Em risco o projeto de nação

Em risco o projeto de nação

Subfinanciamento coloca em risco projeto de nação, advertem analistas

Investimento brasileiro é inferior a um quarto da média dos 34 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); para especialistas, não falta dinheiro, mas vontade política

Odair Leal/Folhapress            

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Modelo de financiamento da educação reforça desigualdade, principalmente entre os estados, afirmam especialistas

 Apesar de tímida, a melhora é evidente. De acordo com o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que a  cada três anos mede o desempenho dos estudantes, o Brasil evoluiu em matemática, passando dos 365 pontos na prova de 2003 para 391 na da última edição, em 2012. O país apresentou ainda outros dados positivos: redução nas taxas de repetência, que entre 2009 e 2012 caíram de 40,1% para 37,4%, e aumento do número de estudantes de 15 anos frequentando a escola. O percentual passou de 65% em 2003 para 78% na última avaliação.

Apesar disso, ainda permanece nas piores posições do ranking do Pisa. Entre os 65 países participantes da avaliação de 2012 – 34 que compõem o organismo e outros convidados, entre eles o Brasil – o país obteve a 58ª posição, atrás de Chile, México, Uruguai e Costa Rica e à frente de Argentina, Tunísia, Colômbia, Indonésia e Peru.

O desempenho sofrível, que se repete em tantos outros sistemas de avaliação, inclusive nacionais, reflete o desprezo com que um setor estratégico é tratado pelo poder público – um pouco caso histórico, de governos de todas as épocas, cores e partidos, que tem no subfinanciamento a sua mais perfeita tradução.

Pela Constituição de 1934, governo federal e prefeituras estavam obrigados a investir no setor apenas 10% de suas receitas oriundas de impostos, e os estados, 20%. A de 1937 manteve o percentual da União e dos estados, mas dobrou o dos municípios. Só em 1961 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) elevou para 12% o mínimo a ser investido pela União – obrigatoriedade que a Constituição de 1967 suprimiu. Em 1969, pela Emenda Constitucional n°1, os municípios continuaram obrigados a investir 20% da receita no ensino primário. Porém, estados e União ficaram livres de um percentual mínimo. Aplicavam quanto bem entendessem.

De acordo com estudos da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, entre 1960 e 1965, o Ministério da Educação (MEC) aplicava entre 8,5% e 10,6%, percentuais que foram reduzidos para 4,4% e 5,4% no período de 1970 a 1975, o do chamado milagre econômico – o que demonstra que autoritarismo e educação não caminham de mãos dadas. Em 1983, com a Emenda Constitucional 24, do senador João Calmon, foi fixado mínimo de 13% para a União e 25% para estados, Distrito Federal e municípios.

Só com a Constituição de 1988 é que o percentual mínimo da União, que mais arrecada, foi elevado para 18% do seu total de impostos. O de estados e municípios foi mantido em 25%, os quais, a partir de 1997, passaram a ter de ser aplicados no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que em 2007 passou a englobar toda a educação básica – daí a sigla ter mudado para Fundeb (leia destaque).

O histórico subfinanciamento consolidou a posição do país entre os que menos investem no setor. Segundo a OCDE, o que os Estados Unidos empenham em um aluno por ano, em números proporcionais, é o que o Brasil aplica ao longo de seis anos.  Na média, os países-membro do organismo – assim como Chile e México – aplicam quase quatro vezes  mais que o Brasil.

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Receitas

Pela legislação, a parte da União no financiamento pode ser usado no custeio de merenda escolar, estruturação de bibliotecas, manutenção das escolas e na complementação ao Fundeb, que equivale a apenas 10% do total que os estados e municípios destinam ao fundo. De acordo com o MEC, em 2012 foram redistribuídos pelo Fundeb R$ 106,7 bilhões aos estados, que repassam aos municípios, para serem usados para pagamento de profissionais da educação, obras e compra de materiais, além de custear transporte escolar, realizar avaliações oficiais e adquirir uniformes, computadores e mobiliário.

Segundo o presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), professor da USP em Ribeirão Preto e integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, José Marcelino de Rezende Pinto, o Fundeb movimenta atualmente cerca de 2,3% do PIB. “Esses recursos não são adicionais para a educação, exceto a pequena parcela do aporte da União, que deve ser aplicado exclusivamente na educação infantil, ensino fundamental e médio, que compõem a educação básica”, explica.

Cada estado tem o seu Fundeb. Depois de recolhido, o montante é repartido com as redes estadual e municipais conforme o número de alunos matriculados na educação básica. De acordo com Marcelino, a matrícula é calculada pela etapa de ensino, que tem valores diferenciados. Pela tabela vigente, um aluno do ensino médio de escola localizada em centro urbano, que estuda em tempo parcial, é contabilizado por um valor 20% superior ao de um aluno dos anos iniciais do ensino fundamental. Já uma criança de creche, em tempo parcial, é contabilizada por um valor 20% inferior ao de um aluno dos anos iniciais do ensino fundamental. “Essas ponderações entre as etapas deveriam ter correlação com os custos efetivos desses alunos, mas até hoje essa distorção não foi corrigida. Isso prejudica os municípios, já que o custo de um aluno de creche é muito superior ao de um aluno do ensino fundamental ou médio”, aponta.

Outro recurso que entra no financiamento da educação é o Salário Educação, que equivale a 2,5% do total da folha de contribuição das empresas. Esse item representou R$ 14,9 bilhões em 2012. A verba pode ser usada para remuneração de profissionais, aquisição de materiais, realização de obras, aluguel de imóveis, realização de pesquisas estatísticas, trabalhos de campo e concessão de bolsas de estudo.

Ataques

No entanto, conforme destaca o pesquisador e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Nicholas Davies, não é de hoje que o financiamento insuficiente sofre diversos ataques, com a criação de artifícios que retiram recursos do setor. É o caso de impostos que surgem com o nome de  contribuições sobre as quais não pode incidir tributação. "Isso  permitiu ao governo federal aumentar significativamente sua receita  orçamentária sem ter que destiná-la à educação nem dividi-las com outros  entes da federação", diz.

Ou mesmo a chamada Desvinculação de Receitas da União (DRU), que desvinculou 20% dos impostos federais entre 2000 e 2011, enquanto vigorou, causando prejuízos de bilhões de reais ao ensino; ou a Lei Kandir (Lei Complementar 87/96), que desonera o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre a exportação de alguns produtos com o pretexto de aumentar a competitividade das exportações; ou mesmo leis estaduais e municipais que reduzem os percentuais mínimos.

Ainda segundo Davies, o financiamento está vulnerável também ao descumprimento de suas exigências constitucionais ou legais. A Constituição de 1988 determinava, por exemplo, que por 10 anos – até 1998 – as três esferas de governo deveriam destinar 50% do percentual mínimo (ou seja, 9%, no caso da União, e 12,5%, no caso de estados, Distrito Federal e municípios) à universalização do ensino fundamental e à erradicação do analfabetismo. “Porém, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o governo federal nunca cumpriu tal determinação.”
É comum ainda utilização indevida dos recursos no pagamento de despesas que estão fora daquilo que a LDB determina como item de manutenção e desenvolvimento da educação. É o caso da merenda escolar, que não pode ser paga com os 25% dos impostos. Outro equívoco dos governos, até aceito por tribunais de contas, como no estado de São Paulo, é descontar do orçamento da educação o pagamento de aposentadorias, quando o correto é colocá-los na função previdenciária.

Qualidade

Ente que mais arrecada, a União é também a que mais se omite quanto a educação básica. Entre outras coisas, depende dela aumentar o valor do chamado custo/aluno, com a adoção do CAQi (custo aluno qualidade inicial), parâmetro proposto pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para garantir a melhoria da qualidade do ensino, que tem parecer favorável do Conselho Nacional de Educação e é defendido por todos os setores que militam em prol da educação pública. Para isso, o governo federal teria de colocar 1% do PIB no Fundeb – hoje coloca apenas 0,2%. "Se houvesse essa melhoria na complementação, o menor valor remunerado pelo fundo seria equiparado ao maior, diminuindo assim diferenças na qualidade de ensino oferecido a crianças brasileiras nas regiões mais carentes", diz José Marcelino.

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O projeto do Plano Nacional de Educação (PNE), que entra em seu quarto ano de tramitação no Congresso Nacional, prevê, entre outras metas, aumento gradual de recursos para o setor correspondente a 7% do PIB no quinto ano de sua vigência até atingir 10%, em seu décimo ano. Para Marcelino, não falta dinheiro para isso.

Como ele explica, nas últimas duas décadas o país saiu de uma carga tributária correspondente a 24% do PIB para 35% do PIB sem que a educação quase nada se beneficiasse desse crescimento. “Entendemos que seja factível, embora politicamente complexo, dar esse salto nos investimentos educacionais. Destinar ao setor um pouco mais da quarta parte de tudo que se paga de tributos no país é uma meta que, com certeza, encontra respaldo junto à população”, afirma.

O caminho para isso, segundo ele, passa pela redução nos gastos com  pagamentos de juros e encargos da dívida pública e um corte dos  incentivos fiscais, além do combate à sonegação e à guerra fiscal entre  entes federados. "Embora fique com mais da metade de tudo que se  arrecada no país, a participação da União nos gastos com educação  corresponde a cerca de um quarto do total", diz.

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Para ele, essa elevação nos investimentos na educação básica e de nível superior  vai corrigir atrasos históricos, proporcionar qualidade e estabilizar os  investimentos, a exemplo do que fizeram os países ricos. Assim, a partir  de 2020, numa perspectiva de educação pública melhorada, será possível o  início de uma progressiva queda no investimento total em relação ao PIB  para patamares de 6% e 7% – sem a perda de qualidade  especialmente no que se refere à educação de jovens e adultos.

Para José Marcelino, um pais que arrecada 35% do PIB em tributos pagos  essencialmente pela população mais pobre tem como destinar 10% do PIB  através de uma política gradual. "Além dos lucros e dividendos das  estatais, do BNDES, que é usado para tudo, por que não para a educação?  Acho que se trata de um pacto social: nós precisamos dobrar o salário  médio dos professores e aumentar significativamente as matrículas na  educação básica e superior e garantir educação de jovens e adultos para  os milhões de brasileiros que não possuem ensino fundamental e médio.  Por isso os 10%. Não é uma simples questão contábil. É um projeto de  nação”, diz.

Pré-sal

No começo de setembro passado, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.858, que destina 75% dos royalties do petróleo para investimentos na área de educação – os outros 25% vão para a saúde. O Ministério da Educação estima que os repasses, que já começam a ser feitos, atinjam R$ 19,96 bilhões em 2022, totalizando R$ 112,25 bilhões em dez anos. A lei prevê ainda destinação ao setor de metade dos recursos do Fundo Social do Pré-Sal até que sejam atingidas as metas do Plano Nacional de Educação.

No entanto, pelas contas de analistas, o pré-sal não vai corrigir os problemas de caixa da educação. "Quando se fala de petróleo, não dá para ter certeza se é isso mesmo que vai ser arrecadado", diz Luiz Araújo, especialista em financiamento da educação e ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao MEC. Sua opinião tem respaldo em um estudo do consultor para a área de recursos minerais, hídricos e energéticos Paulo César Ribeiro Lima, da Câmara dos Deputados, que avalia o impacto dos royalties do petróleo no financiamento da educação.

De acordo com Araújo, em 2013 os royalties teriam rendido R$ 1,14 bilhão, dos quais a educação receberia 75%, ou seja, cerca de R$ 700 ou R$ 800 milhões. Em 2014, renderiam R$ 2,29 bilhão e, a partir de 2018, se tornariam mais robustos, na casa dos R$ 20 bilhões. Em 2022 seriam por volta de R$ 37 bilhões ou R$ 38 bilhões.

"Aparentemente parece muito, e criou-se uma falsa expectativa com o potencial de recursos. Em 2013 trabalhamos, só no Fundeb, com R$ 130 bilhões, e vai entrar R$ 700 milhões por meio de royalties, o que é muito pouco para dar um salto de qualidade. Só de 2018 em diante é que a participação vai ser um pouco mais relevante. Toda nova fonte garante uma estabilidade, mas não é a salvação da lavoura", diz.

Conforme Araújo, daqui a dez anos o gasto com educação deve ser equivalente a 10% do PIB e essa nova fonte de recurso, o petróleo, vai equivaler a cerca de 1% do PIB. "Como temos de passar para 10%, então a conta não vai fechar. O petróleo contribui, obviamente, mas ainda falta", diz. "Lógico que o crescimento da economia e da arrecadação ajuda a aumentar o investimento do PIB, mas precisamos de outras fontes adicionais de financiamento além do petróleo, como a criação de um imposto sobre grandes fortunas, a aplicação dos dividendos pagos hoje pelas estatais à União, que vão todos para o superávit primário. Essa é uma outra fonte importante porque as estatais geram um lucro, o governo é o principal acionista e todo esse dinheiro está indo para o pagamento da dívida."

Pouco ou muito, os recursos dos royalties do petróleo só trarão resultados se chegarem aos municípios. É o que pensa a presidenta da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, Cleusa Repulho. "Municípios e estados reivindicam a chegada desse dinheiro por meio do Fundeb, para que quem tem mais aluno receba mais recurso, o que é justo", afirma. "Se não chegar na ponta, para o custeio e pagamento de pessoal e despesas, não vai resolver o problema da educação. O que nós mais estamos pedindo é que os royalties possam ser usados para custear a carreira e salário do professor. Esse hoje é o principal desafio: garantir que os profissionais fiquem na sala de aula e tenham atrativo, que o salário seja bom".

Uma das faces do descompromisso federal com a educação foi a criação,  em 1996, durante o governo FHC (1995-2002), do Fundo de Manutenção e  Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). De  acordo com Nicholas Davies, da Universidade Federal Fluminense, a  medida pouco ou nada contribuiu com o setor ao praticamente nada colocar  de dinheiro ‘novo’ nos sistemas educacionais.

Consistia na contribuição  de estados e prefeituras com 15% de alguns dos impostos (ICMS, FPE,  FPM, compensação financeira prevista na LC 87/96, IPI-exportação), que  por sua vez recebiam conforme o total de alunos matriculados no ensino  fundamental regular. Enquanto alguns governos ganhavam, outros perdiam.  "Em 2006, último ano do Fundef, a receita nacional foi de R$ 35,9  bilhões e a complementação federal se reduziu a pouco mais de R$ 300  milhões, ou seja, menos de 1% do total", diz Davies.

Embora considerado progressista, o Fundeb – que permitiu a inclusão  da educação infantil e ensino médio no cômputo – acabou mantendo a  lógica do Fundef ao manter a participação da União e apenas redistribuir  os recursos entre estados e municípios. Ou seja: o governo federal, que  arrecada mais de 60% da receita nacional de tributos e contribuições,  só se compromete a destinar 10% da contribuição de Estados, DF e  municípios para o Fundeb de 2010 ao final de 2020, último ano da  vigência do fundo.

Para Davies, uma consequência da lógica do Fundeb é  que os governos que obtiverem ganhos e/ou complementação federal terão  mais chances objetivas de desenvolver a educação básica e melhorar a  remuneração do magistério. Porém, os que perderem não terão esta  receita extra. Outro aspecto frágil do fundo se refere à valorização do  magistério, uma vez que milhares de prefeituras e alguns estados perdem  recursos para o fundo. "Em outras palavras, a valorização do magistério  supostamente pretendida pelo Fundeb não toma como referência a  totalidade mínima da receita vinculada à educação."

No entanto, para o presidente do Conselho Nacional de Educação, Fernando  Lima, o Fundeb é um grande avanço. "O fundo anterior só tratava do  ensino fundamental e o Fundeb trata desde a educação infantil até o  ensino ensino médio, colocando o mesmo valor per capita para todos os  alunos dentro de um determinado estado, o que nivela o financiamento  entre os municípios de um determinado estado. No entanto, o nivelamento  entre os estados depende de maior contribuição da União", diz.




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