Um governo social-popular desenvolvimentista
Os governos lula e Dilma foram "Um governo social-popular desenvolvimentista, mãe dos pobres e pai dos ricos"
“Helvecio, a vida supera a ficção”, dizia a dedicatória que Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, escreveu ao diretor de cinema Helvecio Ratton, quando lhe deu um exemplar do livro Batismo de sangue. O diretor aceitou o desafio e em 2006 as salas dos cinemas exibiram pela primeira vez esta arrepiante história da repressão feita pela ditadura militar no Brasil. Os corpos torturados nesta história pertencem a frades dominicanos que, como Frei Betto, lutaram contra a ditadura.
Publicou mais de 50 obras sobre diferentes temas, embora se note sua obsessão pela justiça social e pelos direitos humanos. Para Frei Betto, ser de esquerda significa “optar pelos pobres, indignar-se perante a exclusão social, inconformar-se com todas as formas de injustiça ou, como dizia Bobbio, considerar a desigualdade social uma aberração. Ser de direita é tolerar injustiças, pôr os imperativos do mercado por cima dos direitos humanos, encarar a pobreza como falta incurável, acreditar que existem pessoas e povos superiores aos outros”.
Trabalhou no programa Fome Zero do governo de Luis Inácio Lula da Silva, como explica nesta entrevista, até este ser suprimido para a criação do Bolsa Família, um programa de subsídio direto às famílias.
A entrevista é de Carlos Miguélez Monroy, jornalista espanhol e mexicano, e publicada por HemisferioZero, 13-01-2014. A tradução portuguesa é publicada no blog do jornalista.
Eis a entrevista.
O senhor disse num artigo que é hora de as autoridades brasileiras “deixarem a torre de marfim, largarem os binóculos centrados nas eleições de 2014 e pisarem na realidade…” Por que acha que os políticos estão nessa torre que mencionou?
Porque eles continuam sem dar atenção aos problemas mais graves do país: saúde, educação, saneamento e transporte público. Além disso, o Brasil necessita urgente de uma reforma política. É preciso proibir o financiamento de campanhas eleitorais por empresas e bancos, e extirpar do nosso sistema político resquícios da ditadura militar (1964-1985), como o fato de um estado com 1 milhão de habitantes ter o mesmo número de senadores, 3, que um outro com 40 milhões de habitantes.
A população se rebela contra um governo “de esquerda”. Todo mundo trai suas ideias com o poder?
O governo do PT só pode ser considerado de “esquerda” se comparado ao reacionarismo das forças políticas que lhe fazem oposição. De fato, trata-se de um governo social-popular desenvolvimentista, mãe dos pobres e pai dos ricos.
Nem todos traem suas ideias progressistas ao chegar ao poder. Exemplo disso são Mandela, Evo Morales, Chávez, Fidel, Rafael Correa, Allende e tantos outros. Mas, no Brasil, o PT trocou um projeto de país por um projeto de poder. Manter-se no poder, ainda que com alianças espúrias e concessões contrárias aos próprios princípios originários do PT, passou a ser mais importante do que implementar uma política de transformação de nossas estruturas sociais. Em 10 anos de governo, o PT não promoveu nenhuma reforma estrutural, em especial a mais importante e prometida em seus documentos fundadores – a reforma agrária.
Sua visão do Brasil é tão diferente do discurso oficial e do discurso de muitos brasileiros otimistas pela macroeconomia, pelo desenvolvimento do país e pela luta contra a pobreza…
Minha visão é diferente porque encaro a realidade pela ótica dos oprimidos, e não dos opressores. De fato, o Brasil conheceu grandes avanços em 10 anos de governo do PT: o desemprego praticamente inexiste; houve redução da miséria, da qual 40 milhões de pessoas foram salvas; expansão do crédito; acesso mais fácil aos produtos de primeira necessidade; importação de médicos estrangeiros para áreas populares; valorização do salário mínimo e controle da inflação. Tudo isso trouxe evidentes melhoras à vida do povo brasileiro.
Porém, segundo o IPEA, órgão do governo federal, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é de 175 vezes! (dado de novembro 2013). Ainda há 16 milhões de pessoas na miséria. Os serviços de saúde e o sistema público de educação estão sucateados, são de baixa qualidade. O transporte público é ineficiente. O governo continua injetando demasiado dinheiro no mercado financeiro, favorecendo a ciranda especulativa. O agronegócio desmata a Amazônia e as mineradores poluem os rios sem que o governo tome medidas eficazes de proteção ambiental e às populações indígenas (há cerca de 800 mil indígenas no Brasil).
Na sua opinião, quais seriam as razões de fundo para os problemas graves que assinalava antes?
A falta de um modelo alternativo ao neoliberalismo e ao modelo capitalista desenvolvimentista-consumista. Por outro lado, o governo é refém das classes dominantes e, embora seja resultado dos movimentos sociais, tem pouco diálogo com suas lideranças.
O senhor trabalhou no programa Fome Zero do governo de Lula. Como avalia esse programa e seu trabalho ali? Por que o deixou?
Deixei porque o Fome Zero tinha caráter emancipatório e o governo decidiu erradicá-lo para implantar o Bolsa Família, que tem caráter compensatório. Família que ingressava no Fome Zero estaria em condições de gerar a própria renda em dois ou três anos. As famílias do Bolsa Família perpetuam sua dependência ao governo federal, sem porta de saída. Por outro lado, o Fome Zero era administrado pelos Comitês Gestores, integrados por lideranças populares do município beneficiado. O Bolsa Família é administrado pelos prefeitos, que o transformam em moeda eleitoral…Tudo isso descrevo em meu livro “Calendário do Poder” (editora Rocco).
O senhor acha que a realização da Copa do Mundo ajudará o desenvolvimento do Brasil? Acha compatível o dispêndio de milhões de reais com a melhora da vida das pessoas? Os despejos são efeitos colaterais necessários para esse desenvolvimento, como dizem algumas pessoas?
Nunca imaginei que o governo brasileiro se tornasse tão subserviente aos interesses pecuniários da Fifa. Os estádios para a Copa estão sendo construídos precariamente (vide os constantes desabamentos e mortes de operários); as obras são superfaturadas (previstas inicialmente em 22 bilhões de reais, já atingem o valor de 30 bilhões de reais); a lei seca nos estádios foi revogada por pressão das cervejarias aliadas à Fifa; os ingressos são muito caros e, devido à crise financeira na Europa, o número de torcedores estrangeiros na Copa deve ser muito menor do que o previsto. Assim, não duvido que ocorram manifestações populares durante a Copa, como aconteceu durante a Copa das Confederações, em junho de 2013.
Como o senhor avalia a maneira que os meios de comunicação falam sobre o Brasil?
Os grandes meios miram o Brasil com preconceito, como se os índices da Bolsa de Valores e do PIB traduzissem a nossa realidade. E julgam que somos apenas o país do futebol, do carnaval e das mulatas. Mas isso é culpa do nosso governo, que não incentiva o turismo ecológico, cultural e científico. Mesmo o brasileiro rico prefere levar os filhos à Disneylândia do que à Amazônia… Nossas favelas são pintadas e não saneadas.
Existem propostas de reduzir a idade penal dos criminosos no Brasil. O senhor acha que é uma medida efetiva para reduzir a criminalidade? Em sua opinião, que outras medidas ajudariam a reduzir a criminalidade nas ruas do Brasil?
Em nenhum país do mundo – vide os EUA – a redução da maioridade penal ou pena de morte significou redução da criminalidade. Esta se reduz com educação básica de qualidade, creches para crianças de 0 a 6 anos, tempo integral na escola etc.
O senhor encontra diferenças entre a política de Lula e a de Dilma Rousseff?
Lula dialogava mais com os movimentos sociais e promoveu mais assentamentos e desapropriações de terras para efeito de reforma agrária do que Dilma. Mas na política econômica não há diferenças.
Que razões o senhor tem para ser otimista quanto ao futuro do Brasil?
Tenho um princípio: Guardar o pessimismo para dias melhores… Acredito na capacidade de mobilização do povo brasileiro, sobretudo dos mais jovens, e espero que nas eleições de 2014 possamos mudar o perfil conservador do Congresso Nacional e reeleger Dilma presidente, pois é melhor ela do que qualquer outro candidato com possibilidade. E sei que, se o papa é argentino, Deus é brasileiro!