Um ano depois dos protestos

Um ano depois dos protestos

Que novas consequências o Brasil pode esperar um ano depois dos protestos

Especialistas ouvidos pelo PrOA tecem um prognóstico dos novos rumos das manifestações

 Que novas consequências o Brasil pode esperar um ano depois dos protestos Ricardo Duarte/Agencia RBS

Manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus municipais em Porto Alegre, em junho de 2013 Foto: Ricardo Duarte / Agencia RBS

Em uma das cenas de Junho: O Mês que Abalou o Brasil, documentário de João Wainer que estreou nesta semana nas salas de cinema e está disponível para mais de 80 países pelo iTunes, o poeta Sérgio Vaz, idealizador da Cooperifa. arrisca uma definição para os desdobramentos das manifestações que sacudiram o país há um ano.

– A gente estava muito perto... Acho que o Brasil é o país da ejaculação precoce. Foi lá, atirou uma... Ah, isso que é revolução? Então vou embora, já deu – compara Vaz, que é fundador da Cooperativa Cultural da Periferia em São Paulo.

A análise é uma das tentativas de entender por que a multidão que tomava as ruas – primeiro contra o reajuste das passagens de ônibus, depois contra a violência policial e por fim em uma insatisfação generalizada com os rumos do país – se dissipou quando parecia capaz de conquistar mais do que a redução das tarifas. Afinal, como diziam, os manifestantes não estavam ali só por 20 centavos. Mas onde o protesto deveria chegar? Que marcas ficaram daquele junho? Conduzido com imagens da época entrecortadas com uma série de entrevistas, o documentário, produzido pela TV Folha e distribuído pela O2 filmes, não tem a pretensão de apresentar conclusões.

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– Em junho de 2013 aconteceu algo novo no país, que a gente só vai entender depois deste junho, da Copa, da eleição. Num momento a gente percebeu que a melhor maneira era contar a história sem emitir juízo. Não dá para explicar o que aconteceu, o mérito do filme é descrever. A manifestação se fragmentou depois que conseguiram baixar a tarifa, mas seu eco continua. Parece que o eco de 2013 ainda está rondando. E vai continuar por muito tempo – avalia Wainer.

Se nem tudo mudou depois de junho passado, a percepção é de que nada será como antes. Em vez de falar em recuo das manifestações, a maioria dos pesquisadores entrevistados pelo PrOA acredita que o movimento ganhou uma nova forma, agora difusa e compartimentada. Mas nem por isso enfraquecida. Pelo contrário, como sinalizariam as resistências encarnadas pela tag #naovaitercopa às vésperas do início do Mundial, os protestos de sem-teto em São Paulo, as greves que se alastram pelo país, os indígenas empunhando arco e flecha em Brasília.

Um dos legados das manifestações seria a recuperação da capacidade de indignação da sociedade brasileira, aponta o sociólogo Luis Werneck Vianna, professor da PUCRio e autor de livros como A Modernização sem o Moderno - Análises de Conjuntura na Era Lula (Contraponto, 2011).

– Antes havia um comodismo entediante. A sociedade estava parada, passiva. Por uma série de razões, ainda não totalmente compreendidas, a sociedade se mexeu. A violência que imperou depois afastou a classe média dos protestos, mas a sociedade não parou de apresentar demandas. As ruas deixaram o recado para os políticos, com o slogan “Vocês não nos representam”. O que se pede é mais democracia – analisa Werneck Vianna.

O aumento desse inconformismo foi detectado em pesquisa divulgada terça-feira pelo instituto norte-americano Pew Research Center. Enquanto, semanas antes da eclosão das manifestações do ano passado, o índice de brasileiros descontentes com “as coisas” no país era de 55%, o levantamento realizado em abril deste ano mostra que o percentual de insatisfação subiu para 72%. E isso impacta diretamente a percepção sobre a Copa: dos entrevistados, 61% declararam que a Copa é “ruim”, porque “tira recursos de serviços públicos”, enquanto 34% a consideram positiva, porque “cria empregos”. Em seu relatório, o instituto destaca que o “humor nacional no Brasil é sombrio, depois de um ano em que milhões de pessoas foram para as ruas das maiores cidades para protestar contra a corrupção, o aumento da inflação e a falta de investimentos em educação, saúde e transporte público, entre outras coisas”.

Para o sociólogo francês Michel Maffesoli, que esteve em Porto Alegre nesta semana para participar de conferência da Secretaria Estadual da Educação, as manifestações podem ser comparadas a um “Maio de 68 pós-moderno”, e representam uma “grande mudança política”.

– Em maio de 68, havia esse caráter global de mudar a sociedade. Um grande programa político pensado de forma global. E agora não, se trata de uma série de pequenas explosões emocionais, que devem acontecer cada vez mais. E isso não é um problema. Antes se pensava que, para ter um projeto político, tinha de ser duradouro, para o futuro. Agora, se dá mais vazão a bricolagens, se abandona um ideal de perfeição por mais ações no cotidiano, com foco no presente – diz Maffesoli.

Um dos canais de disseminação dessa explosão são as redes sociais, aumentando a capacidade de articulação à margem das instituições. Fabio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo, observa que as bandeiras virtuais se tornaram mais concretas com o tempo. Embora tenha sido percebida queda no uso da hashtag #vemprarua nas redes depois do ápice dos protestos de junho, não seria porque a rua teria se tornado desmotivante, e sim porque se começou a dar vazão a outras causas, como o #cadeoamarildo e as lutas regionais. 

– Junho abriu uma mentalidade política nova, com uma sociedade civil mais independente e menos atrelada a partidos. Muitos trabalhadores saíram do armário. E isso é um ganho democrático, porque impõe uma nova relação entre o Estado e a sociedade. As redes permitem que se pressione diretamente alguém que diz que “o que foi roubado já foi”, que se vá diretamente ao sujeito que tem o poder. Isso permite que silêncios sejam quebrados, que se tenha um diálogo mais franco – observa Malini.

Um dos símbolos das novas formas de comunicação que ganharam as ruas com as manifestações, a Mídia Ninja se prepara para lançar, nesta segunda-feira, seu site: www.ninja.com. E se fará presente nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo, acompanhada de 30 jornalistas da América Latina. A equipe, que nos protestos de 2013 era composta por “30 a 40 pessoas”, agora tem suas fileiras multiplicadas por 10: são “300 a 400 colaboradores”, sendo cerca de 50 pessoas mais próximas ao núcleo, contabiliza um de seus líderes, Pablo Capilé.

– Junho não foi o início e também não é o fim. É um acúmulo de muita coisa, de movimentos que lutaram por 20 anos. Agora esse acúmulo se distribuiu em pautas específicas, não dá para para esperar que todos os manifestantes de todos os movimentos vão estar convergindo o tempo todo em uma pauta única. Mas a consciência mudou, se tornou mais forte. Estamos vivendo um processo de radicalização da democracia. A gente não é contra partidos, mas eles precisam se ressignificar. Junho serviu para despertar o espírito de manifestação, e o pós-junho é maior do que o pré-junho. Isso é o que importa – diz Capilé.

Enquanto os discursos sobre a importância histórica de junho de 2013 se consolidam, a  indeterminação ainda é a principal marca deste início de junho de 2014, quando o mundo volta os olhos para a estreia da Copa, os ativistas prometem recrudescer suas ações e os governos reforçam o aparato de segurança, temendo uma onda de violência em volta dos estádios. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Oxford, na Inglaterra, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado teme uma guinada repressiva.

– Estamos vivendo um momento de polarização entre direita e esquerda como poucas vezes vivemos na história. Eu não gosto disso, porque isso vem com paixão, raiva e cegueira. O lado positivo é a capacidade do povo de se mobilizar. O negativo é o contra-ataque. Tenho medo desse momento reacionário e conservador do país. E falo literalmente: crimes de racismo se multiplicando na internet, linchamentos, ódio aos grupos populares. Não se pode nem dizer que isso seria a direita. A direita liberal clássica defende como prioridade a garantia dos direitos civis. O que vemos no Brasil é uma massa com tendências fascistas, raivosas. Não há como saber se esse é um momento de limbo que precede a Copa – alerta.

Planejado para ser a grande vitrine do Brasil, o Mundial que estreia nesta quinta-feira se transformou em um campo imprevisto de batalha social e política. Um ano depois, o enigma das ruas ainda não foi desvendado.

Zero Hora




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