Que nos situa no tempo e ainda nos define cada geração, melhor do que qualquer guerra, revolução ou golpe.
E daí que você não vê muitas ruas pintadas de verde e amarelo, se todas as conversas e olhares já estão enfeitados com lembranças e fervor? Vamos reconhecer nosso habitat, sim, nos olhos dos turistas, dos jornalistas, dos jogadores e das crianças, que se explicarão a partir de nós, daqui a 20 anos – ou apenas cinco Copas.
http://globoesporte.globo.com/platb/marvio-dos-anjos/2014/06/11/cada-geracao-tem-a-copa-que-a-define/