Democracia bloqueada

Democracia bloqueada

Democracia bloqueada

Por Miguel G. Godoy[1]

O objetivo deste ensaio é mostrar como uma concepção exigente de democracia – a democracia deliberativa – pode nos fazer repensar como  nos tem sido negado um direito tão básico quanto fundamental: a participação ativa e direta dos cidadãos na vida político-democrática de nosso país.

Apesar da Constituição de 1988 estabelecer logo em seu art. 1°, parágrafo único, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente, não temos tido, além do voto, muitas outras formas de participação e controle diretos sobre as instituições representativas do povo. Não é à toa que Paulo Bonavides, um dos principais juristas do Brasil, ao tratar da democracia participativa asseverou que “somos uma democracia bloqueada, uma democracia mutilada, uma democracia sem povo”. Essa declaração é uma denúncia, representa uma indignação, uma indignação compartilhada, pois a democracia no Brasil é muito mais palavra do que ação. Ela é, quase sempre, mero substantivo, quando muito um adjetivo, mas poucas vezes ela é prática, é ação. É contra esse bloqueio à participação direta do povo, e em favor do que estabelece nossa Constituição, que devemos, pois, resgatar o significado de democracia hoje. Nesse sentido, tem se destacado, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, a concepção deliberativa de democracia.

A democracia deliberativa parte da ideia de que um sistema político valioso é aquele que promove a tomada de decisões imparciais, por meio de um debate coletivo com todos os potencialmente afetados pela decisão, tratando-os com igualdade. A ideia de avaliar a opinião de todos aqueles potencialmente afetados parece, assim, responder à intuição básica de que todos são iguais e devem ser tratados com igual respeito e consideração.

A principal virtude da democracia deliberativa é, assim, a de que ela promove e facilita a discussão pública. A discussão assume um papel central para a democracia deliberativa porque por meio dela se eliminam possíveis erros fáticos e lógicos que se apresentam nos argumentos. Ou seja, por meio da deliberação os sujeitos apresentam suas convicções perante os outros, os quais atuarão não como meros receptores daquela informação/opinião, mas como verdadeiros filtros. Essa dinâmica permite, ainda, que, além da identificação de possíveis equívocos, se incremente o argumento que até então estava sendo exposto com a adição de novas informações e opções, que eram ignoradas ou desconhecidas. Por isso a discussão é tão importante, pois é por meio dela que não apenas se retifica ou refina o argumento, mas também se conhecem os pontos de vista e interesses dos demais.

A discussão também apresenta um outro benefício, o seu caráter educativo. O processo deliberativo de exposição de opiniões, escuta dos argumentos etc., abre espaço para a autoeducação daqueles que estão debatendo, para a melhora de seus raciocínios, de sua convivência em comunidade. A deliberação pública também tende a forçar as pessoas a modificarem seus argumentos de tal forma a torná-los mais aceitáveis pelos demais. E é justamente esse procedimento, a discussão e deliberação públicas, que tende a favorecer a formação do consenso e a tomada de uma decisão imparcial.

Nesses termos, concebe-se a democracia como um processo orientado à transformação. Processo este que se opõe à construção social alicerçada no status quo e foge da posição individual e egoísta para atuar em favor de uma posição coletiva, fundada exclusivamente em um processo de construção e reflexão coletivas. Daí a defesa intransigente por uma democracia deliberativa que inclua os cidadãos no processo de tomada de decisões.

Essa perspectiva de democracia nos mostra, portanto, em primeiro lugar que não há democracia sem povo e, em segundo lugar, que só pode haver democracia com a necessária participação direta e igualitária dos cidadãos nos assuntos coletivos de sua comunidade.

No entanto, no Brasil, a falta de mecanismos de participação direta do povo na vida político-institucional do país e a falta de amplos mecanismos de controle popular sobre os representantes do povo demonstram como a atual representação política continua distante e separada dos cidadãos. Esse arranjo institucional distante e separado do povo ignora o elemento mais fundamental de uma discussão que busca dar conteúdos e limites à vida pública do país – o próprio povo. É um sistema institucional que se diz democrático, mas é avesso ao povo. É uma representação política que padece de demofobia. É uma contrafação do princípio democrático e um falseamento do princípio republicano[2]. Quando se alija o povo de um diálogo sobre seu país e deixam-se as principais decisões de uma comunidade somente nas mãos de representes e agentes governamentais distantes do povo, nega-se o fundamento da própria Constituição – o de que todo o poder emana do povo e por ele também deve ser exercido diretamente.

Enquanto essas distorções permanecerem, continuaremos a ser uma democracia bloqueada e sem povo e a palavra democracia continuará a ser mero substantivo retórico.

 


[1] Miguel Gualano de Godoy é Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia da UFPR. Pesquisador Visitante na Universidade de Harvard. Advogado.

[2] COMPARATO, Fábio Konder. Brasil: verso e reverso constitucional. Disponível em: http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/25-anos-da-constituicao

http://www.criticaconstitucional.com/democracia-bloqueada/




ONLINE
66