Os civis vestiram a farda?
Entrevista com Armando Boito Jr
Recentemente, tanto o meio acadêmico quanto a imprensa têm utilizado a expressão “golpe civil-militar” para designar o episódio que instaurou a ditadura no Brasil a partir de 1964. O objetivo é esclarecer que a iniciativa foi protagonizada pelos integrantes das Forças Armadas, mas contou com o apoio de diversos segmentos da sociedade, sendo que vários civis ocuparam cargos de destaque nos governos que se sucederam ao longo do período de exceção.
A terminologia é contestada pelo professor Armando Boito Jr, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Segundo ele, o esforço de esclarecimento é positivo, mas a solução encontrada é equivocada. “Se quisermos destacar o fato de que não foram apenas os militares os responsáveis pelo que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988, devemos dizer que a ditadura militar brasileira foi a ditadura da grande burguesia e do imperialismo. Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico”, provoca. Na entrevista ao Jornal da Unicamp, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014, Boito fornece mais detalhes sobre esta sua análise.
Eis a entrevista.
Recentemente, tem circulado no meio acadêmico e na imprensa a expressão “ditadura civil-militar” para caracterizar o regime vigente no período 1964-1985. Fala-se também em golpe civil-militar. O senhor concorda com essa terminologia?
Eu não concordo com essa terminologia. Ela foi inicialmente utilizada pelas forças que executaram o golpe de Estado de 1964. Os documentos do governo Castello Branco falavam em “Revolução civil-militar”. O objetivo era legitimar a ditadura militar, ocultando que era o Alto Comando das Forças Armadas que tinha assumido o controle do Estado brasileiro. Portanto, essa denominação tem uma tradição de direita, conservadora. Mais recentemente, tal terminologia foi retomada por intelectuais progressistas. A intenção, agora, é outra. Querem denunciar que a ditadura foi apoiada por civis, e que não se tratou de um regime imposto pelas Forças Armadas contra a vontade da sociedade no seu conjunto. A intenção é crítica, progressista, mas a solução encontrada é equivocada e não atinge o objetivo pretendido.
Por que não atinge?
Tal denominação comete pelo menos dois erros. O golpe de 1964 foi um golpe militar. É verdade que tivemos a participação importante de civis no movimento golpista e nos governos militares. Por exemplo, o Ministério da Fazenda, que era um órgão de grande importância, sempre foi ocupado por civis. Porém, o fundamental é o seguinte: o golpe foi organizado e executado pela cúpula das Forças Armadas e, durante todo o período da ditadura militar, sempre foi o Alto Comando das Forças Armadas que designou o chefe do Executivo Federal – o “presidente”. As Forças Armadas passaram a tutelar o conjunto das instituições do Estado brasileiro. Sim, houve apoio “civil” ao golpe. Os grandes empresários e o imperialismo financiaram a propaganda contra o governo João Goulart e parte da classe média manifestou-se na “Marcha da família com Deus pela liberdade”.
Observe-se de passagem, contudo, que na então capital da República, essa marcha ocorreu apenas após o golpe de Estado. Essas manifestações foram a base social do golpe, não a sua direção. Não foi um partido político que derrubou o presidente João Goulart. Não foi a UDN que chegou ao poder. Essa é uma situação muito diferente daquela que verificamos nas ditaduras fascistas nas quais é um partido político organizado que assume o poder governamental e implanta a ditadura, como ocorreu na Alemanha e na Itália. É uma situação diferente também, e por outras razões, daquela que conhecemos com a ditadura do Estado Novo no Brasil. Em 1964, foi o general Mourão Filho que desceu de Minas Gerais com suas tropas, recebeu adesões de outras regiões militares e o presidente Goulart foi deposto.
Ademais, o termo civil é vago, genérico, não tem, no caso, nenhum valor conceitual. O apoio ao golpe na sociedade não reuniu, ao contrário do que pode sugerir o termo “ditadura civil-militar”, o conjunto dos “civis” e nem a maioria deles. A maioria dos “civis” era contra o golpe, foi vítima dele. Quando escrevemos ditadura militar, estamos nos referindo à instituição militar. Essa instituição funcionou, sim, no seu conjunto, sob comando unificado em defesa da ditadura. As dissidências, que ressurgiam periodicamente, eram eliminadas. Já quando escrevemos civil, estamos nos referindo ao conjunto da sociedade, e esta estava profundamente dividida diante do golpe. A maioria da classe operária, dos camponeses, parte da classe média e uma parte minoritária da burguesia sustentava, criticamente ou não, o governo Goulart e se posicionava contra o golpe de Estado. Uma vez vitorioso o golpe, passaram a fazer oposição à ditadura.
Se uma parte da sociedade, ainda que minoritária, apoiou o golpe e apoiava ou participava da ditadura, não é estranho usar apenas o adjetivo militar para qualificar o regime?
Não, não é. Para compreender isso de maneira mais aprofundada temos de trabalhar com a distinção conceitual entre forma de Estado e bloco no poder. Vejamos a questão da forma de Estado. Ditadura militar é a denominação para a forma de Estado e para o regime político – a ditadura é uma forma de Estado e o fato de ela ser militar indica o essencial do regime político então vigente – que foram instalados no Brasil em 1964. Essa forma de Estado caracterizou-se, como já indiquei, pelo controle do Alto Comando das Forças Armadas sobre o Estado brasileiro. O Executivo federal era o centro do poder de Estado e ele foi militarizado. Eram os militares que indicavam o “presidente” de turno. O congresso apenas referendava. A eleição indireta não tinha competitividade nenhuma. Quando a denominada “eleição indireta”, que não era eleição coisa nenhuma, deixou de ser meramente homologatória da decisão do Alto Comando das Forças Armadas, o que ocorreu por ocasião da eleição indireta de Tancredo Neves em 1984, esse fato evidenciou que a ditadura militar encontrava-se em crise.
Além de controlar o Executivo Federal, as Forças Armadas estenderam seu controle às mais diversas instituições do Estado. As Forças Armadas agiam à revelia do Congresso: fecharam-no mais de uma vez, cassavam deputados eleitos, suprimiam e criavam partidos políticos etc. Controlavam, também, os governos estaduais: depuseram vários governadores eleitos, nomearam interventores militares em diversos Estados etc. A Constituição da ditadura, elaborada e aprovada em 1967, foi produzida sob a tutela das Forças Armadas. O Congresso Nacional, que se encontrava fechado pelos militares, foi chamado às pressas apenas para homologar a Constituição. O Judiciário estava sob controle militar. Guiava-se pela Constituição outorgada pelos militares. Os juízes de tribunais superiores que incomodassem os militares eram destituídos.
As grandes empresas estatais eram, no mais das vezes, presididas por militares e tinham muitos militares nas suas diretorias e conselhos; os militares controlavam também a polícia política e as instituições que exerciam a censura sobre os meios de comunicação. Esse papel das Forças Armadas transcende a importância que, normalmente, as Forças Armadas adquirem em toda e qualquer ditadura. Como a ditadura é instaurada em momentos de crise que exigem, para a manutenção da ordem capitalista, maior atividade dos aparelhos repressivos, as Forças Armadas ganham, normalmente, importância em regimes ditatoriais. Mas no Brasil de 1964-1988, bem como nos demais países do Cone Sul à mesma época, o papel das Forças Armadas foi muito além dessa situação comum a todas as ditaduras. Naquela época, os movimentos populares e democráticos entoavam o coro “Vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”. Estavam corretos: no conceito, na métrica e na rima.
Os militares detiveram de fato o poder nesse período?
Não exatamente. Os militares controlavam o processo de tomada de decisões, como ocorre em toda ditadura militar. Porém, o conteúdo dessas decisões beneficiava alguns setores sociais em detrimento de outros. Aqui tocamos na questão da função social dessa forma de Estado que foi a ditadura militar. Devemos utilizar o conceito de bloco no poder ao qual me referi acima. Esse conceito refere-se, não à organização institucional do Estado, não às regras explícitas ou implícitas do jogo político e tampouco aos agentes – os militares, neste caso – que tomam as decisões fundamentais. O bloco no poder designa a relação das diferentes classes sociais e setores sociais com o conteúdo das medidas de política econômica, de política social e de política externa do Estado. Tal conceito designa, em resumo, as classes e frações que detêm o poder, isto é, as classes e frações de classe cujos interesses são priorizados pela política de Estado. No que tange ao bloco no poder, a ditadura militar não representou, de modo algum, o “poder dos militares”. As Forças Armadas agiram como representantes, fundamentalmente, dos interesses da grande burguesia e do imperialismo.
É certo que os militares lograram obter algumas vantagens – melhoria salarial, mais autoridade em diferentes esferas sociais. Contudo, não foram eles os que mais ganharam com a ditadura militar. Quem mais ganhou foram as grandes empresas nacionais e internacionais, principalmente estas últimas. O governo João Goulart era um governo apoiado no movimento popular e que contemplava também a média empresa nacional, procurando impor limites ao capital estrangeiro. O fluxo de capitais para o exterior era regulamentado, o mercado interno era priorizado, havia barreiras de diversos tipos. Quem mais lucrou com a derrubada desse governo e com o milagre econômico da ditadura militar foram as grandes empresas, principalmente as estrangeiras, que cresceram em ritmo acelerado.
Essa distinção entre forma de Estado e bloco de poder é, então, fundamental para compreender a característica do regime?
A distinção conceitual entre forma de Estado e bloco no poder é fundamental. No que se refere à forma de Estado, temos uma ditadura militar; no que respeita ao bloco no poder, temos o poder da grande burguesia. É certo que os burgueses são “civis”, mas o problema é que eles usufruíam do poder de Estado em detrimento da grande maioria da população que também era composta de “civis”. Logo, o termo civil só introduz confusão. Se quisermos destacar o fato de que não foram apenas os militares os responsáveis pelo que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988, devemos dizer que a ditadura militar brasileira foi a ditadura da grande burguesia e do imperialismo. Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico.
Os civis vestiram a farda?
"O dever de memória sobre a ditadura fracassou",
constata Vladimir Safatle, professor de Filosofia,
em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 01-04-2014.
Segundo ele, "o que poderíamos esperar de governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, cujos fiadores eramAntônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, e de Luiz Inácio Lula da Silva/Dilma Rousseff, que tem em José Sarney um de seus pilares e em Antonio Delfim Netto um de seus principais conselheiros? Como esperar uma verdadeira política contra a ditadura de governos que dependem de figuras vindas diretamente da ditadura?"
Eis o artigo.
Hoje é o dia que marca, afinal, os 50 anos do golpe militar ocorrido em 1º de abril de 1964. Durante as últimas semanas, a sociedade brasileira foi obrigada a ler afirmações de personagens como o senhor Leônidas Pires Gonçalves, primeiro ministro do Exército pós-ditadura, insultando o país ao dizer que: "a revolução (sic) não matou ninguém" e que ela teria sido uma necessidade histórica.
Antes, correntistas do banco Itaú, uma instituição tão organicamente ligada à ditadura que teve um de seus donos, o senhor Olavo Setúbal, nomeado prefeito biônico da cidade de São Paulo, receberam uma singela agenda onde se lia que o dia de hoje seria o aniversário da dita "revolução". Ninguém, nem nas Forças Armadas nem no setor empresarial que tramou e alimentou o golpe teve a dignidade de pedir à sociedade perdão por um regime que destruiu o país.
É claro que ainda hoje há os que procuram minimizar a ditadura afirmando que ela foi responsável por conquistas econômicas relevantes. Raciocínio semelhante foi, por um tempo, utilizado no Chile.
Tanto em um caso quanto no outro esse raciocínio é falso. A inflação brasileira em 1963 era de 78%. Vinte anos depois, em 1983, era de 239%. O endividamento chegou, ao final da ditadura, a US$ 100 bilhões, legando um país de economia completamente cartelizada, que se transformara na terceira nação mais desigual do mundo e cujas decisões eram tomadas não pelo ministro da economia, mas pelos tecnocratas do Fundo Monetário Internacionalchefiados pela senhora Ana Maria Jul. A concentração e a desigualdade se acentuaram, o êxodo rural destruiu nossas cidades, a educação pública foi destroçada, a começar por nossas universidades.
Mas o maior exemplo desse revisionismo histórico encontra-se na crença, de 68% da população brasileira, de que aquele era um período de menos corrupção. Alguém deveria enviar para cada uma dessas pessoas os dossiês de casos como: Coroa-Brastel, Capemi, Projeto Jari, Luftalla, Banco Econômico, Transamazônica e Paulipetro.
Tudo isso apenas demonstra o fracasso que foi, até agora, o dever de memória sobre a ditadura.
Mas o que poderíamos esperar de governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, cujos fiadores eram Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, e de Luiz Inácio Lula da Silva/Dilma Rousseff, que tem em José Sarney um de seus pilares e em Antonio Delfim Netto um de seus principais conselheiros?
Como esperar uma verdadeira política contra a ditadura de governos que dependem de figuras vindas diretamente da ditadura?
Foi assim, de maneira silenciosa, que a ditadura venceu.
A grande imprensa apoiou o golpe e a ditadura
Os grandes veículos se passam por adversários da ditadura, mas colaboraram com ela e não tiveram papel relevante para o fim do regime. O comentário é de Beatriz Kushnir, historiadora, doutora em História pela Unicamp, autora, entre outros de, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 em artigo publicado porCartaCapital, 31-03-2014.
Eis o artigo.
Desde fins da da década de 1990, parte da historiografia brasileira sublinha que o (equivocado) processo de Anistia cunhou a (errônea) visão de que vivemos envoltos em uma tradição de valores democráticos. A partir das lutas pela Anistia, como sublinha Daniel Aarão Reis, “libera-se” a sociedade brasileira de “repudiar a ditadura, reincorporando sua margem esquerda e reconfortando-se na ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”. Nesse momento, plasmou-se a imagem de que a sociedade brasileira viveu a ditadura como um hiato, um instante a ser expurgado. Confrontando-nos à tal memória inventada, há no período republicano longos momentos de exceção – como nos referimos aos regimes ditatoriais.
Se tais premissas correspondessem aos fatos, restaria explicar: por que houve apenas restritos episódios de resistência vinculados igualmente a pequenos grupos? Por que se permitiu aprovar uma Anistia recíproca, que mesmo nestes 50 anos após o golpe civil-militar, ainda é tema espinhoso de revisão?
A luta contra o arbítrio, de forma armada ou não, definitivamente não caiu nas graças do povo deste berço esplêndido. E, certamente, os meios de comunicação de massa – a grande imprensa e posteriormente, a TV – têm um papel preponderante nas escolhas sociais implantadas.
São clássicos os editoriais do Correio da Manhã nas vésperas do 1º de Abril de 1964, clamando por “Basta” e “Fora” aJango. Igualmente, é emblemática a noção de que este jornal, ao realizar um “mea-culpa” e se colocar em oposição ao novo regime, foi punido com perseguições que levaram a sua falência. Esquecem-se, contudo, os amplos problemas de gerenciamento vividos por Niomar Moniz Sodré.
Ícones de resistência são lembrados, afirmados, expostos e sublinhados maciçamente para ratificar a tradição democrática brasileira, como: a meteorologia para o 14/12/1968, no Jornal do Brasil; as receitas de bolo do Jornal da Tarde; os poemas de Camões no Estadão; os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos; etc., que definiriam a grande imprensa brasileira como resistente ao golpe e, posteriormente, ao arbítrio. Mesmo com todo este esforço, o processo ditatorial perdurou por mais de duas décadas.
Meio século depois e com inúmeros textos publicados sobre a mais recente ditadura brasileira, poder-se-ia ressaltar que nunca a grande imprensa brasileira estampou na primeira página dos periódicos um aviso claro afirmando: “Este jornal está sob censura”. As estratégias acima apontadas e outras, que frequentemente voltam à tona para reforçar a ação resistente, contavam com a capacidade do público leitor em decifrar pistas.
O jornalista Oliveiros Ferreira, que por décadas trabalhou no Estadão, narrou as ligações recebidas pela redação indagando que a receita de bolo na primeira página do Jornal da Tarde estava errada. O bolo solava. Ou, como definiu Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, os poemas de Camões foram ali uma concessão. Certamente a censura federal apostava que o leitor não entenderia o seu porquê, ou se tranquilizaria na (efêmera) ilusão que mesmo no arbítrio lhe eram permitidos lampejos de resistência, os quais, efetivamente nada alteravam. Algo semelhante, contudo, não foi autorizado à (antiga) Veja, que, durante a “distensão” do governo Geisel, substitui as matérias censuradas por imagens de diabinhos, já que não se podiam publicar espaços em branco.
Advertida, teve que parar, pois certamente o leitor de Veja à época entenderia o recado. Certamente como compreendeu a mensagem da revista quando da morte de Vlado, numa nota pequena de desculpas por não poder nada mais expressar.
Os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes, como demonstram os processos que arrolam os seus nomes. Da mesma forma, existiram imposições governamentais de expurgos nas redações. Tais limpezas ocorreram logo depois do golpe e perduraram até e inclusive no governo Geisel, que impunha a bandeira do fim da censura. Muitos jornalistas/militantes poderiam ser citados como vítimas destas ações, já que, como pontuava lúcida e ferinamente Cláudio Abramo, “nas redações não há lugar para lideranças. Os donos dos jornais não sabem lidar com jornalistas influentes que, muitas vezes, se chocam com as diretrizes do comando. O jornalista tem ali uma função, mas ‘ficou forte, eles eliminam’.”
Os meios de comunicação são empresas que buscam o lucro, vendendo a visão particular sobre um fato e, comoAbramo por vezes demarcou, um “equívoco que a esquerda geralmente comete é o de que, no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior das informações. Mas não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado não é capaz de exercer o controle, e sim a classe dominante, os donos. O Estado influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos e não do Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos jornalistas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo interesse em combater a censura”.
Existiram pouco mais de 220 censores federais, muitos deles com o diploma de jornalista – sendo que o primeiro concurso público para o cargo ocorreu em 1974, quando Geisel prometia o fim da censura. Estas duas centenas de pessoas atuavam reprimindo: cinema, TV, rádio, teatro, jornais, revistas, etc., entre 1964 e 1988, em todo o território nacional. Para que as expectativas governamentais dessem certo, os donos das empresas de comunicação tinham de colaborar – e não resistir.
Inúmeros arquétipos podem corroborar tal ideia, até porque a autocensura não é desconhecida das redações, e não se iniciou no pós-1964 no Brasil. No Jornal do Brasil, por exemplo, editou-se, em 29/12/1969, como me cedeu o seu exemplar o secretário de Redação, José Silveira, uma circular interna de cinco páginas, elaborada pelo diretor do jornal, José Sette Câmara, para o editor chefe, Alberto Dines, denominada “Instruções para o controle de qualidade e problemas políticos”, criada com o objetivo de “instituir na equipe um (...) Controle de Qualidade (...) sob o ponto de vista político”.
Estabelecida dias antes do Decreto-Lei 1.077, de 26/01/1970, que legalizou a censura prévia, e um ano após o AI-5, a diretriz de Sette Câmara pontuava que “não se trata de autocensura, de vez que não há normas governamentais que limitem o exercício da liberdade de expressão, ou que tornem proibitiva a publicação de determinados assuntos. Em teoria há plena liberdade de expressão. Mas na prática o exercício dessa liberdade tem que ser pautado pelo bom senso e pela prudência”, já que “a posição do JB ao proferir que este não é a favor nem contra, (...) não é jornal de situação, nem de oposição.
O JB luta pela restauração da plenitude do regime democrático no Brasil, pelo retorno do estado de direito. (...) Enquanto estiver em vigor o regime de exceção, temos que usar todos os nossos recursos de inteligência para defender a linha democrática sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco ao Governo. (…) O JB teve uma parte importante na Revolução de 1964 e continua fiel ao ideário que então pregou. Se alguém mudou foram os líderes da Revolução. [Nesse sentido, o JB deverá] sempre optar pela suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal. Para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver”. Sette Câmara termina decretando que, “na dúvida, a decisão deve ser pelo lápis vermelho”.
Em meados da década de 1970, foi a vez da Rede Globo – uma concessão pública – formalmente instituir o “Padrão Globo de Qualidade”, ao contratar José Leite Ottati – ex-funcionário do Departamento de Polícia Federal – para realizar a censura interna e evitar prejuízos advindos da proibição de telenovelas. Segundo Walter Clark, a primeira interdição da censura na Globo ocorreu em 1976, na novela Despedida de casado. Para blindar a emissora, o “Padrão Globo de Qualidade” receberia o auxílio de pesquisas de opinião feitas por Homero Icaza Sanchez – o “Bruxo” –, encarregado de identificar as motivações da audiência.
Definindo toda essa tática, Clark explicou que, “(...) enquanto a Censura agia para subjugar e controlar a arte e a cultura do país, perseguindo a inteligência, nós continuávamos trabalhando na Globo para fazer uma televisão com a melhor qualidade possível.” Organizada a autocensura, o “Padrão Globo de Qualidade” teve acrescidos outros ingredientes para o seu sucesso. Em sintonia com a imagem, divulgada pelo governo autoritário, de um “Brasil Grande”, formulou-se também uma “assessoria militar” ou uma “assessoria especial” composta por Edgardo Manoel Ericsen e pelo coronel Paiva Chaves. Segundo Clark, “ambos foram contratados com a função de fazer a ponte entre a emissora e o regime. Tinham boas relações e podiam quebrar os galhos, quando surgissem problemas na área de segurança”.
Esquema semelhante a este foi adotado pela Editora Abril, exposto em uma correspondência de Waldemar de Souza – funcionário da Abril e conhecido como “professor” –, a Edgardo de Silvio Faria – advogado do grupo e genro do sócio minoritário Gordino Rossi –, na qual comunicava o contato tanto com o chefe do Serviço de Censura em São Paulo – o censor de carreira e jornalista José Vieira Madeira –, como com o diretor do Departamento de Censura de Diversões Públicas – Rogério Nunes – para facilitar a aprovação das revistas e a chegada às bancas sem cortes.
Estes vínculos do “professor” com membros do governo são anteriores a esse período e justificam seu potencial de negociação. Desde novembro de 1971 o relações-públicas do DPF, João Madeira – irmão de José Vieira Madeira –, expediu uma carta ao diretor-geral da Editora Abril na qual ratificava o convite do general Nilo Caneppa, na época diretor do DPF, a Waldemar de Souza para que fosse a Brasília ministrar um curso especial aos censores.
Em maio de 1972, o próprio general Caneppa enviou a Vitor Civita, diretor-geral da Abril, uma correspondência de agradecimento pelas palestras sobre censura de filmes, que Waldemar de Souza proferiu na Academia Nacional de Polícia. Para continuar colaborando, no ano seguinte, Souza formulou uma brochura intitulada “Segurança Nacional: o que os cineastas franceses esquerdistas já realizaram em países da América do Sul e pretendem repetir aqui no Brasil”. E, em 1974, com o general Antonio Bandeira no comando do DPF, Waldemar de Souza, em caráter confidencial, expôs o porquê de censurar Kung Fu e sua mensagem que “infiltra a revolta na juventude”.
Por fim, mas não menos importante, há a atuação do Grupo Folha da Manhã, proprietário da Folha de S. Paulo e daFolha da Tarde, entre outros, no período. Em dezessete anos, entre 19/10/1967 e 7/5/1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das Diretas Já, e a Folha da Tarde vivenciou uma redação tanto de esquerda engajada – até o assassinato de Marighella –, como, a partir daí, de partidários e colaboradores do autoritarismo.
Durante uma década e meia sob o comando de policiais, o jornal adquiriu um apelido: o de “maior tiragem”, já que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir deste perfil de funcionários, a Folha da Tarde carrega a acusação de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como o Diário Oficial da Oban.
Isto explica o porquê de os carros do Grupo Folha da Manhã serem incendiados por militantes de esquerda, nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971. A ação era uma represália, já que o grupo era acusado de ceder automóveis ao Doi-Codi que, com esse disfarce, montava emboscadas, prendendo ativistas.
Nesse momento de ponderações sobre os 50 anos do golpe, recordo-me que, quando dos 30 anos do AI-5, o jornalista Jânio de Freitas publicou na Folha de S. Paulo uma advertência não cumprida por seus pares, inclusive agora, nas reflexões dos periódicos aos 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Corroborando com tudo o que foi exposto aqui, Freitas lembrava em 1998 que “a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. Naqueles tempos, e desde 64, o Jornal do Brasil [...] foi o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime. (...) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói antiditadura tem dependido só de se passar por tal”.
O jornalista ao finalizar, adverte, e peço-lhe licença para me utilizar aqui, de suas conclusões. Trocarei 30 por 50 anos,AI-5 por golpe civil-militar de 1964, e o que estiver entre colchetes é de minha autoria. Assim: precisamos aproveitar os 50 anos do golpe civil-militar de 1964 para mostrar mais como foi o regime que [se instaurou a partir dali], eis uma boa iniciativa. Mas não precisava [como fizeram muitas narrativas recentes] reproduzir também os hábitos de deformação costumeiros naqueles tempos.
Veja também:
- Brasil, a construção interrompida. Impactos e consequências do golpe de 1964. Revista IHU On-Line, n. 439
- 1964. Um golpe civil-militar. Impactos, (des)caminhos, processos. Revista IHU On-Line, no. 437
- 1964-2004. Hora de passar o Brasil a limpo. Revista IHU On-Line, no. 95