O sistema educacional não funciona mais
Pesquisador titular da Sorbonne, na França, Michel Maffesoli se debruça sobre as controversas questões da pós-modernidade com visível apaixonamento. Seus estudos e livros sobre tribalização, sociedade e educação fazem dele uma referência nos temas que circundam os novos tempos – com especial olhar para a juventude. Mas não se engane: ainda que a gravata borboleta e as meias coloridas deem ao sociólogo uma aparência amistosa, há muito de provocador e polêmico no que diz. Ele também é encantado com o Brasil, que diz ser o laboratório da pós-modernidade, onde se pode observar as nuanças de um mundo em transformação.
Maffesoli recebeu ZH no café da biblioteca da Unisinos, em São Leopoldo, onde falou, na última terça-feira.
Um ano depois da eclosão das manifestações no Brasil, assistimos a um esfriamento dos protestos nas ruas. Como o senhor analisa o fenômeno da participação popular nesses eventos?
Não acho que as pessoas participam para mudar o mundo. Me parece que elas estão juntas para estarem juntas. Eu falo especificamente das manifestações. Não são mais preocupações políticas, uma busca de uma sociedade perfeita, mas essa ideia de tribo, de estar junto em busca de algo. Na ação política, há uma motivação racional, mas o estar junto tem uma motivação emocional. É uma dicotomia entre racional e emocional.
O senhor acredita que essas ações perderam a força política?
Há uma diferença fundamental entre a ação política, com uma finalidade, e a explosão, como vimos, que é momentânea. Por um momento, há a marcha e seus efeitos. Isso tem uma finalidade, é pontual e tem consequências. Mas há uma diferença entre as mobilizações que tínhamos antes e as de hoje. Na pós-modernidade, elas são muito intensas e diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, são muito efêmeras.
Aqui no Brasil se comentou muito a questão do vandalismo nas manifestações. Na sua opinião, qual é o sentido dessas ações violentas?
Chamar essas ações de vandalismo é uma estigmatização. Toda manifestação tem essa característica de quebrar, romper algo. Romper as vitrines, quebrar coisas. Na França também é assim, como no Brasil, na Espanha também é. Na Europa, as manifestações também têm esse caráter de violência e há uma ligação entre esses eventos, que é justamente esse caráter emocional. Há uma grande importância nesse ato que rompe a sociedade de consumo, porque você quebra os objetos que representam essa sociedade de consumo. Há uma diferença entre destruir as coisas e quebrar as coisas. Não enxergamos a vontade de fazer com que essa sociedade não exista mais. Quando você quebra algo, a coisa ainda está lá, é uma ruptura, um demantelamento. Em particular, isso é representativo para as gerações mais jovens, que não se enxergam mais representadas e têm um sentimento forte de não-pertencimento a essa sociedade de consumo.
Nas ruas, há grupos com visões de mundo muito diferentes. Ainda assim, a agenda é comum. Por quê?
Essa é a diferença essencial entre a modernidade e a pós-modernidade. Na modernidade, as organizações políticas eram mais cartesianas, em torno de programas. Hoje, nessas manifestações, não é importante um programa, mas uma questão de sentimento. O estar junto. Não é mais a razão, é o sentimento.
Então a pessoa que está ao lado, defendendo a mesma bandeira, pode pensar completamente diferente?
Sim. Porque não é o que você racionaliza que é importante, mas o que você sente.
E é por isso que é tão difícil entender esses eventos?
Sim. Esse é o problema da desconexão, da defasagem, entre as elites e as gerações jovens. Não posso falar pelo Brasil, mas na França, onde publiquei recentemente um livro que se chama Les Nouveaux Bien-pensants, em que converso com jornalistas, universitários e políticos, mostro que as elites não compreendem as gerações mais jovens. Elas, as elites, têm um pensamento muito programático.
O que mudou no conceito de opinião pública com o aumento de relevância de fóruns e das redes sociais na internet?
Eu penso que não há mais uma única opinião pública, mas um mosaico de opiniões públicas. E isso pode ser visto por toda a internet, em blogs, em fóruns, nas redes, é um mosaico, uma variedade de opiniões públicas. Então, há uma diferença entre a opinião publicada e a opinião pública. Antes, as opiniões publicadas eram apenas as opiniões das elites, e isso fazia delas “a opinião pública”. Hoje, há uma fragmentação que é contemplada pela internet. Esse mosaico permite que essas opiniões sejam publicadas, ainda que não sejam vistas pela sociedade como a opinião pública.
No Brasil, temos uma discrepância entre o modo de agir e pensar desses jovens e o sistema educacional. Na sua visão, é preciso fazer uma grande ruptura nesse sistema?
Eu hesito em responder, prefiro responder de uma maneira provocadora. Eu penso que o sistema educacional é um sistema totalmente apodrecido, que não funciona mais. Acontece que a educação está baseada na pedagogia, e eu entendo que a pedagogia, e por isso eu disse que responderia de uma maneira provocadora, quando ela não é mais pertinente, ela se transforma em pedofilia. Por isso é um sistema apodrecido. Eu não acho que haja uma reforma possível para a educação, mesmo as progressivas. Eu diria que a educação moderna, que havia antes, não é baseada em iniciação, e há uma diferença entre educação e iniciação. A educação, que vemos em universidades e instituições e funcionou bem durante a modernidade, é verticalizada. Enquanto que a iniciação é horizontalizada. A iniciação tem uma ideia de acompanhamento e encontra um ponto de ajuda justamente na internet. É um paradoxo pós-moderno. A iniciação encontra paralelo antropológico na ideia das tribos antigas, quando as pessoas eram iniciadas. Na pós-modernidade se volta para a iniciação, mas com a utilização da internet. As instituições educacionais estão coladas a uma ideia de verticalização: eu sei algo que você não sabe e eu estou passando conhecimento para você. Na iniciação, há uma horizontalização, como na wikipédia. A internet mostra que é assim que as coisas vão funcionar na pós-modernidade, com a ideia de compartilhamento.
No mundo do trabalho há também essa dificuldade de adequar jovens aos sistemas verticais?
A hora-trabalho é uma ideia vertical e moderna, ao passo que hoje os jovens têm mais apego a questões ligadas à criatividade. É uma mudança de valores, uma questão da qualidade de existência. Não se quer mais perder a vida para ganhar a vida. Há uma dicotomia. Não querem mais perder a vida para ganhar a vida, não querem mais desperdiçar a vida para ganhar algo. Os jovens têm a ideia de transformar a sua vida em uma obra de arte. Esse é um dos cernes da diferença entre a modernidade e a pós-modernidade.
E como ficam as profissões mais tradicionais, em campos como Medicina, Direito e Engenharia? Há um risco de os jovens perderem o interesse nesse tipo de profissão?
Numa perspectiva a longo prazo, passaremos a ver as pessoas tendo mais vidas dentro de uma mesma vida. A pessoa não terá mais uma profissão fechada. Dentro dessa ideia, existirá um alongamento da vida e, por isso, as pessoas poderão ter não só uma profissão, como advogado ou professor, mas transitarão mais. As pessoas não terão uma função, mas sim um papel. São questões pré-modernas que eu acredito que vão voltar. O sujeito não tinha uma função, mas um papel dentro do grupo.
Isso também pode se refletir na família?
Sim, passa pela família. Não teremos mais famílias mononucleares, com um pai, uma mãe e as crianças. Isso se espalha também pela formação da família, pelas possibilidades de sexualidade. Serão novos modelos de família e, ainda dentro dessas famílias, novas maneiras de exercitar esses núcleos.
Como se preparar para lidar com duas visões tão diferentes de mundo, entre os jovens e os mais velhos? Não são visões de mundo conflitantes?
Não acredito que vá haver um conflito tão intenso. Eu não penso que há um choque. Simplesmente, os mais velhos irão desaparecer progressivamente (risos). Eles vão morrer, e os jovens vão dominar a sociedade e carregarão esses novos valores. As próximas gerações serão as constituintes e as mais velhas irão caducar e desaparecer.
Então, não há caminho de volta?
(risos) Não, não há. Assim é a vida.
fecris.vasconcellos@zerohora.com.br
FÊCRIS VASCONCELLOS