O desafio enfrentado com retórica
Educação pública, o desafio enfrentado com retórica
Na volta às aulas, especial da RBA mostra problemas pendentes na área, decisiva para desenvolvimento do país: desigualdades regionais, falta de professores, baixa remuneração e escassez de recursos
Sala de aula improvisada no sertão nordestino: país ainda tem longo caminho para corrigir desigualdades na educação
Milhões de brasileiras e brasileiros voltam hoje (27) às salas de aula. A data é o único aspecto que os iguala. No mais, alguns terão um ano de incrível aprendizado pela frente, com boas condições estruturais, acesso a material didático completo e aulas com professores capacitados e bem remunerados. Outros, seguramente a maioria, daqui a uns poucos dias sofrerão de tédio, irritação e subaprendizado, fruto de más condições de estrutura, falta de docentes e baixa oferta de vagas.
A desigualdade é um dos aspectos centrais do especial sobre os desafios da educação que a RBA publica hoje. Entre Norte e Sul, entre o campo e as áreas urbanas, entre negros e brancos, entre pobres e ricos, começa na primeira infância um jogo que tem alta probabilidade de marcar o destino de toda uma vida, dando a alguns brasileiros oportunidades que jamais cruzarão o caminho de outros, fadados a uma existência de exclusão social e discriminação.
Há estatísticas em abundância para demonstrar a tese, e todas podem ser encontradas nas quatro reportagens da série. Tomemos uma emprestada: 62,02% das crianças de famílias com renda per capita de até um quarto do salário mínimo terminam a escola com a idade defasada para a série, contra 11,52% nas famílias com renda superior a dois salários mínimos por pessoa. O resultado disso é o país que conhecemos: um dos mais desiguais do mundo. O problema não para na renda. A falta de possibilidades de estudo determina o acesso a serviços públicos e a capacidade de reivindicação de direitos sociais garantidos pela Constituição, mas dos quais só toma conhecimento a parcela da população que menos depende deles.
Do mau exemplo geral não escapa a cidade-continente. São Paulo reúne dados capazes de assustar, e que não deixam margem a dúvida quanto às diferenças entre os bairros centrais, no geral habitados por pessoas mais ricas, e a periferia. Sem políticas para a fixação de professores nas bordas da maior capital do país, quem padece são os alunos, que recebem docentes menos experientes à espera da transferência para uma área mais próxima do centro. Mapas produzidos pela RBA evidenciam uma diferença nos indicadores de conhecimento e aprendizado que oferecem, por óbvio, a constatação da perpetuação das desigualdades sociais e de renda.
Uma trajetória forjada durante a ditadura, como mostrará uma das reportagens da série. Passados 50 anos do golpe que derrubou o presidente constitucional João Goulart, a educação pública de má qualidade é uma das muitas heranças presentes na vida dos brasileiros. O processo de desmonte do ensino gratuito, inaugurado pelos militares que decidiram tomar emprestado o Palácio do Planalto, ainda não foi concluído. Entre as muitas questões pendentes, o arrocho salarial de docentes continua a ser moda em tempos de democracia.
O cruzamento de estudos coletados pela RBA mostra um cenário desolador. Entre as profissões de ensino superior, a de professor é a que tem mais baixa remuneração média, R$ 702, valor próximo ao do salário mínimo (R$ 724) e nove vezes menor que o vencimento médio de um médico. Se há um programa como o Mais Médicos para incentivar a fixação em áreas periféricas das cidades e nos rincões do país, não menos importante seria um Mais Professores, que, porém, seria muito mais oneroso, devido à quantidade de docentes.
Fazer valer a Lei do Piso Salarial, que determina R$ 1.567 como vencimento mínimo para uma jornada semanal de 40 horas, já seria um começo. O descumprimento da legislação federal de 2008, no entanto, funciona como demonstrativo do descaso com o tema, sempre mais belo nos discursos que na prática. Desde sempre os gestores públicos brasileiros propalam a educação como fator fundamental para o desenvolvimento do país, mas, em termos de realizações concretas, poucos deles podem se jactar de ter feito algo realmente inovador e construtivo.
Que o diga o financiamento do ensino, tema de uma das reportagens desta série. No começo da década de 1960, no governo Jango, o Ministério da Educação contava com algo em torno de 10% do Produto Interno Bruto (PIB), patamar reduzido pela metade durante a ditadura, percentual que não sofreu considerável elevação desde então, embora em números absolutos tenha havido crescimento. Quanto custa universalizar a educação pública de qualidade? Nossas repórteres respondem: 7,67% do PIB em 2016 e 10% do PIB em 2020. Pode parecer muito. Não é, se pensarmos que é isso que determina a sorte dos brasileiros pelo resto da vida.
Aos leitores, além do convite à leitura, deixamos uma questão: se todos sabem o caminho das pedras, por que a educação pública de qualidade segue sendo apenas uma ilusão, que jamais é realizada pelos governos das mais distintas esferas administrativas e cores partidárias?