Educação de escombros
"O ato de fechar escolas, por mais útil que seja a destinação que se dê ao espaço, tem o sentido de transformar a prática educativa em cacos", afirma Antônio Lisboa
Fonte: O Povo (GO)
O pernambucano Paulo Freire tornou-se referência para várias gerações de Professores, da América Latina à África. Suas memórias da infância, em Recife, certamente o inspiraram a criar o título de seu penúltimo livro, À Sombra desta Mangueira. Da mesma forma, ao denunciar os conceitos de utilitarismo e consumismo no mundo da modernidade pós-neoliberal, o Educador se referiu a frondosas mangueiras que, no Brasil e na África, cederam sua generosa sombra como espaço para a transmissão de conhecimentos para famílias pobres.
Que diria Paulo Freire ao saber que, em Goiás, organismos do Estado, em vez de anunciar, com vivas e holofotes, a abertura de mais espaços para a Educação, põem em marcha uma política de desmanche desses espaços públicos? A Secretaria de Educação estadual, segundo têm noticiado veículos da imprensa local, acabou de fechar uma unidade (Escola Estadual Rui Barbosa) no Setor dos Funcionários, e, sob protestos de Professores, Alunos, pais e outras indignadas pessoas da comunidade, anuncia o desmonte da Escola Estadual Parque Santa Cruz, no bairro do mesmo nome.
Abrigando hoje cerca de 350 Alunos, a Escola do Parque Santa Cruz, após audacioso programa socioeducativo, conseguiu reduzir em praticamente 100% os índices de criminalidade no bairro, segundo a diretora da unidade. Construída há 28 anos, a Escola caminha para um melancólico destino: tornar-se depósito de material da Secretaria Estadual da Saúde.
Não faz um mês, uma das pautas do noticiário local era o anúncio do fechamento da Escola Municipal Andréia Ferreira, no Jardim Helvécia, em Aparecida de Goiânia. Isso, apesar de a unidade de Ensino atender 400 Alunos, que inescapavelmente teriam de buscar Escolas em outros bairros, e de o prédio possuir instalações novas e devidamente aparelhadas. Aparecida de Goiânia contabiliza um histórico de desmonte de unidades de Ensino. Uma das últimas, na Cidade Livre.
O secretário Thiago Peixoto é um político que está na gerência da Educação estadual, não é um Professor de carreira que imprime sua experiência e idealismo ao cargo. Já o secretário de Aparecida de Goiânia, Domingos Pereira, além de sindicalista é Professor (?).
Há de se considerar que produzir escombros de unidades físicas de Ensino não é exclusividade desse espaço geográfico, nem coisa de agora. As ditaduras, assim como governos sem compromisso com a nobre tarefa de educar, há muito recorrem a essa antiga prática. A propósito dessa cultura de ruínas, Paulo Freire teria observado: “Seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de Educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica.”
Ao que parece, Goiás exercita uma espécie de pedagogia da desconstrução. O termo foi apresentado, nos anos 1960, pelo filósofo francês Jacques Derrida como crítica à metafísica ocidental.
Desconstruir equivale a desfazer o que foi construído ou está sendo edificado. Significa desagregar, apagar, destruir, acabar com algo de existência real. Porém, essa desconstrução pode ter reflexos e significados mais amplos, ao se considerar, por exemplo, a Educação um processo de construção da cidadania e os diversos elementos nele envolvidos, a começar pelos Professores, parte relevante.
Com tristeza, Goiânia acabou de assistir a uma greve de Professores da rede municipal, movimento que beirou os 60 dias.
Tem-se assim a desconstrução no seu mais perverso significado: a morte da Educação (o seu desmerecimento, desapreço) pela gradativa e contínua asfixia do descaso, da desassistência. Significa fazer ruir conceitos mínimos de cidadania, de civilidade dentro de um processo de transformação do homem e do mundo, como propôs Paulo Freire.
E, quando esse ato de desmonte parte de quem deveria buscar o seu contrário, adquire ares de horror.
Ao ensinar 300 adultos a ler e a escrever em 45 dias, em 1963, no Rio Grande do Norte, Paulo Freire exercitava plenamente o ato edificador da Educação. Nesse momento, seguramente agradecia as frondosas mangueiras, tão abundantes por todo o Nordeste, por oferecer sua sombra para as primeiras aulas em bancos improvisados, ao relento. Ainda que esse cenário seja apenas simbólico, não retira seu imenso potencial de significados.
O ato de fechar Escolas, por mais útil que seja a destinação que se dê ao espaço, tem o sentido de transformar a prática educativa em cacos, em escombros. Bem o oposto do que propunha Paulo Freire, para quem “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.”
Antônio Lisboa jornalista formado na UFG, pós-graduado em Comunicação Pública na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP)