Contas sem faz de conta

Contas sem faz de conta

José de Souza Martins - O Estado de São Paulo - 08/03/2014 - São Paulo, SP

Quando chegarem à idade de sonhar, como sonharão as gerações de adultos precoces que aprendem finanças aos 3 anos?

Ainda haverá poetas quando os primeiros rebentos da escola pós-pedagógica forem soltos da gaiola em que perderam a infância para fazer cursos de finanças, de inglês onírico e de empreendedorismo antes que lhes nascessem os primeiros pelos pubianos ou mesmo os primeiros dentes? Ainda haverá quem possa sentir na alma os versos de Castro Alves, de Paulo Eiró, de Álvares de Azevedo, de Fagundes Varela, de Francisca Júlia da Silva, de Cora Coralina, de Paulo Bomfim, de Carlos Rodrigues Brandão, de Dalila Teles Veras, de Bento Prado Júnior, de Hilda Hilst, de tantos e muitos de uma era de inflação de lirismo antieconômico?

Ainda haverá quem seja capaz de sentir na alma a Bachiana nº 5, de Villa-Lobos, sem perder-se no caminho calculando quantas notas e quantos acordes tem? Quanto tempo o compositor `gastou` para compô-la? Quantos cruzeiros teria ganho se, em vez disso, tivesse montado uma fábrica de parafusos ou de goma de mascar? Oh, boy, I don’t know! Quantas músicas deixaram de compor os compositores do barroco, perdendo tempo com aqueles volteios inúteis, com reiterados retornos sobre o mesmo, fazendo hora para ir daqui até ali? Muitas? Poucas? Nenhuma? Mas a música não é a expressão do espírito, do imaterial, do eterno que há no homem?

João, o grande Guimarães Rosa, se tivesse nascido neste mundo novo, teria encontrado Diadorim nos ermos e gerais, escondendo-se no mistério do duplo que somos? Teria desvendado o mistério do coisa-ruim que se esconde nas veredas do sertão? Desvendar para desvendar-se? Dá pra ser criança sem mistério? Dá pra ser adulto sem ter sido criança?

Ainda haverá adolescentes capazes de se comunicar em português e, por cima, com sotaque e vocabulário nheengatu como é próprio da língua portuguesa falada no Brasil, a nossa língua? Maybe. Na tiguera da língua que restar, da memória que ainda houver, o que será possível falar? Poderão saborear uma pitanga e dizer chupei uma pitanga, comer um punhado de pipocas e dizer comi pipoca, chupar uma jabuticaba e dizer chupei jabuticaba, chupar maracujá e dizer chupei maracujá, se sua fala já tiver perdido as palavras que as nações tupi nos ensinaram? Terão perdido até o português tão nosso, vencido pelo tupi, com aquele suave accent do predomínio das vogais que encheram de música a calma lentidão de nosso falar? Poderão nossos filhos pronunciar essas palavras e sentir o sabor dessas pequenas coisas que fazem o nosso nós? Será possível sentir o sabor de algo que não se pode dizer, apreciar sem conceito para pensar?

Quando chegarem à idade de sonhar, como sonharão as gerações pré-fabricadas de adultos precoces, que aprendem finanças aos 3 anos de idade, que ouvem a língua inglesa e aprendem a dizer mummy enquanto dormem o sono dos inocentes, antes mesmo de balbuciar mamãe em português? Que troca é essa? Sonharão? Sonharão em português ou em inglês onírico de prisioneiros do sonho alheio, o da mercantilização da inocência em nome de um futuro medido pelos trocados bem calculados de uma existência para o lucro e a eficiência? Se não sonharam na infância, como sonharão quando adultos? Sonharão colorido, como é próprio das crianças, ou sonharão em preto e branco, como é próprio de quem não viu as cores da vida?

É possível começar a viver quando já não se sabe sonhar, errar, cair, fazer xixi na cama, ter dúvidas e incertezas quanto ao que comer, ao que pensar, com que brinquedo brincar? E o que vai acontecer quando esses adultos da falsa infância da educação de robô descobrirem que o mundo mercantilizado já não fala inglês, mas espanhol, francês, alemão, japonês, chinês? Ou, por que não, português? Ou já não fala nada, porque as máquinas falam pelas pessoas ou porque a palavra se tornou inútil e o silêncio será a grande linguagem universal dos emudecidos pela educação cerceante e antecipatória do progresso pessoal sem dilemas, sem escolhas verdadeiras, sem enganos nem dúvidas, sem inventividade de rua e do faz de conta das muitas e fantasiosas histórias que criança sabe contar, sem pé nem cabeça ou com mais cabeça de quem tem os pés na terra e coração na vida? Ah, meu, sei não!

Se minha filha mais velha tivesse sido educada numa sociedade dessas, teria ela escrito a um de seus amigos, como escreveu, quando tinha 5 anos de idade, numa época em que morávamos na Inglaterra, `dê lembranças ao sol e ao vento de São Paulo`? Teria, baby? Quantas libras esterlinas teria colocado no cofrinho de louça se tivesse economizado essas palavras inúteis dizendo ao amigo apenas `aqui faz frio e chove muito`. Qual novidade, cara-pálida? Até índio já entrou nessa pedagogia desidentificadora. Nos anos 1970, no relutante encontro entre o grupo brasileiro de aproximação, da Funai, e um grupo indígena do Amapá, já não se antecipou o trêmulo cacique perguntando aos indigenistas: `Do you speak english?`.

Serão crianças que saberão fazer contas sem saber fazer de conta? Saberão perguntar num mundo sem perguntas? Acertar sem tropeçar? Esperar sem ter esperança?

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP E autor, entre outros livros, de A Sociologia Como Aventura (Contexto, 2013)

 

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