O desejo de aprender

O desejo de aprender

Escrito por Tania Pescarini

A subjetividade no processo de aprendizagem e a importância de se combater a falta de sede por conhecimento, como processo semelhante à desnutrição, são aspectos destacados pela psicopedagoga argentina Alicia Fernandez. Ela esteve em São Paulo para o Congresso Andea 2013 – I Congresso Internacional e III Congresso Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem, no fim de agosto, onde conversou com a Profissão Mestre. Autora de vários livros publicados no Brasil e no exterior, dentre eles A inteligência aprisionada e A mulher escondida na professora (Ed. Artmed), Alicia fala na entrevista sobre os sujeitos envolvidos na educação – alunos e professores –, e debate temas controversos como a prescrição de medicamentos para combater a falta de atenção em sala de aula. Além de escritora, ela trabalha em parceria com universidades de vários países e sua pesquisa vem contribuindo para o crescimento da psicopedagogia no Brasil.

Profissão Mestre: Em que momento de sua trajetória profissional você decidiu estudar a subjetividade no processo da educação?

Alicia: É um processo muito longo, vem de minha adolescência. Antes mesmo de entrar na faculdade, eu já me interessava pelas dores que poderiam ser resolvidas com uma atenção maior às crianças marginalizadas, às crianças excluídas. Não sabia, então, como ou o que fazer. Na Argentina, há a graduação em Psicopedagogia e, aos 17 anos, ingressei no curso. Trabalhei também muito tempo como orientadora educacional em escolas públicas em regiões desfavorecidas. E foi aí que percebi que alunos são crianças. Parece uma redundância, mas às vezes se esquece que alunos são crianças, são pessoas. Não se pode dirigir-se a eles como se fossem apenas cérebros. O aprender tem a ver com um sujeito que tem desejos, emoções, imaginação, sonhos, projetos. É a esse sujeito que temos de nos dirigir. A mesma coisa [ressalto para] os professores, a professora. A professora é um ensinante, o que não é o mesmo que um ensinador. Isso significa que o professor tem que ser alguém que acredita que seus alunos podem aprender. Assim, irá se responsabilizar em ensinar e encontrará alegria e autoria para ensinar.

Profissão Mestre: Como foi sua experiência como educadora em situações socioeconômicas desfavorecidas?

Alicia: Comecei a carreira trabalhando como orientadora educacional em escolas de regiões muito desfavorecidas da grande Buenos Aires. Já faz muito tempo. Foi, talvez, minha grande oportunidade profissional. Estava na época na universidade, aprendendo a teoria para, de repente, deparar-me com a prática. Ao mesmo tempo em que estudava a teoria, as técnicas, os recursos metodológicos, os chamados testes, eu vivenciava o dia a dia das escolas. Havia escolas com oito salas de primeira série e apenas uma sala de sétima série. Esse fato suscitou em mim um questionamento constante: Como pode esses alunos não terem o desejo de aprender? Não conseguia acreditar que deixassem a escola porque não tinham desejo de aprender. Porque o desejo de aprender é como a fome. Não se pode falar que alguém não se alimenta apenas porque não tem fome. Se uma pessoa não se alimenta, a causa pode ser desnutrição e há que ter nutrição. Claro, há também a anorexia, mas essa situação representa uma minoria. Há menos gente que não se alimenta devido à anorexia. O mesmo se passa com o aprendizado.

Profissão Mestre: Trata-se, então, de um processo que leva à falta do desejo de aprender?

Alicia: É um processo, mas também é um ambiente. Tem a ver com o modo como as pessoas se sentem, o modo como somos tratados e considerados pelos outros e a forma que vamos nos constituir como sujeitos humanos.

Profissão Mestre: A senhora defende a ideia de que a formação do professor deve abranger o profissional, o sujeito humano e incluir a subjetividade. Como se dá essa formação?

Alicia: Está havendo mudanças no processo de formação de professores, mas essas mudanças não acompanham a necessidade e a urgência do que acontece em sala de aula. É preciso que ocorram mudanças permanentes, que se abram espaços para o debate na educação. É preciso investir na formação permanente do professor, incluindo os que estão em atividade. Deveriam ser abertos espaços para a discussão de temas caros à educação, para o debate, para analisar e resignificar o modo de aprender dos professores. Pois para resignificar o processo de aprendizagem é necessário que o professor resignifique seu modo de ensinar e seu próprio modo de aprender também como professor. Ninguém pode resignificar seu modo de ensinar sem antes mudar seu próprio processo de aprendizagem, seu modo de aprender. Meu trabalho é com a resignificação do processo de aprendizagem dos professores. Meu esforço é para que eles reconheçam a si mesmos, para que possam trabalhar com seus temores, com a representação que têm do que é aprender. Hoje, mais do que nunca, precisa-se disso. Em meio a essa sociedade neoliberal, consumista, pautada em um imaginário coletivo moldado pelos grandes meios, muitos acreditam que para aprender é preciso medicar. Hoje há uma patologização, uma psicopatologização da saúde. O professor perde sua riqueza, seu saber como ensinante, a possibilidade de olhar nos olhos dos outros.

Profissão Mestre: Como a senhora avalia essa questão da “febre” do diagnóstico de hiperatividade e da prescrição de medicamentos, como a ritalina, para as crianças?

Alicia: Essa é uma pergunta muito importante. Meu último livro traduzido para o português chama-se A atenção aprisionada [Penso Editora]. O livro trata de duas questões: de um lado, analisamos os modelos pelos quais se instaura isso a que você chama febre, que é como se fosse uma epidemia de hiperatividade e desatenção. Não é exatamente um problema exclusivo das escolas. Vivemos em uma sociedade hiperativa e desatenta, que espelha nas crianças e nos adolescentes o que ela mesma produz. Há tempos que estamos trabalhando; temos pesquisas em sete países, dentre eles o Brasil e também a Argentina. Nesses países pesquisados, que incluem Uruguai, Cuba, Portugal, Espanha e Inglaterra, além dos dois primeiros mencionados, procuramos analisar como se constrói a capacidade de prestar atenção, pois não podemos falar em déficit de alguma coisa ainda não definida. Ou seja, como falar em déficit de atenção sem antes definir o que é atenção? O que procuramos saber é quando e como se constrói a capacidade, qual a influência da família. Trabalho em meu livro quais são os ambientes familiares que possibilitam o desenvolvimento da capacidade de prestar atenção, quais os ambientes educacionais que possibilitam a capacidade de prestar atenção. Eu mesma me identifico com uma situação de hiperatividade. Porque para as crianças e os adolescentes, principalmente para as crianças, o modo de enfrentar a depressão passa, muitas vezes, pela hiperatividade. Essa condição pode ser um sintoma de que há algo na criança que não se reconhece, não se compreende, não se está oferecendo a ela possibilidade de falar, de dialogar, de relatar, de perguntar, de brincar.

Profissão Mestre: Em sua opinião, o déficit de atenção seria sintomático de uma sociedade que medica toda espécie de desvio de comportamento?

Alicia: Sem dúvida é isso o que está acontecendo agora. Eu, como psicopedagoga, e nós, psicopedagogos, temos a obrigação e o dever ético de poder dar nossa contribuição. Denunciar a medicalização da saúde porque é necessário encontrar, primeiro, a causa desse mal-estar, em vez de tapar o sol com a peneira, tentar ocultar. É nosso dever social. Por exemplo, dizem que distração não é o mesmo que estar distraído. A pessoa pode estar desatenta, criança ou adulto, por múltiplas causas. A criança na escola pode estar desatenta porque é muito rápida, muito veloz, aprende com muita facilidade. A escola fica, para essa criança, entediante. Ou o aluno pode estar desatento por um problema grave, por estar sendo violentado [por exemplo]. Muitas vezes, as meninas que são diagnosticadas como desatentas são garotas que estão sofrendo abuso [sexual]. Não podemos rotular, simplesmente, tudo como desatenção, pois as causas são múltiplas. É preciso que haja um trabalho de investigação aprofundado. Temos que entender que a escola pode zelar pela saúde, mas, para isso, é preciso trabalhar com os professores. Os professores são promotores de saúde desde que sua formação para tal seja adequada. A formação do docente vai além do conteúdo (que deve ser passado em sala de aula), pois o docente não é meramente um transmissor de conteúdo. Ele é, principalmente, um agente que está trabalhando na formação de seres humanos.

Profissão Mestre: O trabalho do educador ultrapassa a função acadêmica. Para caminhar entre a fronteira da formação acadêmica e humana, como o educador pode ampliar seu processo de formação?

Alicia: Temos que promover – quando digo nós, refiro-me a nós, psicopedagogos, e a instituições públicas, como secretarias e os próprios ministérios da Educação –, espaços de reflexão para os professores. E esses espaços, que devem existir em diversos países, devem promover encontros pautados pelo desejo, por parte dos professores, de melhorar. O que observo em vários países é que existe esse desejo; muitos professores querem melhorar a educação, mas muitos estão sozinhos, não contam com acompanhamento. Então boa parte dessa motivação maravilhosa se perde e dá lugar ao desânimo, à frustração, à queixa. É preciso que os professores reconheçam a importância que eles têm como pessoas, a possibilidade que têm de transformar, de criar espaços de transformação.

Profissão Mestre: Como inserir o professor e a escola nessa sociedade desatenta e veloz? O processo de formação do ser humano parece deslocado?

Alicia: Mais do que deslocado, o professor não é alheio a esse movimento da sociedade atual, a essa vertiginosidade de consumismo, de priorizar o custo, de não dar conta dos processos. Dentro disso, é claro que se atribui um grande valor, lamentavelmente, à velocidade. Então escuto dos profissionais coisas como “Vou fazer tal pós-graduação porque é mais breve. Em poucos meses, tenho a pós-graduação”. Eu digo: “Não, o mais veloz não é o melhor, geralmente é o pior”. Ou seja, temos que valorizar a lentidão, os processos humanos de aprendizagem que são lentos, demorados.

Profissão Mestre: Dentro desse contexto de valorização de processos lentos, como resignificar a aprendizagem?

Alicia: É essa a grande riqueza dos humanos: podemos constantemente aprender. Não é verdade que aprendemos tudo de uma vez na infância. Estamos constantemente mudando e aprendendo como seres humanos. Resignificar não significa esquecer o passado, pelo contrário. Uso, aqui, a metáfora das cicatrizes. As cicatrizes de um corpo não são feridas, mas as marcas de nossa capacidade de curar-nos. Resignificar tem a ver com essas cicatrizes, com deixá-las menos doloridas.

Profissão Mestre: Quais são, hoje, as principais dificuldades que afetam o aprendizado?

Alicia: O que posso dizer parte do que ouço de professores e professoras, dos problemas que eles trazem a mim. Meu palpite é de que a principal dificuldade é justamente o desânimo, a falta de entusiasmo. Mas sei que a falta de entusiasmo não é própria dos alunos, e sim um sintoma da sociedade, que não oferece um ambiente onde encontremos possibilidades para nos modificar e modificar o mundo à nossa volta. Os grandes meios de comunicação, em geral, são meios de não comunicação. Liga-se a televisão e o que se vê é um excesso de repetição, de informações descontextualizadas, sem interpretação, sem análise.

Profissão Mestre: Como o professor pode despertar no aluno o desejo de conhecimento?

Alicia: Como o professor pode despertar o desejo de conhecimento no aluno? Nutrindo o professor ou a professora. Se você é um professor entusiasta, que se deixa tocar pela novidade, pelo novo, uma pessoa que se faz perguntas, que se interessa por mudanças, isso será transmitido aos alunos. Não se pode obrigar o outro a aprender. Mas se você é alguém que gosta de aprender, isso será transmitido aos outros. 

 

Entrevista publicada na edição de janeiro de 2014.

http://www.profissaomestre.com.br/index.php/reportagens/entrevistas/596-o-desejo-de-aprender




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