Uma mentira que insiste em sobreviver

Uma mentira que insiste em sobreviver

 

Garoto de 10 anos, já conhecia as histórias das revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), realizadas pelos golpistas lacerdentos e eduardistas da Aeronáutica, os debates da reforma agrária, as lutas do “Petróleo é Nosso”, os trustes da época e as campanhas histéricas do anticomunismo (infelizmente ainda atuais). Eram assuntos normais nos jantares, nos almoços de sábado e domingo pós-praia. Também aos domingos, havia a missa das seis na Igrejinha de Copacabana, dentro do Forte, e a parada obrigatória no Lopes com seus pastéis e sorvetes.

Os trotes feitos por telefone pelos golpistas de Jacareacanga e Aragarças (excetuando o Major Veloso, que participou das duas revoltas, mas era um homem digno e correto) eram comuns. “Seu pai é um traidor! Iremos pegar cada um de vocês!” Isso ocorria de dia, à noite e nas madrugadas. Covardes...

O nascimento de minha irmã caçula, em 1962, foi comemorado em nossa casa. Pobre maninha, até seu nascimento foi motivo para os indignos destilarem suas covardias. Um vizinho do prédio, almirante, denunciou à polícia que uma reunião subversiva se realizava no apartamento 502 e o código para entrar eram duas batidas na porta e dizer Mato Grosso.

Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, começaram a prisões em massa.  No comando estavam os três patetas da junta militar que o substituiu, os ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica. Uma ação criminosa com oficiais do Exército, policiais e no apoio, oficias golpistas da Aeronáutica, tentou sequestrar, provocar e matar meu pai em uma madrugada. Eles chegaram a entrar no prédio, abordando violentamente dois jovens moradores que chegavam de uma festa. “Qual o apartamento do coronel Rui”. Os dois jovens reagiram com valentia: “Não mora nenhum coronel Rui aqui”. Meu pai nada sabia, estudava para seu curso de Estado Maior e nós dormíamos sem nada saber ou desconfiar. Felizmente desistiram da ação.

Ali passei a compreender a palavra “golpe” e a temer seu aterrorizante significado. Chegou o dia que durou 21, 22 e mesmo 25 anos:  O Golpe Civil Militar de 1964. Tinha na época 13 anos.

As cortinas de minha casa estavam cerradas e, pelas frestas, via os moradores da rua Raul Pompéia comemorando, alguns apontavam seus dedos duros rindo para minha cara apavorada e irada pela quebra da democracia. Meu pai estava no comando da Base Aérea de Santa Cruz e minha mãe ia ao seu encontro para dar força. Pediu a Alexandra, sua e nossa fiel escudeira: “Alexandra, vou ao encontro do Rui, não deixa o Pedro Luiz ficar na janela e de maneira nenhuma deixa ele sair!” Grande Alexandra, não nos abandonou!

Chegaram em casa meus pais. Veio o alívio, mas o medo e insegurança estavam presentes.

O telefone toca. “Coronel Rui, se apresentar na Terceira Zona Aérea”. Era o arbítrio mostrando sua cara e, naquele momento, nossa única certeza era a incerteza do futuro. “Meu filho, você agora é o homem da casa, se comporte, estuda muito, não tenha medo e cuida de sua mãe e das suas irmãs”.

Nossos vizinhos do oitavo andar, coronel Renato Goulart - sem parentesco com o presidente Goulart, já na reserva e companheiro de meu pai na Segunda Guerra Mundial (com 93 missões de guerra) - juntamente com sua mulher, a doce e querida Renata, nos receberam em sua casa, dando segurança e carinho. Foi um ato que só os amigos leais e de todas as horas fazem. Vários militares legalistas tiveram suas casas invadidas e suas famílias ameaçadas.

Nossa casa era constantemente vigiada. O mês de abril teve um dos mais fortes invernos no Rio de Janeiro e convivemos com os “James Bonds” do regime disfarçando, com ridículos jornais e revistas, espionagens. Como fazia muito frio e, com o tempo chuvoso, minha mãe, dona Julinha, me mandava descer com uma  bandeja com xícara, bule de café e biscoitos e oferecer aos espiões tupiniquins e dizer “sei que está cumprindo seu dever e espero que possa amenizar o frio e a fome”. Eram engraçadas as suas caras de espanto e retiradas envergonhadas. No dia seguinte, novos e ridículos espiões apareciam. Vinham novas rodadas de café e biscoitinho. Me lembro que apenas um aceitou, agradeceu e riu da situação. Qual teria sido seu fim?

O medo passou a ser meu companheiro, dos 13 anos até a idade adulta. O medo de falar, de falhar, medo de sair em grupo, medo de falar demais, o medo de vaiar no Maracanã quando a banda da PM tocava o hino nacional. Um medo angustiante e doloroso.

O terror veio em 1970, quando fui levado pelo DOI-CODI como refém para prenderam meu pai. Fui solto ao som dos gritos do meu pai. “Soltem o garoto”. Ele ficou incomunicável por três dias. Neste período, foi torturado física e mentalmente no Regimento de Cavalaria Mecanizado em Deodoro. Comandava o regimento um oficial que se apresentou de forma humilhante, de joelhos, agarrando as pernas do pai. “Rui, me perdoa, nada sabia”. Faleceu o patético e torturador general de quatro estrelas.

Recentemente, membros da Comissão da Verdade foram à casa do meu pai. Capitaneados pela valente e querida Rosa Cardoso, tomaram depoimento do pai e da mãe. O mesmo convite me foi feito. Desta vez não tive medo.

Hoje, quem rasgou a Constituição, compactuou com as prisões, perseguições, torturas, estupros, assassinatos e desaparecimentos, treme e se apavora. Isso fica claro na destruição de provas, nas recusas de se apresentar nas Comissões da Verdade e nos recursos à Justiça, coisa que negaram a suas vítimas.

Depois de longos anos abro as cortinas de minha alma, como estivesse ainda rua Raul Pompéia. Falo, escrevo e, livre, conto para as futuras gerações que as ditaduras só podem sobreviver e durar a custa do medo e do terror.


* Pedro Luiz Moreira Lima é filho do major-brigadeiro do ar Rui Moreira Lima. Veterano da Segunda Guerra Mundial, o brigadeiro Rui, como era conhecido, foi um dos vários militares perseguidos por ser contrário ao golpe de 1964. Ele morreu aos 94 anos, em 13 de agosto de 2013.

 

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