Ensino religioso em escolas públicas

Ensino religioso em escolas públicas

Liberdade de credo e ensino religioso em escolas públicas

Por Aldo de Campos Costa

O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental não se afigura inconstitucional, desde que seja disciplina de matrícula facultativa (Prova objetiva do concurso público para provimento de vagas e formação de cadastro de reserva no cargo de analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Pará).

Nos termos do artigo 210, parágrafo 1º, da Constituição da República, o ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. O artigo 33, cabeça, da Lei 9.394/1996, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional, a seu turno, dispõe que o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

O preceito infraconstitucional, contudo, vem sendo interpretado e aplicado pelo Poder Público como se fosse compatível tanto com o ensino religioso confessional, de natureza clerical, ministrado por representante da comunidade religiosa e que tem por objetivo a promoção de um ou mais credos[1], quanto com o ensino religioso interconfessional, ministrado por representante da comunidade religiosa ou por professor sem filiação religiosa declarada, com o objetivo de promover valores e práticas em um consenso sobreposto em torno de algumas religiões hegemônicas à sociedade brasileira[2].

Essa compreensão foi reforçada com a sobrevinda, ao ordenamento jurídico interno, do artigo 11, parágrafo 1º, do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, promulgado, entre nós, pelo Decreto 7.107/2010. Segundo o dispositivo, o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.

Visando dar interpretação conforme à Constituição da República aos artigos 33, cabeça e parágrafos 1º e 2º da Lei 9.394/1996 e 11, parágrafo 1º, da Concordata, para assentar que o ensino religioso em escolas só pode ser de natureza não confessional, proibindo-se, assim, a admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas ou, sucessivamente, declarar a inconstitucionalidade da expressão católico e de outras confissões religiosas contida naquele último preceito, a Procuradoria-Geral da República submeteu a questão ao crivo do Supremo Tribunal Federal.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439 a autora alega que, de acordo com uma interpretação sistemática da Constituição Federal, o Poder Público só poderia fornecer ensino não-confessional das disciplinas religiosas, sendo-lhe vedada tanto a adoção do ensino religioso confessional, como a adoção do ensino religioso pluriconfessional, isso porque a laicidade do Estado brasileiro, contemplada pelo artigo 19, inciso I, do texto constitucional imporia o dever de neutralidade estatal em relação às distintas opções religiosas presentes na sociedade, de modo a vedar o favorecimento ou embaraço de qualquer crença ou grupo de crenças.

Ao manifestar-se, a Advocacia-Geral da União, adotou visão diametralmente oposta. Sustentou que o constituinte originário, na redação conferida ao parágrafo 1º do artigo 210 da Constituição Federal, deixou claro que o ensino religioso a ser ministrado nas escolas públicas não tem cunho aconfessional, pois, se possuísse essa natureza, não haveria razão para que fosse atribuído ao dispositivo em questão caráter facultativo, o que estaria a demonstrar, de um lado, a neutralidade do Estado brasileiro e a constituir, de outro, mais um instrumento por meio do qual a Carta Maior se valeu para preservar a esfera religiosa e, consequentemente, a liberdade de crença.

Argumentou, ainda, que o parágrafo 1º do artigo 11 do Acordo apenas reforça determinados valores já previstos na Constituição da República e na Lei de Diretrizes e Bases, quais sejam, a diversidade cultural e religiosa do Brasil e a vedação à discriminação. Justificou a menção ao termo “católico”, constante do referido dispositivo, por se tratar de acordo firmado, exclusivamente, entre o Brasil e a Santa Sé, a qual somente representa a Igreja Católica. Segundo a óptica, a norma não contrariaria o princípio da laicidade, porque prevê, de modo expresso, que o ensino religioso tem como princípio indissociável o respeito à diversidade cultural e religiosa brasileira, não excluindo o ministério de outras confissões religiosas.

Demonstrou a dimensão conferida pela diploma de 1988 à esfera religiosa, apontando como exemplos:

a) a invoção à proteção de Deus no preâmbulo;

b) a autorização da “escusa de consciência” ao brasileiro que se recuse, por motivos de crença, a cumprir obrigação a todos imposta (artigo 5º, VIII), somente estabelecendo a perda dos direitos políticos aos que não aceitem cumprir obrigação alternativa;

c) a admissão, como exceção ao princípio da separação entre Igreja e Estado (artigo 19, I), a “colaboração de interesse público”,

d) a disposição de que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental (artigo 210, parágrafo 1º); e) a instituição de imunidade tributária para os impostos incidentes sobre os templos religiosos e, finalmente,

f) a atribuição de efeito civil ao casamento religioso.

Embora o Supremo ainda não tenha se debruçado sobre a matéria, do exame da jurisprudência internacional é possível alcançar o entendimento de que o Estado, no exercício de sua função no domínio da instrução, deve cuidar para que as informações ou os conhecimentos sejam difundidos de maneira objetiva, crítica e pluralista.

Foi o que, a propósito, restou decidido no caso Hartikainen v. Finlândia (Comunicação 40/1978, de 9 abril de 1981, U.N. Doc. CCPR/C/OP/1, par. 10.4), a envolver situação em que o Comitê de Direitos Humanos, no exercício da atribuição que lhe foi conferida pelo artigo 1º do Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, concluiu não ser por si só incompatível com o artigo 18(4) do Pacto obrigar estudantes cujos pais professavam o ateísmo a assistir aulas de história das religiões, desde que estas “fossem apresentadas de forma neutra e objetiva”, respeitando “as convicções dos pais e tutores que não acreditam em nenhuma religião”. Também merece destaque o caso Folgerø e outros v. Noruega (Queixa 15.472/2002), no qual o Tribunal Europeu de Direitos do Homem entendeu que a assistência obrigatória a uma discipina confessional e pluralista na rede pública de ensino viola o artigo 2(1) do Protocolo Adicional à Convenção, segundo o qual o Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, deve respeitar o direito dos pais a assegurá-los consoante as suas convicções religiosas e filosóficas.

No sistema interamericano, a Corte de Direitos Humanos reafirmou, nos casos Masacres de Río Negro v. Guatemala (Sentença de 4 de setembro de 2012, Série C, 250, parágrafo 154) e "A Última Tentação de Cristo" (Olmedo Bustos e outros) v. Chile (Sentença de 5 de fevereiro de 2001, Série C, 73, parágrafo 79) que o artigo 12(4) do Pacto de San José da Costa Rica garante aos pais e, sendo o caso, aos tutores, o direito a que filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

No Brasil, essa visão foi adotada pelo Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Contagem (MG) ao determinar à prefeitura a implementação, no prazo de 90 dias, de matrícula facultativa na disciplina Ensino Religioso em todas as escolas da rede pública do município, mediante a opção formal e expressa dos representantes legais dos alunos, a ser preenchida na unidade escolar em que cada aluno estudava. Ordenou-se, ainda, na sentença, que deveriam ser incluídas na programação curricular das escolas atividades regulares alternativas, nos mesmos turnos e horários, para os alunos que não optassem pela disciplina Ensino Religioso. O pronunciamento veio a ser confirmado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Processo 1.0079.11.013677-1/001). Eis o resumo do julgado: ”A omissão da autoridade municipal em operacionalizar a facultatividade da matrícula na disciplina Ensino Religioso viola o direito líquido e certo do estudante à liberdade de crença. Inteligência do art. 5º, VI c/c art. 210, parágrafo 1º, da CF/88”.


[1] Cf. DINIZ, Débora, CARRIÃO, Vanessa. Ensino religioso nas escolas publicas. In: DINIZ, Débora, LIONÇO, Tatiana, CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: Brasilia: UNESCO, Editora Letras Livres e Editora UnB, 2010, pp. 45-46. As autoras apontam ainda a existência do ensino sobre a história das religiões, de natureza secular, ministrado por professor de socioloiga, filosofia ou história e que preconiza a religião como um fenômeno sociológico das culturas.

[2] Idem, ibidem.

Aldo de Campos Costa exerce o cargo de assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2014

http://www.conjur.com.br/2014-abr-24/toda-prova-liberdade-credo-ensino-religioso-escolas-publicas

 




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