A insuficiência de recursos financeiros e humanos
A insuficiência de recursos financeiros e humanos na escola: um retrato do filme iraniano “O Jarro”
JANI ALVES DA SILVA MOREIRA*
Ao focar este diálogo no debate acerca da dialética entre o filme versus a realidade apresentada no filme, considero que essa realidade pode também ser entendida como ampla, de espectro macro social. Envolve uma série de questões, dentre elas: sociais, culturais, econômicas, políticas, antropológicas, emocionais-afetivas, entre outras.
Nessa complexidade macro-social, ou ainda na expressão “teia social” denominada por Norbert Elias[1], o todo incorpora princípios que não podem ser delineados pelo exame das partes isoladamente. Assim, vejo o filme como vejo e ouço uma música (todo). Da mesma forma que a melodia da música representa uma estrutura que vai além da soma das notas individuais, há uma relação, entre estrutura e notas. Ao mesmo tempo, entre o som e a palavra há um abismo. Há uma trama complexa de relações, como já anunciou Brandão[2].
[...] as relações entre o todo e a parte no mundo social representam um permanente desafio à inteligência pois, frequentemente, a mudança de um plano ao outro não é meramente uma mudança de grandeza ou de um ponto de vista mas, de substância ou qualidade (2000, p. 01).
Podemos interpretar o todo, o coletivo, o macro-social, mas ainda permanecerão alguns abismos a serem compreendidos, o individual, o micro-social. Eis que surgem nessa trama o grande desafio, o que eu chamo de uma tensão epistemológica, que requer um movimento teórico e definições acerca do método de análise. Assim como Brandão, eu também me pergunto: “Qual o melhor observatório do mundo social: a perspectiva próxima e de “dentro” ou a perspectiva panorâmica, do alto e de “fora da cena”?”
Penso ser importante definir que meu recorte de reflexão (pensamentos…) acerca do filme “O Jarro”[3] está: na formação e papel do professor e da escola diante dos embates evidenciados pela falta de recursos financeiros e humanos. Não me aprofundo nas questões macro-sociais do contexto histórico-social-econômico e político do Irã apresentado na década de 1960/70, já que a narrativa se passa nos anos de 1967. Apenas pondero questões gerais e as relaciono com algumas questões também presentes no nosso tempo. Faço algumas analogias, comparações e enxergo algumas metáforas…
Considero que o cinema, enquanto narrativa fílmica, permite o reconhecimento da realidade ao se mostrar como uma impressão da realidade (METZ, 1972)[4], embora construído como exercício ficcional, ajuda a ver e escutar a nossa própria realidade mesmo quando nos apresenta um contexto particular e distanciado do nosso. Abre-se como uma janela em que os espectadores observam atentos para o desenrolar que se apresenta à frente, como algo revelador e como lugar de projeção – por identificação e/ou por oposição.
Dito isto, talvez eu possa afirmar que o meu encaminhamento aqui é estabelecer uma analogia, ou seja, uma inferência que parte de um contexto particular que o filme apresenta para outra particularidade: a nossa política educacional, nossa educação, nossos dilemas e problemas.
Assim sendo, o recurso desta narrativa, pode ser utilizado como uma análise, de reconstrução e reconhecimento dos nossos próprios meandros do trabalho pedagógico educacional, da ação docente e como encantamento com esse fazer que se torna história e memória (também é uma vivência afetiva) e que pode ser compartilhado com diferentes públicos, tanto específicos como leigos em geral.
O filme iraniano apresenta um jarro como protagonista principal da narrativa. Em torno dele, encontra-se o professor como mediador da aprendizagem e dos conflitos. O papel do professor parece expandir-se diante de tantas impossibilidades e soluções causadas prioritariamente pela falta de recursos financeiros e humanos.
Observa-se um quadro de extrema pobreza no filme, agravada pela geografia local, onde a paisagem desértica implica em escassez de água potável. Assim saliento questões referentes à falta de recursos financeiros e humanos na escola. Um simples ovo de galinha, na comunidade retratada, figura como artigo requintado que só pode ser usufruído por poucos.
No filme iraniano o diretor expõe as mazelas de uma região afastada do centro populoso do Irã. A ausência de recursos financeiros na escola gera toda a dificuldade para uma gestão eficiente da prática pedagógica. Mediante o contexto de extrema necessidade, reporto-me a numa questão central e difícil de conceituar: a qualidade da e na educação.
Até mesmo no Brasil, quando falamos de Qualidade da Educação falta-nos uma conceituação na própria legislação educacional. Temos a definição dos indicadores de qualidade: ambiente educativo, prática pedagógica, avaliação, gestão escolar democrática, formação e condições de trabalho dos profissionais da escola, ambiente físico escolar[5]; porém não temos a almejada qualidade nesses indicadores em toda a parte do país.
Basicamente, entendemos que uma educação de qualidade deve apresentar professores competentes e bem remunerados, estrutura educacional adequada (espaço e condições físicas estruturais), bons materiais pedagógicos, equipe de profissionais bem formados e competentes, alunos com aprendizagem efetiva, que gere bons resultados. Hoje temos índices para avaliar a aprendizagem e desenvolvimento. Comparações entre escolas e países por meio de uma política de ranqueamento.
No filme, evidenciou-se a total ausência e carência de recursos (financeiros e humanos) para o desenvolvimento da aprendizagem. Todavia, permanece a presença da imagem de um professor dedicado em resolver seus conflitos, desejoso de realizar o seu trabalho. Executa seus planos de aula a partir das necessidades que surgem. Um exemplo disso é retratado na cena em que o professor solicita que os alunos tragam ovos no dia seguinte, e reforça seu pedido prometendo um bônus na nota em artes para os ovos que fossem apresentados com desenhos feitos pelos alunos.
O que me parece é o predomínio de um pensamento naturalizado acerca do papel do professor. Mesmo diante da ausência de recursos, a narrativa ressalta que um professor competente, dedicado e esforçado poderá salvar o caos instituído na escola e alcançar resultados educacionais satisfatórios, bem como, ensinar uma moral e bons costumes ideais para uma sociedade.
Sobre este aspecto saliento a importância de se pensar nas estratégias ou modos de ação por meio do planejamento escolar. O filme denota um planejamento flexível que está aliado à solução dos conflitos e problemas. A participação dos alunos no decorrer do processo de resolução do dilema escolar específico de “O Jarro”, sem dúvida, está carregada de significado pedagógico. Pode ser vista quase como uma metáfora do engajamento do professor na tarefa de ajudar o educando a despertar para o seu próprio papel na construção da vida e superação de limitações. O professor diante dos dilemas desenvolve meios para que os alunos e seus familiares participem da situação. Utilizará de estratégias para provocar o interesse e engajamento.
Quantos professores agem desse modo? Diante de tantos dilemas e insuficiências de recursos, o que nos mantém na carreira profissional docente? Utopia? Me parece que temos uma necessidade posta: a busca pela nossa realização diante de tanta ausência de valorização da profissão, de incentivos, de recursos financeiros… Fica presente algumas questões sem respostas: Aonde está a realização da profissão docente? O que nos faz persistir na carreira?
Me parece que os professores estão à procura do seu valor, de quem realmente são no processo educativo. Diante de tanta ausência de sentidos e valores, caminhamos para um processo de busca de novas significações para a profissão docente. No filme, sinto o professor também “perdido”, em busca de si nas suas improvisações, solitário, marginalizado…
No desenrolar da história, dos conflitos e condições de carências que o filme retrata, o professor exerce um papel centralizador. A única ponte possível para a superação e a mudança da realidade dos indivíduos daquela comunidade. Vale ressaltar que o professor não é o único a contribuir na aprendizagem significativa dos seus alunos.
Em algumas cenas observamos que o professor foi acusado pelos familiares dos alunos de estar se aproveitando do cargo para tirar vantagem pessoal – no caso, comer as gemas dos ovos cujas claras destinavam-se ao conserto do jarro. Em outra cena retratada ocorre o boato de que o professor estaria se aproveitando da boa vontade de uma das mães dos alunos, que decidiu angariar fundos para a compra de um jarro novo.
De forma muito marcante, o desenvolvimento da narrativa deixa evidente que as intenções do professor são as mais honradas. Primeiro ele reparte a geleia que recebeu de presente de sua mãe com seu colega de quarto, e, depois, ele prepara uma omelete com as gemas, repartindo-a entre os alunos. Finalmente, ao acabar-se a omelete, ele reparte o que restou de sua geleia entre as crianças que haviam ficado sem sua parte, permanecendo ele próprio sem comer nada. É impossível assistir a essa sequência de cenas sem meditar sobre o fato de que a tarefa do professor é repartir com seus alunos muito mais do que conhecimento; é oferecer um pouco de si mesmo, de sua vida, é doar-se pelo ato educativo. Outra cena muito representativa dessa ideia é a que o professor cuida da criança que caiu no córrego. Nesse momento, a figura do professor no filme chega a associar-se à figura de um pai.
Vale salientar que o contexto denota a precarização do trabalho do professor. Entendo por precarização o processo de precariedade, falta de condições adequadas para a realização do trabalho do professor. São as distintas formas de rebaixamento salarial, degradação das condições de trabalho e a ausência ou retirada dos direitos trabalhistas. No filme a precarização oriunda da carência geral, na estrutura local, geográfica, a falta de recursos estruturais, financeiros e humanos. A sala é multiseriada, faltam professores.
O que torna uma profissão precarizada?
Vale destacar aqui as afirmações de Ricardo Antunes (1995)[6] que nos lembra que, apesar da presença marcante do trabalho precário no capitalismo, a precariedade se “metamorfoseou”, pois passou a ter um lugar estratégico na lógica de dominação capitalista. Deixou de ser algo periférico ou residual, para se institucionalizar em todo o mundo. A precarização, assim, deve ser entendida como algo inserido em um contexto liberalizante que busca, dentre outras coisas, transferir responsabilidades, antes do empregador, ao trabalhador.
No filme, as condições de trabalho precarizado do professor desencadeiam toda a resolução de conflito. A ausência de recursos, o descaso do Estado são determinantes para impedir o transcorrer da dinâmica pedagógica. Produz problemas que delinearão toda a ação docente, na busca por solucionar a falta do jarro e conectado ao conflito estão as relações humanas. Estas também são conflituosas para o professor e acabam por ser desafiantes na sua prática educativa. Abre o leque de ações e atitudes que o professor estabelecerá junto às famílias com intuito de também educar e ser um agente social naquele lugar. Sua função parece ultrapassar o ato educativo na sala de aula. Há uma metamorfose do seu papel: Pai, gestor, bombeiro, enfermeiro, merendeiro, etc.
Diante das observações evidenciadas, saliento que os problemas retratados na aldeia do deserto de Irã demonstra a ausência de políticas públicas para a educação. Descaso total do Estado, num país com riqueza petrolífera imensa, mas que não promove condições nem para substituir um jarro quebrado e, é claro, pagar o salário do professor de forma condigna e em dia.
Saliento ainda a contradição entre a solidariedade humana versus ausência de políticas públicas como prioridade. A única possibilidade imediata para a solução do problema foi buscar ajuda junto à comunidade, as famílias. Ao solicitar os ovos, cal e cinzas, o professor se depara com outros conflitos junto às famílias. A não participação, a desconfiança, o descrédito atribuído, os boatos. Essa situação instiga o professor e o faz permanecer firme no seu objetivo. Com isso, deixará lições humanitárias para seus alunos de que os conflitos gerados não passam de inverdades.
Tal situação nos faz pensar nos mecanismos atuais de parceria, solidariedade, atuação do terceiro setor, de empresas, como formas convidativas. Por meio de políticas focalizadas e de equidade promoverão formas de ajudas temporárias em escolas brasileiras. Políticas de espetáculo que movem a ajuda de milhares de pessoas. Mecanismos estes, também originários da ausência de recursos públicos adequados para uma educação de qualidade e condigna no Brasil.
Ficha Técnica
Título original: Kromreh
Título em português: O Jarro
Direção: Ebrahim Forouzesh
País: Irã
Ano: 1992
Duração: 98 min.
Download: http://www.cineconhecimento.com/2012/08/o-jarro/
* JANI ALVES DA SILVA MOREIRA é docente do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP/UEM) e Doutora em Educação (UEM).
[1] ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1992
[2] BRANDÃO, Zaia. Para além das ortodoxias: a dialética micro/macro na sociologia da educação. 2000.Disponível em <http://www.anped.org.br/reunioes/23/textos/te14.PDF>
[3] Filme do cineasta iraniano Ebrahim Foruzesh. O filme foi premiado com o Leopardo de Ouro do Festival de Cinema de Locarno (Suíça), em 1994, e com o prêmio do júri da 18ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
[4] METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
[5]Uma proposta de custo-aluno-qualidade na educação básica. José Marcelino de Rezende Pinto. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação. V. 22, n. 02, 2006.
[6] ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
http://espacoacademico.wordpress.com/2014/04/16/a-insuficiencia-de-recursos-financeiros-e-humanos-na-escola-um-retrato-do-filme-iraniano-o-jarro/?preview=true&preview_id=2977&preview_nonce=0af170de2c&post_format=standard