Portaria viola a liberdade de manifestação

Portaria viola a liberdade de manifestação

Portaria do Ministério da Defesa viola a liberdade de manifestação

A democracia brasileira passa por um momento delicadíssimo, que pode ser percebido em elementos que, se eram socialmente presentes há algum tempo, agora estão sendo institucionalmente escancarados. Paira no ar a impressão, típica de momentos de exceção, de que a pirâmide normativa está de cabeça para baixo. Uma ordem direta de um superior hierárquico tem valor maior do que o texto de uma lei aprovada no Parlamento.Ou, pior, uma portaria emanada de um órgão qualquer pode se contrapor diretamente às garantias democráticas estabelecidas na Constituição da República.

É o que se vê em uma Portaria do Ministério da Defesa, assinada pelo Ministro Celso Amorim e publicada na “calada da noite” do ano de 2013. Eis o texto, que pode ser acessado aqui:

PORTARIA NORMATIVA Nº  3.461 /MD, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013.

Dispõe sobre a publicação “Garantia da Lei e da Ordem”.

O MINISTRO DE ESTADO DA DEFESA, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição, e observado o disposto nos incisos III, VI e IX do art. 1º do Anexo I do Decreto nº 7.974, de 1º de abril de 2013, resolve:

Art. 1º Aprovar a publicação “Garantia da Lei e da Ordem – MD33-M-10 (1ª Edição/2013)”, na forma do anexo a esta Portaria Normativa.  

Parágrafo único. O Anexo de que trata o caput deste artigo estará disponível na Assessoria de Doutrina e Legislação do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.

Art. 2º Esta Portaria Normativa entra em vigor na data de sua publicação.

CELSO AMORIM

(Publicado no D.O.U. nº 247 de 20 de dezembro de 2013.)

Nada demais, não é? Só mais um “inocente” texto normativo, como tantos outros publicados diariamente no Diário Oficial. Pois o anexo aprovado pela portaria é um verdadeiro show do horrores para qualquer um que se orgulha de viver em uma democracia constitucional.

Vamos ao texto: logo na página 13, encontra-se a finalidade do documento: “Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO)”. Mais adiante (p.14 e 15), o texto conceitua os principais termos, já com uma linguagem extremamente militarizada:

- Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem. 

- Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio. 

- Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio, praticados por F Opn previamente identificadas ou pela população em geral.

Ou seja, o documento já parte da premissa da intervenção em contexto de guerra, em que cidadãos são tratados como “ameaça” e “forças oponentes”. Tudo com fundamentos  extremamente rasos: uma meia dúzia de referências vagas ao art. 142 da Constituição e a Leis e outras normas, além de uma pérola filosófica que é bastante preocupante para qualquer um minimamente preocupado com a estabilidade da democracia no país:

4.1.1. Os fundamentos para o emprego da força nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem assentam-se na observância dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da legalidade, influenciando a opinião pública de forma favorável à operação. 

Desde quando “razoabilidade, proporcionalidade e legalidade” são fundamentos para o emprego da força? No máximo, seriam mecanismos interpretativos para realizar o controle do emprego da força, mas não um fundamento. Esses são conceitos que – e aqui há grande discussão jusfilosófica a respeito – trazem maior instabilidade e menor transparência nos atos praticados em favor da “lei e da ordem”, pois favorecem justificativas abertas e pouco motivadas para o uso de um instrumento de exceção. Sim, porque o uso das Forças Armadas em operações – que podem usar armamento, ainda que não letal – contra civis é típico de regime de exceção.

Note, ainda, que o pressuposto da ação não é o de convencimento da população de que as medidas são adequadas ou necessárias. As Forças Armadas devem atuar “influenciando a opinião pública de forma favorável à operação”. Em uma democracia constitucional, os cidadãos devem ser convencidos por meio de instrumentos procedimentais de diálogo, não “influenciados” para que concordem com uma operação militar.

A escolha de palavras não é fortuita. Os cidadãos não devem ser persuadidos das medidas – devem ser influenciados para concordar com elas. Nós, os “civis”, nem somos tratados como cidadãos, mas mera “massa”, transfigurada no conceito de “opinião pública”. Somos rebanhos e o comandante da operação nos diz o que devemos fazer obedientemente.

O show de horrores não para aí. Nas páginas 25 e seguintes do documento, percebe-se todo o mecanismo de espionagem necessário ao “sucesso” das operações:

4.2.2.3.1 O minucioso conhecimento das características das F Opn e da área de operações, com particular atenção para a população que nela reside, proporcionará condições para a neutralização ou para a supressão da capacidade de atuação da F Opn com o mínimo de danos à população e de desgaste para a força empregada na Op GLO. 

Os termos utilizados denotam, novamente, o caráter autoritário da medida. As Forças Armadas devem colher todas as informações necessárias para a neutralização ou para a supressão da capacidade de atuação das Forças Oponentes (F Opn) com o mínimo de danos à população. Na leitura do texto, sinto-me em um episódio da série 24 Horas, no meio de um ataque terrorista que deve ser “neutralizado” ou cuja capacidade de atuação deve ser “suprimida”.

Quanto à população (ou as tais Forças Oponentes são o quê? Extra-terrestres? Zumbis?), não tem jeito: a operação não busca evitar qualquer causalidade, mas apenas pretende adotar uma política de “redução de danos”. O documento prevê a utilização de armamento não letal, mas o fato é que eles não são assim tão “não letais” assim.

O documento é tão detalhado que prevê até como as Forças Armadas devem lidar com a mídia. A comunicação social deve ser utilizada de modo a alcançar a “conquista e a manutenção do apoio da população e a preservação da imagem das forças empenhadas”, e evitar incidentes que possam ser explorados pelas “Forças Oponentes ou pela mídia”.  Aliás, há no texto até recomendação para “filmagem das atividades da tropa”, de modo a “constituir prova contra possível propaganda adversa”. Faltou apenas a recomendação de que os agentes envolvidos tirem a câmera da mão de um civil que esteja filmando um incidente. Talvez porque não precise e o comportamento já esteja embutido na psiquê das tropas.

Mais ainda, o “anexo” prevê o emprego de operações psicológicas, consideradas básicas para “a conquista e manutenção do apoio da população, de sorte a desenvolver uma atitude contrária às F Opn [Forças Oponentes] e outra favorável em relação às forças envolvidas”. Consoante já destacado, toda a ação é destinada a tratar as “forças oponentes” como inimigo. Apesar de o item 4.3.1 dizer que as “forças oponentes” não são inimigas, verifica-se que a própria definição de “força oponente”, no item seguinte, é problemática: 

4.3.2 Dentro desse espectro, pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como F Opn: 

a) movimentos ou organizações; 

b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc; 

c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou instigando ações radicais e violentas; e 

d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial. 

 Por que destaquei em vermelho a alínea “a”? Porque os demais itens até podem não ser tão problemáticos, a depender do contexto, e podem de fato demandar a intervenção das Forças Armadas em uma situação de crise institucional. Mas a alínea “a” escancara a porta da arbitrariedade. Abstratamente, a norma prevê que qualquer movimento ou organização pode ser tratada, em princípio, como “Força Oponente”. 

E, afinal, é para esse caso em especial que o normativo todo se justifica. Afinal, todo o aparato destinado ao convencimento da população seria desnecessário para combater atividades essencialmente radicais, violentas e criminosas; o “convencimento psicológico” só é necessário para a alínea “a”, quando grande parte da população, legitimamente, pode apoiar um “movimento” ou “organização”. Tratar, a priori, formas de ação coletiva como “Forças Oponentes” à garantia da lei e da ordem é uma violação frontal à liberdade de expressão, de associação e de reunião.

Alguém poderia pensar que essas atitudes violentas são justificadas em situações de emergência e crise. Mas é esse o caso? Não. A maior parte dos casos considerados de “Operação de garantia da lei e da ordem” envolvem manifestações populares e o exercício de direitos como o de greve. Veja-se a redação do artigo 4.4, que descreve as “principais ameaças“:

4.4 Principais Ameaças 

Entre outras, podem-se relacionar os seguintes exemplos de situações a serem enfrentadas durante uma Op GLO: 

a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação; 

b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras; 

c) bloqueio de vias públicas de circulação; 

d) depredação do patrimônio público e privado; 

e) distúrbios urbanos; 

f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; 

g) paralisação de atividades produtivas; 

h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País; 

i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e 

j) saques de estabelecimentos comerciais. 

A meu ver, a chave para compreender esse ato normativo é a alínea “i”. É evidente que essa parafernália legal que inventaram com essa portaria tem raízes nas manifestações de junho do ano passado, na ocasião da disputa da Copa das Confederações. E mostra a má vontade das Forças Armadas com manifestações populares contra os chamados “grandes eventos”, que são chamadas de “sabotagem”, e não como manifestação salutar da vox populi, total e irrestritamente protegida pelo art. 5º, IV e XVI, da Constituição da República. A manifestação popular está irremediavelmente prejudicada pela intervenção militar com o intuito de desbloquear vias (inciso “c”) ou evitar distúrbios urbanos (“e”).

Pior ainda, o dispositivo levou a reboque outros direitos. A greve, por exemplo, é direito assegurado no art. 9º da Constituição, mas pode ser considerada uma situação de afronta à “lei e à ordem” e demandar a intervenção do Exército. Afinal, a greve exige a paralização da atividade produtiva (inciso “g”) e pode implicar a paralização de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos (inciso “h”). Em outras manifestações, pode haver invasão de propriedades públicas e particulares – que podem ser, em alguns casos, legítimo exercício do direito à liberdade de manifestação.

Evidentemente, não se está a defender o direito de ninguém depredar prédios públicos ou a propriedade de ninguém. Mas essa é uma responsabilidade que deve ser aferida caso a caso e após a ocorrência da turbação, não a priori. Pode fazer sentido que o MST invada uma fazenda privada que seja improdutiva. O movimento não pode, evidentemente, saquear a fazenda, mas a manifestação faz parte de sua pauta de reinvidicações e está ancorada em dispositivo constitucional que autoriza a desapropriação legal de terras improdutivas – que não cumprem sua função social (art. 184 do texto constitucional).

No “Anexo G”, outra barbaridade contra a vida de uma sociedade democrática. O texto descreve um dos cenários de atuação dos militares para manter a “lei e a ordem pública”, nos seguintes termos: “Atuação de elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.

É nítida a orientação de calar movimentos de oposição ao governo, cuja existência é o que define exatamente um regime democrático. Oposição, protesto e movimentos de reivindicação são elementos típicos de qualquer sociedade livre. O texto pretende “abrandar” o tom ao estatuir que esses movimentos devem sofrer intervenção caso estejam “comprometendo a ordem pública”, mas, em última instância, quem define se a ordem pública está sendo comprometida ou não são as próprias autoridades.

Não duvido, por exemplo, que um movimento como o do vídeo abaixo seria qualificado como violador da ordem pública, por gerar “distúrbio urbano” e “bloquear vias públicas”:

Tire suas próprias conclusões.

Felizmente, após a repercussão negativa do episódio, Celso Amorim suspendeu a aplicação do “manual”.

http://www.criticaconstitucional.com/portaria-do-ministerio-da-defesa-viola-a-liberdade-de-manifestacao/




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