Ganhar a vida é aprender a perder
Papai, perdi a roda do meu carrinho!
O pai, a um segundo de se despedir do filho e voltar correndo ao trabalho como todos os dias, escuta o apelo de seu pequeno como uma revelação. De olhar seu menino ali, os joelhos no chão, os olhinhos úmidos rastreando espaços sob a mesa em busca de um pedaço de seu brinquedo de plástico chinês, o homem estremece sobre as pernas.
De repente, nada mais faz sentido. As crises econômicas, a violência urbana, as guerras civis, a ameaça da inflação, as taxas de juros. Nada pode ser mais importante que resgatar a roda perdida. Parem o mundo! Chamem a SWAT, o Serviço Secreto, a Legião Estrangeira. Tem um carro quebrado paralisando o trânsito da vida.
Um minuto antes, o menino acelerava seu veículo voador sobre a terra grandiosa dos homens, saltava abismos intransponíveis, flutuava sobre estradas infinitas e amansava a velocidade dolorosa do universo até fazê-lo girar em câmera lenta, preenchendo de sonho o vazio concreto do mundo. Agora, tudo se reduz à frustração da perda e à procura objetiva do que se perdeu.
O pai abandona seus afazeres práticos e mergulha na busca implacável ao lado de seu filho. Arrasta o sofá, levanta cadeiras, se enfia sob a mesa. Sem um único sinal da roda extraviada. Então, submerso em sua expedição doméstica, pensa em contar ao filho sobre as tantas coisas que ele ainda haverá de perder. Porque, como todos os seres que caminham sobre a terra, seu menino também há de deixar muito mais coisas do que será capaz de lembrar. Ali, farejando como um cão de caça o assoalho da casa, o pai se perde em uma corrente violenta de pensamentos sobre o quanto já perdeu.
Desde seus primeiros brinquedos desaparecidos na terra do quintal e as figurinhas engolidas pelos vãos do sofá, ele relembra suas perdas da vida inteira. Pensa em cada lugar esquecido, revisita planos abandonados, acena para amores passados, desculpa-se com amigos preteridos. E outra vez se dá conta de que, muito mais do que seus ganhos poucos, um homem se constrói a partir de suas tantas perdas.
Perde tempo e perde a chance. Perde a força, a saúde, a sanidade. Perde a vergonha, os ímpetos e os pudores. Perde o dinheiro, a paciência, o caminho de volta para casa, perde a conta, a vez, a linha e o fio da meada. Perde o jeito, a mão e a classe. Perde amigos e parentes. Perde peso e perde amores. Perde, enfim, as rodas de seus carrinhos pela vida.
Ali, ao lado de seu filho, o homem se dá conta de que só não perdeu uma única coisa: o medo que o acompanha desde sempre. Ele tem medo. Como tantas outras vezes, o homem tem muito medo de perder barato o que lhe é mais caro.
Então, o menino interrompe sua busca sem mais o quê. “Papai, tudo bem. Eu perdi a roda do meu carrinho pra sempre.”
Pronto. O filho aprendeu a lição. O pai já pode voltar ao trabalho. O trânsito da vida retoma seu fluxo.
Essa noite, cada um em sua cama, pai e filho vão perder o sono pensando na aventura da tarde, pouco antes de reencontrá-lo entre um canto e outro da casa, dormir profundamente e perder a hora de acordar na manhã seguinte. Assim eles caminham pela vida. Perdendo, ganhando.
E um dia, daqui a muitos anos, quando um e outro já tiverem concluído seus caminhos por esta terra, um arqueólogo haverá de achar, nos escombros de uma antiga construção, a pequena roda de um carrinho de brinquedo. Girando a relíquia entre os dedos, ele anotará em sua caderneta do futuro que, em alguma hora distante, ali terá existido o que os antigos chamavam de lar, onde um filho brincava de carrinho na companhia de seu pai sem jeito.
O arqueólogo será um homem de visões generosas, e das folhagens alaranjadas de sua imaginação há de saltar a figura de um menino lindo e feliz em seu carro voador. Fazendo o som do motor com a boca, o pequeno piloto acelera sobre a terra grandiosa dos homens, salta abismos intransponíveis, flutua sobre estradas sinuosas e amansa a velocidade dolorosa do universo até fazê-lo girar em câmera lenta, preenchendo de sonho o vazio concreto do mundo, sob o olhar dolorido de um pai cheio de pressa, de amor e de medo de perder barato o que lhe é mais caro.
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