O caráter da cultura escolar
José Sérgio Fonseca de Carvalho - Revista Educação - 24/04/2014 - São Paulo, SP
A cada final de ano letivo o rito se repetia. Reuníamo-nos com diários de classe, provas finais, anotações e todo bom humor que nos restava àquela altura do ano para o conselho de classe, a única ocasião em que os professores deliberavam coletivamente sobre o destino escolar de seus alunos. Havia Cida, que chorava pela aprovação de todos. Mas havia Igor, terrível professor de química que teria reprovado metade da classe se pudesse. Havia a sensatez de Marcelo, a nos lembrar que André já era quase um jogador de futebol profissional e fazia pouco sentido reprová-lo pelas suas dificuldades em trigonometria. E Adriana, que sabia quantos exercícios André deixara de fazer ao longo do ano, o percentual de suas presenças nas últimas aulas de sexta-feira, suas médias, desvio-padrão... Mas não lembrava exatamente quem era esse tal de André!
Era nos conselhos de classe que a diversidade de visões sobre o sentido da experiência escolar emergia com clareza entre nós. Era neles, e não nas enfadonhas reuniões pedagógicas, que traçávamos as linhas que nos uniam em torno a um projeto comum, a despeito das diferenças pessoais. Nessas ocasiões sentíamos, ainda que fôssemos incapazes de verbalizá-lo, que uma boa escola é muito mais do que uma mera reunião de indivíduos supostamente competentes no ensino de cada uma de suas disciplinas. Nesse sentido, uma escola se assemelha a um bom time de futebol: basta um ou outro craque e um sólido espírito de equipe.
Na escola, como no futebol, a excelência é um atributo do conjunto e não um resultado do simples somatório de qualidades e talentos individuais. Há atributos de um conjunto que não são redutíveis às suas partes constitutivas. Ser ‘infinito’, por exemplo, é uma propriedade do conjunto de números naturais que não está presente em nenhum de seus elementos individualmente considerados. Instituições sociais, como a escola, têm atributos que derivam de sua história; têm virtudes e defeitos que se alimentam do tipo de relações sociais que nela se travam. Essas marcas institucionais forjam uma cultura e um modo de funcionamento cuja força e permanência ultrapassam os indivíduos que a formam em um dado momento. Por isso uma escola pode manter sua excelência apesar do fluxo incessante de novos profissionais. Ou decair a despeito de sua permanência.
Tudo isso parece soar bastante trivial. E talvez o seja. Mas tende a ser solenemente esquecido em quase todas as formulações de políticas públicas de formação de professores e melhoria da qualidade da educação. Se concebe a formação de um professor como decorrente da posse de certas ‘competências’, técnicas e informações. Tudo se passa como se a relação entre professor e aluno não fosse mediada por uma instituição com histórias, valores, princípios e práticas. Como se não fosse produto de uma cultura que carece ser estudada e reconhecida. Não para ‘técnicas’ infalíveis, mas porque a partir da compreensão de sua cultura institucional podemos nela agir, renovando suas práticas em diálogo com o legado do qual somos herdeiros.
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