Oportunidade de aprender

Oportunidade de aprender

Educadora critica hipocrisia da escola que, no discurso, valoriza o erro e, na prática pedagógica do dia a dia, o recrimina e lhe atribui valor negativo, em vez de usá-lo como estratégia educativa.

Vera Rita da Costa

Oportunidade de aprender

Muitas vezes sem querer, contribuímos para que a visão socialmente instituída de que ‘errar é vergonhoso’ se perpetue e inibimos iniciativas que poderiam levar à mudança

São  várias as mensagens em nossa cultura que visam amenizar o erro. Diante de situações que o envolvem, seja de nossa parte ou de outro, é comum ouvir-se, por exemplo, que “errar é humano” ou, ainda, que “ninguém nasce sabendo”. Mas será que de fato somos tolerantes ao erro? Com 'tolerantes' quero dizer se, ao buscarmos lidar com uma situação que envolve o erro, estaríamos realmente reconhecendo o seu valor intrínseco ou praticando apenas uma convenção social.

Essa questão-chave tem perturbado meu sono há algum tempo, pois tenho ouvido com frequência entre colegas professores a afirmação de que é preciso “valorizar os erros dos alunos”. Na prática, no entanto, o que observo é totalmente diferente: o que predomina, ainda, é a punição ou, usando uma expressão mais amena, a atribuição de valor ao que o aluno produz com base em uma escala que envolve apenas os conceitos de certo ou errado (e, em alguns casos mais raros, o ‘meio certo’).

Parece que o enfoque dado ao erro em nossa vida diária, sobretudo na escola, é mais uma hipocrisia do discurso – algo que se diz ser feito, mas na prática não acontece

Agrava ainda mais essa situação o processo de avaliação usado. Aquele que deveria ser um processo amplo e global, considerando também o processo de elaboração do conhecimento, reduz-se em geral a avaliar a produção final, ou seja, apenas o resultado do que é realizado (o quê) em detrimento do processo (como). E, isso, em termos de tudo ou nada, de certo ou errado.

Em outras palavras, parece-me que o enfoque dado ao erro em nossa vida diária, sobretudo na escola, é mais uma hipocrisia do discurso – algo que se diz ser feito, mas na prática não acontece. Não me parece que, sobretudo na prática pedagógica cotidiana, já estejamos dando ao erro o merecido valor que ele tem, aceitando-o e ‘partindo’ dele para melhor elaborar conhecimentos (ou, ultrapassando os muros da escola, para melhorar as nossas relações com os demais em nossa vida cotidiana, por exemplo).

É ruim, feio, pecado

Ao contrário, a impressão que tenho é que, apesar de todo o conhecimento existente sobre por que cometemos erros (o que deveria redundar em uma real valorização do erro como estratégia pedagógica), ainda predomina entre nós a velha ideia de que errar é ruim, é feio, é, decididamente, um pecado. Errar ainda é visto como desviar-se do certo. Mas o que é o certo, nesse caso, senão o padrão estabelecido e que se quer mudar?

Em consequência, também nosso sistema de avaliação (baseado apenas nos resultados finais e em verificar erros e acertos) encontra-se limitado, oferecendo uma visão bem restrita do que é, de fato, a aprendizagem. O valor do aluno (e de sua aprendizagem) encontra-se reduzido, assim, à verificação de sua correspondência ou não ao que está previamente definido. E o que está previamente estabelecido, nesse caso, é aquilo a que nos acostumamos na educação tradicional. Ou seja, apenas a aquisição e reprodução automatizada de informação, sem que se considerem as outras dimensões também importantes da aprendizagem, como vimos discutindo aqui em outras oportunidades.

Alvo
Como estamos lidando com os erros? Eles estão sendo considerados fracassos ou oportunidades?

Aprender/ensinar com os erros está, portanto, totalmente fora das propostas tradicionais de ensino, baseadas exclusivamente na transmissão, aquisição e verificação da aprendizagem de fatos, informações e conceitos. Encontra-se apenas em propostas que realmente se dispõem a realizar um trabalho cujo foco esteja também no processo de aprendizagem em si (não apenas em seu produto final) e em desenvolver e valorizar habilidades e atitudes, entre as quais, por exemplo, habilidades cognitivas que permitam identificar o erro, e valores, como a persistência, que ajudem a lidar com ele.

Revolução ampla e estrutural

Essa perspectiva, no entanto, embora já esteja presente em ‘teoria’ em nosso meio, ainda está engatinhando na prática. Por quê? Porque demanda, além de desejo e vontade, ações mais concretas, não só da parte dos professores, mas de gestores e mantenedores. Demanda, sobretudo, vontade e ação política, pois a cada dia é mais evidente que a escola se encontra em crise e precisa passar por uma revolução ampla, estrutural, além de filosófica.

Nossos índices de evasão escolar e ‘fracasso’ em testes de avaliação, como recentemente divulgado aqui,  são um grito de alerta à sociedade em relação à ‘revolução’ necessária. Mas, para quem está em sala de aula, esse grito nem seria necessário, uma vez que se convive diariamente com a falta de interesse e a perda de motivação, sobretudo, por parte dos alunos e professores nas séries mais adiantadas.

Nossos índices de evasão escolar e ‘fracasso’ em testes de avaliação são um grito de alerta à sociedade em relação à ‘revolução’ necessária

Em busca de respostas para minhas indagações sobre o ‘valor do erro’, tenho em mãos dois interessantes e agradáveis livros que tratam dessa questão do ponto de vista das neurociências, da psicologia cognitiva e da biologia evolutiva, cuja leitura seria muito interessante para professores, no sentido de ampliar essa discussão.

O primeiro, Por que cometemos erros?(Editora Globo, 2010), de Joseph T. Hallinan, faz uma revisão dos conhecimentos científicos disponíveis que já nos permitem arriscar (com a possibilidade de errar, é claro) uma resposta para a pergunta que dá título à publicação. 

Com base em resultados de pesquisa, Hallinan argumenta que há mecanismos do próprio funcionamento do cérebro (e justificáveis evolutivamente) que permitem que erremos. São exemplos: olhamos, sem ver; buscamos diligentemente significados; reconhecemos preferencialmente padrões; filtramos automaticamente informações; memorizamos apenas o que nos interessa; estimamos possibilidades; superestimamos nossas capacidades; concluímos apressadamente e somos excessivamente autoconfiantes.

Apesar dessas características humanas aparentemente negativas, o autor não reluta em afirmar que somos também capazes de aprender com os erros e passar a evitá-los, e conclui seu livro com dicas de como fazê-lo. Podemos ser “cegados pelos efeitos do hábito e da arrogância” e ter uma “compreensão pobre de nossas próprias limitações”, diz Hallinan, mas é preciso levar em conta que temos também a capacidade de tomar consciência disso, aprender com os erros e, com determinação, mudarmos.

O segundo livro, Sem medo de errar – as vantagens de se estar enganado (Editora Zahar, 2012), de Alina Tugend, é ainda mais interessante para quem se encontra na educação. Traz um panorama das pesquisas que mostram como o erro é visto em diferentes culturas, ambientes, situações e por diferentes pessoas. Mas o destaque do livro de Tugend para quem é educador encontra-se, principalmente, na discussão que se apresenta no segundo capítulo, ‘Começa cedo’, no qual a autora relata pesquisas que demonstram como a educação (em casa, na escola e na sociedade, de forma geral) influencia o modo como lidamos (e aprendemos ou não) com os erros.

Envergonhado com saco na cabeça
Estamos ensinando nossas crianças e jovens a realmente aprender e evitar os erros ou a não assumi-los e ‘varrê-los para debaixo do tapete’, já que são considerados vergonhosos?

Como discute Tugend, os erros, em si, não comportam nenhum juízo de valor, ou seja, não são positivos ou negativos por natureza. Os juízos de valor são atribuídos socialmente. E, nesse caso, nossa família, nossa escola e nossa cultura influenciam diretamente o modo como os erros são encarados. Cabe então, como argumenta a autora, perguntar: como estamos lidando com os erros? Eles estão sendo considerados fracassos ou oportunidades? Estamos ensinando nossas crianças e jovens a realmente aprender e evitar os erros ou a não assumi-los e ‘varrê-los para debaixo do tapete’, já que são considerados vergonhosos?

Ao não se reconhecer e explorar, de fato, a capacidade humana de errar e de aprender com os erros, estamos desperdiçando enorme fonte e potencial de aprendizagem

Diante dessas questões e da leitura desses livros, como educadora, fortalece-se em mim a impressão de que, ao não se reconhecer e explorar, de fato, a capacidade humana de errar e de aprender com os erros, estamos desperdiçando enorme fonte e potencial de aprendizagem e, mais que isso, de mudança de concepções culturais.

Em teoria, sabemos que é preciso ‘trabalhar e valorizar os erros’, atribuindo a eles uma conotação diferente. Na prática, no entanto, somos tragados pela ‘roda viva’, deixando de fazê-lo efetivamente. Sem necessariamente querer, contribuímos, assim, para que a visão socialmente instituída de que ‘errar é vergonhoso’ se perpetue e inibimos iniciativas que poderiam levar à mudança.

Da mesma forma que, tradicionalmente, temos aprendido e ensinado na escola que ‘errar é fracassar’, é nela também que deveríamos estar ensinando/aprendendo que não há nada de vergonhoso em errar, desde que se reconheça o erro e se aprenda com ele. O erro, na escola, é oportunidade, e o fato de estarmos errando até mesmo na forma como lidamos com ele é um alerta significativo que não podemos desprezar.

Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP

http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=18429




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