(Im)Pacto na alfabetização

(Im)Pacto na alfabetização

Cristina Charão Marques

Escola Pública - 29/01/2014 - São Paulo, SP

A sala que reúne 20 educadoras dos três primeiros anos do ensino fundamental da rede municipal de Porto Alegre concentra uma pequena amostra dos desafios a serem enfrentados pelo sistema educacional brasileiro para garantir a introdução das crianças no mundo das letras com a atenção e qualidade devidas. Ao longo do encontro, o sexto de uma série que faz parte do processo de formação de alfabetizadores do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), as perguntas e comentários das professoras revelam questões que merecem reflexão dentro e, principalmente, fora das salas de aula. `É difícil fazer o planejamento integrando os três anos. Não temos tempo ou espaço para isso na escola`, diz uma alfabetizadora. `Quando propus algumas mudanças, a supervisão e a direção me cobraram que eu mostrasse onde, no material do Pacto, estava escrito que a gente devia fazer o que eu estava propondo. Acho que eles também precisam ser formados para a questão da alfabetização`, conta outra. `Não sei se vou dar conta de tudo que preciso fazer`, desabafa uma terceira.

Integração das equipes, sensibilização dos gestores e apoio ao trabalho dos educadores - necessidades expostas pelas falas dessas professoras - são apenas uma parte dos problemas a serem enfrentados quando o assunto é a alfabetização de crianças. A análise das ações mais recentes neste sentido, o que inclui o próprio Pnaic e a extensão do ensino fundamental para nove anos (leia na pág. 24), mostra que ainda é preciso tapar muitos buracos na base do processo da educação escolar.

Embora venham melhorando sensivelmente, os resultados do país no Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (Pisa) e na Prova Brasil mostram que a maioria dos estudantes chega à metade e ao fim do ensino fundamental com pouca ou muito pouca proficiência em leitura e escrita. Os dados são o retrato do chamado efeito bola de neve: alunos na metade do percurso escolar lidando com dificuldades acumuladas desde os primeiros passos no caminho das letras e dos números.

O relato da professora gaúcha Giseli Silva mostra que esse problema já pode ser sentido durante o processo de alfabetização. Responsável por uma turma A30 - a nomenclatura usada pela rede municipal de Porto Alegre para o que seria o 3o ano do fundamental, desde que foi implementado o sistema de ciclos há 18 anos - na Escola Municipal Villa-Lobos, ela diz que uma das dificuldades de seu trabalho é lidar com alunos em diferentes estágios do processo de alfabetização dentro da mesma sala de aula. `Recebo crianças com níveis muito variados: algumas chegam aqui pré-silábicas ainda, com dificuldade de relacionar som com letra.`

Lançado no ano passado, com a adesão de praticamente 100% dos estados e municípios, o Pnaic apresenta-se como a política da vez para que as redes de ensino públicas melhorem seu desempenho nos anos iniciais do fundamental. A meta do Pacto é garantir que todas as crianças brasileiras estejam plenamente alfabetizadas até os 8 anos de idade. Para isso, foi criado um sistema de formação voltado para a qualificação dos alfabetizadores, o que inclui os professores do 1o, 2o e 3o anos. Eles recebem bolsas de incentivo à participação nos cursos, ministrados por orientadores capacitados por universidades parceiras e coordenados por um gestor designado pela Secretaria Municipal de Educação. O Pnaic oferece, ainda, materiais didáticos e paradidáticos específicos, que devem servir como apoio para que os alfabetizadores concretizem em sala as diretrizes pedagógicas e didáticas propostas pelo MEC.

Contra a solidão

A organização e realização dos cursos é tarefa das secretarias municipais de Educação. Em Porto Alegre, as orientações integram os professores dos três anos envolvidos na tarefa da alfabetização. `É importante eles terem contato um com o trabalho do outro, afinal a ideia é que o processo de alfabetização se dá ao longo dos três anos, não é o trabalho isolado de uma professora`, comenta a educadora Carla Cardorello, orientadora do Pnaic e responsável por dois núcleos de formação, incluindo o grupo descrito no início da reportagem. Para as professoras, esses momentos são interessantes, mas não suficientes. `Aqui na escola, estamos até separados fisicamente: as salas dos A10 [1o ano] ficam num prédio à parte e os A20 [2o ano] e A30 [3o ano], noutro`, diz a professora Kátia Ribas, colega de Giseli na Villa-Lobos. `Nem os alunos convivem entre si, nem nós.`

`O professor, em geral, é muito solitário`, diz Antonio Augusto Gomes Batista, coordenador de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Essa solidão acaba se expressando em dificuldades para inovar práticas de sala de aula. Batista chama a atenção para o que poderia ser feito para além da formação - proposta central do Pnaic e uma oportunidade para aproximar os educadores e proporcionar novas reflexões. `As boas experiên­cias de formação são aquelas que vêm acompanhadas de tutorias, para que o professor possa, a partir de uma base estruturada, ter mais autonomia para desenvolver as atividades`, diz. A demanda das professoras de Porto Alegre sobre o envolvimento dos supervisores com o Pnaic faz, portanto, sentido.

Outro elemento importante seria ter materiais didáticos propositivos, que pudessem guiar os educadores na criação dos projetos e atividades. E um terceiro elo desta rede de apoio ao professor seria o monitoramento. Remetendo ao Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic), experiência do Ceará que inspirou o desenho do Pnaic (leia mais na pág. 27), ele cita o `sistema de pilotagem` implementado, com coordenadores locais voltados especificamente para o acompanhamento do trabalho dos alfabetizadores. Além de apoio direto ao professor, um sistema desse tipo permite o acompanhamento permanente do programa. `A avaliação só é boa se ela fornece elementos para correção de caminhos`, ressalta Batista.

A proposta do MEC para o acompanhamento dos resultados do Pnaic é a criação da Avaliação Nacional da Alfabetização. A realização de um teste de desempenho suscitou críticas por colocar pressão sobre as crianças, no momento da aplicação, e sobre os educadores, que se sentiriam pressionados a apresentar bons resultados, o que poderia desviar o foco do processo para a prova. `Os professores demonstram estar muito preocupados com os objetivos traçados`, ressalta Márcia Aparecida Jacomini, professora de educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Esse tipo de avaliação também pode ajudar a `apagar` variáveis que influenciam o processo de alfabetização, mas que vão além da sala de aula.

Além do quadro-negro

`A maior demanda que as professoras trazem para nossos encontros de orientação é como trabalhar com a inclusão, realidade cada vez mais forte na rede pública`, conta a orientadora do Pnaic, Carla. Em outras palavras, as alfabetizadoras demonstram a necessidade de receber apoio para lidar com a diversidade de perfis de alunos que encontram em sala de aula. `Elas têm de alfabetizar - e na idade certa - crianças com defi­ciência e em situação de vulnerabilidade social`, diz. Isso indica a necessidade de reforçar a articulação entre atores externos à escola: das redes de saúde e assistência social às famílias.

`Não é à toa que essas questões aparecem. O que foge ao alcance da escola gera muita angústia no corpo escolar`, diz Maria do Socorro Nunes Macedo, professora da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) e coordenadora do Grupo de Trabalho de Alfabetização, Leitura e Escrita da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Ela lembra a pressão exercida pelas avaliações, que exigem bom desempenho da escola e do professor, mas desconsideram questões relacionadas à desigualdade social e acesso a bens simbólicos, problemas com os quais o Poder Público deveria lidar. `A cultura escrita é um bem simbólico fundamental para que a criança tenha um bom desempenho na escola, especialmente no processo de alfabetização`, lembra.

Maria do Socorro diz que o Pnaic, sendo a primeira política pública articulada nacionalmente para enfrentar as dificuldades de alfabetização, tem justamente como ponto forte retirar a culpa pelo fracasso escolar de cima do aluno e de suas condições não ideais. No entanto, ao centralizar a questão no professor e no seu trabalho, exclui outras variáveis que também precisam ser consideradas pelas políticas públicas para que se possa alfabetizar mais crianças com qualidade e dentro do tempo esperado.

Márcia lembra ainda que as políticas públicas precisam garantir a existência de uma escola que não se furte em lidar com as suas próprias limitações e alfabetizar na idade certa e fora dela. `Se algumas crianças não se alfabetizarem até os 8 anos, teremos de ter uma escola capaz de alfabetizar aos 9, aos 10, quando for`, diz ela.

Plataforma do letramento

Lançada este ano, a Plataforma do Letramento reúne diversos materiais de apoio a professores, gestores e outros profissionais envolvidos no processo de alfabetização e desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita dos alunos. Na página é possível encontrar entrevistas, reportagens, artigos de especialistas, publicações, indicações de leituras, vídeos, infográficos e outros recursos didáticos sobre o tema. O site conta ainda com discussões, debates e oficinas on-line e de acesso livre para os educadores no seu processo de formulação e planejamento das ações.

Além das discussões pedagógicas, a página debate políticas públicas de letramento e formação de leitores, as expressões culturais relacionadas à leitura e escrita e as novas práticas da cultura digital.

A plataforma, que é uma iniciativa da Fundação Volkswagen com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), também funciona como espaço para a realização dos cursos a distância dos projetos desenvolvidos pelos institutos.

Consulte: www.plataformadoletramento.org.br/




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