Aos gordos
Aos gordos eu apresento Gattaca
Há seis anos que Bruna Giorjiani de Arruda leciona sociologia na rede estadual paulista de ensino. A hora-aula gira em torno de nove reais. Ninguém trabalha por tão pouco, menos ainda quando se tem um cérebro! Bruna é uma das últimas abnegadas. Talvez por ter só 28 anos, consegue mostrar-se motivada. Nesse tempo todo em que trabalhou teve apenas uma única falta. Foi no dia em que seu pai faleceu.
Bruna agora passou no concurso público. Segundo lugar! A maioria dos que alcançam os primeiros lugares em concursos não fica como professor. Dado que são os melhores, arrumam logo um emprego de ganho maior, ou apenas de ganho digno. Mas Bruna quer ficar, quer dar aula, está contente com a aprovação no concurso. Vai assumir! Vai? Não! Ué, o que lhe impede? Ah, sim! Ele impede: o governador médico Geraldo Alckmin, a coisa mais bem bolada que o PSDB já chegou a inventar na face da Terra. Tolinho o FHC, que vive dizendo que é o Plano Real!
O cérebro mais brilhante da medicina internacional, o governador, bate o pé em um critério estúpido que continua barrando pessoas aprovadas em concurso para a carreira do magistério. Trata-se da ideia de que o gordo não pode trabalhar. Gordo é doente! Eu escutava algo como “gordo é feio”, para uma sociedade como a nossa. Já escutei também: “não é bom para a saúde ser gordo”. Mas eu não sabia que “gordo é doente”. Aliás, não sei. Não tenho esse conhecimento por uma razão simples: isso faz parte da doutrina Alckmin, não é um conhecimento. A doutrina Alckmin não pode ser um conhecimento, ninguém pode cognitivamente absorver alguma coisa desse tipo!
Vamos pesar a população brasileira? Está todo mundo fora do peso. Vamos olhar para a pança dos políticos? Está todo mundo posando de suíno mórbido. Vamos olhar para os que se passam por magros, como o próprio Alckmin, veremos que ele tem cintura descabida e seu exame médico aponta todo tipo de disfunção. Isso sem falar da disfunção cerebral que ele, como governador, dispõe e expõe. Caso isso seja um problema, a gordura da população, isso está no enredo da novela da saúde pública. Para virar algo preocupante a ponto de interferir na vida de cada um, como elemento que impede uma pessoa sadia que tem exames outros todos perfeitos, de vir a trabalhar como professor, muita água tem de passar por debaixo da ponte.
O governo vai perder uma boa professora, na prática vai anular o diploma e o concurso dela, porque afirma que ela, sendo gorda, irá ficar doente. Ou pior: ela não está doente, mas irá ficar, e então o governo conclui que é doente! Por que o governo inventou uma doença antecipada? A pessoa gorda é doente. Não! Então o governo pode, por estimativa de estatísticas, não contratar uma pessoa assim? A probabilidade de ela ficar doente mais cedo que outros a proíbe, agora e não no futuro, de exercer a profissão para a qual se formou?
Chegamos aí a um ponto filosófico central, um problema de ética.
Trata-se do problema da sociedade do filme Gattaca. É permitido em uma sociedade liberal e democrática pensarmos em barrar pessoas ao ingresso no trabalho porque, pelo estágio de nossa ciência, avaliamos que ela irá começar a não render como profissional mais cedo que outros?
Bruna, tatuada de gato, uma paixão sua!
Vamos colocar as coisas em perspectiva, para compreendermos melhor a questão: em uma sociedade em que todos são iguais perante a lei, ao menos no sentido de que não podem ser prejudicados, podemos fazer um mapa genético e um histórico da patologia de cada família e, assim, determinar os cidadãos com mais chances de renderem menos que outros num futuro, e, a partir disso, estabelecer um critério para o serviço público? Podemos fazer isso e ficar ainda de bem com a ideia de sociedade liberal democrática? Duvido.
O governo do Estado não está fazendo o que faz no sentido de proteção à pessoa. Não é uma sugestão do tipo: você está gorda, faça um acompanhamento aqui pelo médico do estado para poder trabalhar! Nada disso! É proibição da posse mesmo! Não querem dar posse à moça porque ela, mesmo saudável, tem 110 kilos. Um critério desses, em cima de um profissional que já está trabalhando e que nunca faltou, vai valer assim, sem mais?
Outros gordos já entraram com recurso e ganharam do governador, em episódios passados. Inclusive ganharam os processos que moveram contra essa maravilhosa cabeça de Alckmin e seu governo, a maioria por prejuízos morais também. Mas o governador teima. Ele é aquele tipo de gente que acredita que está usando de “métodos científicos para a admissão no trabalho” quando, na verdade, não entende nada de ciência porque se esqueceu faz tempo que ciência sem filosofia, em discussão ética, é a mesma coisa que meteoro querendo se passar por planeta: uma pedra vagando que se acha capaz de um lugar nobre no sistema solar.
A ciência é sempre mais ignorante do que os cientistas e na mão de burocratas vira o ponto de ápice da estupidez. O Estado de São Paulo está se mostrando cumpridor dessa regra. Mas o pior, debaixo dessa regra a um critério filosófico de seleção antecipada dos futuramente mais aptos, e isso, nós sabemos, não vem senão de algo mais abaixo do que a sede do Governo paulista, que é a sede do demônio. Esse critério vem do inferno.
© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo.
http://ghiraldelli.pro.br/aos-gordos-eu-apresento-gattaca/