Cutting e os jovens brasileiros
Cutting, um drama que fere jovens brasilienses
Professores de escolas públicas detectam, entre os alunos, grupos que têm o hábito de praticar a automutilação, inclusive compartilhando lâminas. Não há estudos sobre o tema no Brasil, mas pesquisas mundo afora indicam que o distúrbio atinge 20% dos rapazes e das moças
Cicatrizes sobrepostas. Feridas totalmente fechadas e outras em carne viva. Abertas, dia após dia, com qualquer objeto capaz de rasgar a pele. Quem se corta tem dificuldade em explicar as razões e, ainda mais, para abandonar o hábito que, segundo os relatos nas redes sociais, se torna um vício. Isso é o cutting, um termo em inglês que significa "corte" ou, em tradução livre, automutilação. No Brasil, ainda não há estudos sobre o tema, mas o distúrbio atinge um em cada cinco jovens, segundo pesquisas divulgadas nos Estados Unidos, no Japão e na Europa.
Em apenas dois meses de aula, professores de escolas públicas da região Norte do Distrito Federal detectaram, entre os alunos, grupos que fazem a automutilação. A descoberta deixou os profissionais da educação e os pais aterrorizados. Ao perceber os cortes nos braços da filha Ema*, de apenas 13 anos, Gabriela*, 33, chegou a pensar que a primogênita era vítima de violência. "Perguntei quem tinha feito aquilo com ela, se alguém a estava ameaçando, chantageando, se algum colega ou adulto a estava perseguindo. Quando ela disse que ela mesmo tinha feito aquilo por raiva sem dizer de quem ou do que, fiquei em pânico", relata (veja Depoimento).
Diante das respostas evasivas da filha, Gabriela diz ter sido invadida por um sentimento de decepção, revolta e tristeza. Imediatamente, procurou a escola em que a menina estuda para tentar entender o que estava acontecendo. Lá, descobriu que pelo mais 10 adolescentes tinham o mesmo comportamento. A direção acionou o Conselho Tutelar, a Subsecretaria de Proteção às Vítimas de Violência (Pró-Vítima), o Ministério Público e a Polícia Militar. Convocou os pais de todos os estudantes envolvidos e percebeu, espantada, que alguns familiares reagiram como se isso fosse algo natural. "Da mesma forma que não podemos supervalorizar, não podemos achar que isso é uma coisa normal", defende o diretor do colégio, Fábio*.
Doenças
O receio do diretor é de que a prática se dissemine em redes sociais, criando uma histeria coletiva e um problema de saúde pública. "Na minha avaliação, é um fenômeno social da adolescência e, como tantos outros, vai passar. Mas, além do fato em si ser grave, há outros fatores. Eles estão compartilhando lâminas. E, com isso, expondo-se a várias doenças, como a hepatite e a Aids", lamenta Fábio.
Na tentativa de desvendar as razões de os jovens se automutilarem, a equipe pedagógica os chamou para conversar. Todas as falas, segundo a direção da escola, estão associadas a problemas de relacionamento familiar. "Eles dizem que se cortam para aliviar as dores emocionais. Qualquer coisa que aconteça em casa é motivo para eles se cortarem. Mas o que percebemos é que, em alguns casos, a família é bem estruturada e os pais, presentes. Então, há outros fatores que precisam ser investigados e tratados", defende o diretor.
Na escola dele, os adolescentes que praticam o cutting são preservados ao máximo. As atividades extracurriculares foram reforçadas para todos os alunos e há um esforço maior para que esse grupo se envolva mais. Além de lições com ciclistas profissionais, a instituição oferece cursos de boxe, escolinha de futebol e está prestes a fechar uma parceria que vai permitir aos estudantes participarem de um curso de escotismo naval.
Expulsão
Em outra escola da região Norte do DF, localizada em área rural, a reação dos docentes com a prática de cutting envolvendo sete alunas, de 12 a 14 anos, também foi de espanto. A descoberta ocorreu há dois meses, por meio de professores que são amigos das estudantes em redes sociais. "Elas postavam fotos dos braços e das pernas feridos, sangrando. Ficamos horrorizados e não sabíamos o que as levava a fazer isso. Depois de conversar com elas, acionamos o Conselho Tutelar e os pais", resume a diretora, Patrícia*.
Dos sete envolvidos, dois pais mostraram-se surpresos com a atitude das filhas. Os demais demonstraram preocupação, mas não buscaram ajuda médica para as meninas, segundo Patrícia. E a família da jovem apontada como a primeira a se cortar não deu atenção ao fato. "Essa adolescente relatou que era espancada pelo pai e ignorada pela mãe. Aqui, notamos uma relação de agressividade entre as duas. Imaginamos que, em casa, é ainda pior", relata Patrícia.
De acordo com ela, os pais de duas garotas pediram a transferência delas para outras escolas. E três chegaram a ser expulsas do colégio por problemas disciplinares e porque insistiram na automutilação. "Tomamos a decisão de expulsá-las no dia em que um servidor encontrou uma lâmina no banheiro. Nós as chamamos na direção e percebemos que elas continuavam a se cortar, inclusive dentro da escola", lembra Célia*, orientadora da instituição.
A decisão de expulsar as meninas foi reconsiderada e duas retornaram à escola. Mas a adolescente apontada como a principal praticante da automutilação não quis voltar. "Era uma menina quieta. Frequentemente a flagrávamos matando aula. Mas ficava dentro da escola, debaixo da árvore, isolada. Ela relata que fez o primeiro corte depois que o pai deu-lhe uma surra no meio da rua. Depois, nunca mais parou", conta Célia. Parte das garotas que aderiram ao cutting o faziam como uma espécie de solidariedade ou para tentar impedir a amiga de se cortar. "Elas diziam: "olha, fulana, se você se cortar novamente, eu também vou me cortar". Aí, ela chegava ferida e as outras cumpriam a promessa", relata Célia. A diretora da instituição vai atuar em conjunto com o Ministério Público para evitar novos episódios.
*Nomes fictícios
Três perguntas para
Gilda Paoliello, psiquiatra-psicanalista e diretora da Associação Mineira de Psiquiatria, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria
O que leva uma pessoa a se cortar repetidas vezes? Há relatos que isso se torna um vício e quem pratica tem dificuldade em parar. É isso mesmo?
A automutilação é uma tentativa de aplacar uma angústia muito profunda, a qual a pessoa não consegue expressar ou aliviar em palavras. Assim, o que ela não consegue exprimir simbolicamente expõe sobre o corpo. Muitas vezes, os pacientes dizem, literalmente, que cortam o corpo para aliviar as feridas da alma. A prática leva a uma perda progressiva do controle sobre o próprio comportamento. O paciente descreve uma urgência ou um "estado de fissura", como uma tensão e uma excitação crescentes, antes da ação. Após o ato, há uma sensação de prazer e, mais tarde, culpa e vergonha. Há implícita neste ato uma demanda de amor.
O que os pais e a escola devem fazer?
Não devem nunca colocar essa pessoa em posição de julgamento ou punição e nem de vítima. Devem procurar ouvir a sua demanda, lembrando que a demanda é sempre de amor. Mas é impossível agirem sem uma ajuda profissional, então, a orientação do psiquiatra é fundamental.
Alguns dos jovens dizem se cortar porque "são roqueiros, góticos, ou para aliviar a dor da alma". Segundo diretores, alguns ouvem bandas de rock depressivo e usam roupas pretas. Outros, não. Há um perfil entre os praticantes de cutting?
No século 19, o Romantismo surgiu em contraposição ao Iluminismo e ao Racionalismo do século anterior. As heroínas do Romantismo eram sempre trágicas e acabavam se suicidando. Isso gerou uma onda melancólica, onde os mais frágeis chegavam a tentativas de suicídio. Atualmente, os góticos costumam se reunir em cemitérios para lerem poemas trágicos, relembrando o Romantismo, e os mais frágeis se cortam, chegando a consequências graves. Temos que diferenciar o que é uma tendência cultural e o que é uma doença. Podemos dizer que alguns jovens aderem a esses contextos por modismos, outros, que trazem uma estrutura frágil, por identificação mortífera. O gosto musical é consequência e não causa.
Depoimento
Desespero
"Descobrimos que ela se cortava este ano. O pai foi o primeiro a perceber os ferimentos. Fiquei muito assustada. Ela disse que, "do nada", ficava gritando em sala de aula e batia com a cabeça na carteira. Aí, os colegas passaram a chamá-la de psicopata e louca. E ela passou a se sentir excluída e rejeitada. Então, passou a se cortar. Mesmo antes disso, já estava rebelde. Conversei muito com minha filha. Expliquei que isso podia levá-la para uma coisa muito séria. Consegui atendimento psicológico. Ela prometeu que não faria novamente, mas sinto que essa coisa está voltando. Ela tem mentido muito para nós. Me sinto perdida, sem saber o que fazer. Quando chamo a atenção, ela me olha com aquela cara de desentendida. É dissimulada. Até parece que tem duas personalidades. Até na igreja, eu já levei. O padre disse que é caso para médico. Às vezes, fico triste, choro muito. Eu sei que vou conseguir vencer isso. Mas está muito difícil."
Gabriela, 33 anos, mãe de uma menina de 13 que pratica cutting
http://cliente.linearclipping.com.br/mec/site/m012/noticia.asp?cd_noticia=10641488
Reflexo de uma dor emocional
Segundo especialistas, o cutting é, em geral, uma forma de aplacar uma angústia profunda que a pessoa não consegue exprimir. No entanto, há casos de modismo. Subsecretaria de Proteção às Vítimas de Violência começou a atuar em parceria com pais e escolas
"Meu primeiro corte foi em uma época difícil da minha vida pessoal: fui abandonado pela minha mãe assim que eu nasci e, até hoje, não sei quem é meu pai. Moro com meus avós, que são, definitivamente, "os anjos" da minha vida. Eu era bem "gordinho", careca e, além de tudo, por ser "adotado", sempre surgiam comentários maldosos na escola. Ou seja, sofria certo bullying. Quando eu tive a capacidade de me ferir, eu me encontrava sozinho, com depressão, aos 15 anos. Não saía de casa, me julgava uma pessoa "sem amigos", e, por medo de pedir ajuda, eu deixava aquela depressão tomar conta das emoções."
O depoimento de Maikon, hoje com 17 anos, narra o início do pesadelo enfrentado durante um ano e meio: a automutilação. Desde o começo de 2013, o adolescente deixou de se ferir, mas a luta é diária para não ter recaídas. "Você nunca sabe como será o dia de amanhã. Trata-se de força de vontade. Uma recaída pode tirar meses de luta, mas entregar-se à depressão e não voltar à batalha pode tirar a vida", declara.
Assim como tantas outras pessoas que enfrentaram ou enfrentam o problema, Maikon não conseguia falar com os avós sobre seus medos e suas angústias. "É bem complicado você entender a mente de um automutilador. Às vezes, por você encontrar-se tão deprimido e sozinho, simplesmente quer tirar a dor psicológica e sentir apenas a dor física. Naquele momento, eu sentia um alívio, depois, sempre batia um leve arrependimento e o medo de ser subjugado e incompreendido pela única forma que encontrava para amenizar minhas emoções", relata. Raramente, as feridas do adolescente ficavam expostas. Ele tinha o hábito de usar blusas de mangas compridas para esconder os braços ou passava "pó de arroz" para encobrir as marcas.
Psiquiatra do Ambulatório de Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq HC/USP), Jackeline Giusti explica que autolesão é um distúrbio com diferentes causas. Antes de ser colocada em prática, a pessoa nutriu sentimentos de angústia, tristeza, vazio e raiva de si mesmo, assim como Maikon. Quem faz relata que a dor física não é nada perto da dor emocional que sente. É comum entre crianças e adolescentes, mas também ocorre na idade adulta. E, quanto mais cedo o problema é diagnosticado e tratado, mais rápida é a melhora.
Duas décadas
Somente após ouvir uma conversa da reportagem com a diretora de uma escola da área rural do DF, o servidor público José*, 37 anos, descobriu o nome da patologia que tanto sofrimento causou à família dele. Em agosto de 2012, José perdeu um irmão que cultivou o hábito de se cortar por duas décadas. "Ele também era alcoólatra e, que eu saiba, usou merla, maconha e cocaína. Começou a se ferir com vinte e poucos anos. Quando não conseguia uma lâmina de barbear ou qualquer objeto cortante, ele se mordia. Chegamos a amarrá-lo à cama com lençóis para que ele não se machucasse", relembra.
O irmão de José morreu aos 40 anos, vítima de infecção generalizada após não cuidar de uma fratura no pé. Sobre os ferimentos que ele provocava, dizia para a família que sentia raiva da vida. "Tivemos uma família muito desestruturada. Meus pais se separam cedo e isso o afetou demais. Uma vez, corri com ele para o hospital e o médico disse que, se demorasse mais dois minutos, ele teria morrido de tanto sangue que perdeu. Foi um grande sofrimento. A gente não conseguia impedi-lo de fazer aquilo", lamenta.
Se, em alguns casos, o autoflagelo é um pedido claro de amor e atenção, em outros, é um modismo, segundo a psiquiatra Jackeline Giusti. "Assim como tem a droga da moda e tantos outros comportamentos, a autolesão também está na moda. Tem essa história de o jovem querer experimentar", diz. A falta de informação sobre onde pedir ajuda agrava ainda mais o problema. "Se o adolescente não tem noção que há tratamento para as dificuldades que sente, vai encontrando seus próprios caminhos. A automutilação vira um "analgésico"", diz.
Enfrentamento
Os casos descobertos em escolas do Distrito Federal são vistos de forma tão preocupante que, mesmo não fazendo parte do protocolo de atendimento da Subsecretaria de Proteção às Vítimas de Violência (Pró-Vítima), a equipe decidiu atuar em parceria com as escolas e com os pais. O desafio inicial é alertar a família e os educadores sobre o problema, ajudando-os a identificar os casos e, principalmente, orientar sobre como deve ser a abordagem ao adolescente.
A primeira reunião com pais e professores ocorreu na escola urbana da região Norte do DF, na última quinta-feira, com a participação de psicólogos, advogados da Pró-Vítima e do Ministério Público, além de integrantes do Conselho Tutelar. "A palestra é apenas o primeiro passo, uma abordagem inicial para partirmos para a ação. Essa é uma situação muito grave que precisa ser enfrentada de forma multidisciplinar: família, escola, secretarias de Educação e de Saúde", alerta a subsecretária da Pró-Vítima, Valéria de Velasco.
O segundo passo da Pró-Vítima será a oferta de uma oficina para os jovens envolvidos na prática do cutting. "Ainda estamos elaborando essa oficina. Mas a meta é minimizar o sofrimento deles, criar vínculo para ver se eles conseguem expor as razões que os levam a isso. A partir do depoimento deles, podemos encontrar respostas que ajudem outros jovens", explica a psicóloga da Pró-Vítima, Renata Delgado. "Esse é só o começo. Precisamos identificar outros adolescentes. Com certeza, isso ocorre em outras escolas e ainda não temos conhecimento. Precisamos tirar esses jovens dessa situação. Alguma coisa está fora do lugar com eles", completa Valéria de Velasco. A reportagem procurou a Secretaria de Educação para falar sobre o tema, mas não obteve retorno.
*Nomes fictícios
"A palestra é apenas o primeiro passo, uma abordagem inicial para partirmos para a ação. Essa é uma situação muito grave que precisa ser enfrentada de forma multidisciplinar: família, escola, secretarias de Educação e de Saúde"
subsecretária da Pró-Vítima
"Assim como tem a droga da moda e tantos outros comportamentos, a autolesão também está na moda. Tem essa história de o jovem querer experimentar"
Jackeline Giusti, psiquiatra do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo
>> entrevista Maikon*
Como foi a reação dos seus avós e amigos quando souberam que você se automutilava?
Meus avós eram cientes de que tinham um neto com problemas de automutilação, mas as cicatrizes só viram agora. Já os meus amigos vinham com as palavras de sempre: "isso não vai te ajudar em nada", "isso não resolverá nenhum problema". Porém, devido à depressão, eu não ligava muito para tais conselhos.
Quando se deu conta de que a solução para suas angústias não estava no cutting?
Assim que comecei um tratamento (com psicólogo) e arrumei amigos. Mas descobri mesmo a solução para a automutilação ocupando minha mente, ajudando as pessoas. Antes do projeto (Como Ser Forte, um blog de autoajuda), mesmo com meus problemas pessoais, sempre ajudava os outros dando conselho. Já fiquei até as 4h na internet conversando com várias pessoas que se encontravam na mesma situação que a minha, e isso já ocupava muito minha cabeça.
A quem você recorreu para sair dessa situação?
Eu simplesmente recorri a mim mesmo, ocupando minha mente e ajudando outras pessoas. Assim, surgiu o Como Ser Forte. Vi o documentário Stay Strong, da cantora Demi Lovato, em que ela relatava problemas com distúrbios alimentares e automutilação. Aquele documentário me inspirou muito.
Quantas pessoas fazem parte desse grupo? Todos praticaram ou praticam cutting?
Na equipe, inicialmente, éramos 10 membros. Hoje, somos 20. Apenas duas pessoas já praticaram o cutting.
Você divulga na página o Projeto Borboleta, um método para quem quer parar de se ferir. Como é isso?
Existem várias formas do Projeto Borboleta. No Como Ser Forte, temos algumas regras principais: o praticante desenhará uma borboleta que representará uma pessoa especial. Após isso, ele terá que trabalhar o lado psicológico e cuidar daquela borboleta. A figura será renovada sempre que começar a desaparecer. Enquanto ela estiver lá, ele não pode se cortar ou estará matando aquela pessoa que é especial para ele.
No DF, alguns alunos relataram que se cortam porque são roqueiros, góticos ou porque fazem parte de seitas. O que você acha disso?
Você nunca sabe verdadeiramente o motivo. Muitos estão confundido um assunto sério e se deixando levar para ganhar certa atenção. Sendo roqueiros, góticos, participantes ou não de seitas, penso eu que nenhum ser humano, em um ótimo estado mental, teria coragem de cortar o pulso sem nenhum motivo. Todos os praticantes do cutting têm um motivo, seja ele pessoal, seja psicológico.
Correio Braziliense