Mudança de relação entre professor e aluno
"Aquele que ensina deve salvar nossa capacidade humana de pensar", diz psicanalista sobre a figura do professor
Marcelo Ricardo Pereira ministra palestra nesta quarta na Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Para o psicanalista Marcelo Ricardo Pereira, o professor é uma peça-chave no processo de aprendizagem: ele deve ser "um guia, que abra a picada, mostre caminhos, que dê o primeiro passo para que o aluno possa dar o seguinte".
Nesta quarta-feira à noite, o especialista, que é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutor em psicologia e educação, estará na sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Rua Faria Santos, 258, no bairro Petrópolis) para uma conversa, aberta ao público, sobre a autoridade do professor.
O evento é uma iniciativa do Instituto APPOA. Pereira é autor dos livros Acabou a Autoridade? (editora Fino Traço), A Impostura do Mestre (Fino Traço) e O Avesso do Modelo (Vozes). Confira a entrevista concedida por e-mail a Zero Hora.
Zero Hora — Atualmente, especialistas reforçam a ideia de que os estudantes que precisam ter autonomia, construir o conhecimento, pesquisar, saber perguntar. E a figura do professor é cada vez mais entendida como um mediador. Qual o papel da autoridade nessas novas relações? Acabou a autoridade ou houve uma mudança de relação entre professor e aluno?
Marcelo Ricardo Pereira — Não me filio propriamente a correntes de formação de professores que defendem o docente como mediador, pois não considero que ele seja apenas um mediador ou um facilitador. Ora, o que se espera de um professor, de um professor como mestre? Que ele seja um guia, que abra a picada, mostre caminhos, que dê o primeiro passo para que o aluno possa dar o seguinte. Aquele que ensina, que exerce a função de mestre, deve salvar nossa capacidade humana de pensar, de produzir saberes, não tanto com base nas boas técnicas pedagógicas, que inflacionam mais frustrações do que conquistas, mas muito mais com base na sua experiência e arte de viver. A autoridade do professor está não em se fazer como aquele que detém o saber categórico, o código inviolável de uma moral, mas como aquele que ativa o desejo de saber por também desejá-lo. Isso produz pensamento. De outro modo, se o professor se põe como o grande sabedor, como o condutor de massas acéfalas, o que ele produz é o vazio do saber pelo silêncio do desejo. E isso lhe deixa apenas a um passo da desautorização.
ZH — Brasil saltou quantitativamente nas estatísticas de educação nos últimos anos, mas ainda falta incrementar a qualidade, como comprovam avaliações como o Pisa. Qual o papel da autoridade do professor nesse contexto?
Pereira — Não temos dúvidas de que demos acesso, democratizamos a chegada às escolas, mas ainda sem a qualidade necessária. Nosso modelo de república ainda não conseguiu equacionar a vinda das massas _ esse contingente de diferentes _ às instituições escolares. Não basta apenas decretar a universalidade do ensino, é preciso tecer condições para isso e debater a questão da acessibilidade, fato que vem sendo paulatinamente realizado ou experimentado, sobretudo, pelos organismos públicos. Os índices avaliativos — e nós já os temos em demasia — devem ser interpretados, contextualizados, e não apenas tomados como fim. O próprio Pisa aponta para uma certa estabilização no salto que demos nos últimos tempos. Dificilmente conseguiremos avançar em índices como este sem que o professor seja recolocado no epicentro do debate: repensar suas condições de trabalho, sua remuneração, suas relações com o saber e a formação são essenciais, mas, sobremaneira, precisamos auxiliar o professor a atuar em situações de incerteza e descontinuidades, a dar respostas mais ou menos rápidas mediante tais situações, a lidar com a apatia do alunado sem se tornar também apático e a entender formas do "mal-estar na civilização" — teorizadas por Freud nos anos 20 — que continuam a assolar o mundo de maneira geral, inclusive o campo pedagógico.
ZH — O acesso às informações na internet teve um papel definitivo no redesenho da função do professor?
Pereira — Em nossa pesquisa, uma professora do Ensino Fundamental revela: "me sinto uma analfabeta digital, meu sobrinho de sete anos me dá aula sobre internet... no meu cotidiano pedagógico há falta de limite, de vontade de estudar mesmo; a escola não é mais interessante. A internet é melhor!". Então, não basta dizer que a internet é somente uma ferramenta e, se bem usada, pode ser de muita valia para o professor. É muito mais do que isso. A internet mudou nossa própria relação com o saber. Porém, o professor não tem muita condição de estar permanentemente atualizado sobre os avanços das ciências de seu tempo e não pode competir com a atratividade dos meios eletrônicos. Isso pode contribuir para a perda de prestígio profissional e da valorização social da função. A negação do seu preparo profissional, a concepção de que a função de ensinar e transmitir conhecimentos poderiam ser realizados por outros recursos tecnológicos, como também de que a educação poderia prescindir dos professores, podem levar a um desânimo funcional ou, mais uma vez, ao que denominamos acima de "mal-estar".
ZH — Muito se fala sobre a importância das novas tecnologias no aprendizado contemporâneo. Qual a sua opinião? Quais os limites e as possibilidades?
Pereira — Como esclareço em Acabou a Autoridade?, o surgimento de uma sociedade aceleradamente tecnológica, bastante dominada pelos sujeitos mais jovens, não parece ser bem absorvida pelos que os guiam — incluindo os professores. Em geral, eles não foram formados para tal sociedade. Sua experiência como crianças e jovens que foram um dia não são as mesmas que as novas gerações estão vivendo. Mas, na verdade, uma sociedade hipermoderna como a nossa parece apenas agravar e sentenciar a agonia de um processo que se arrasta provavelmente desde fins do século 19, passando pelos anos 1920 e 1960 do século passado, quando os valores estáveis e repressores da tradição começaram a ser decisivamente postos sob suspeita. Interrogou-se a política, as instituições — inclusive a família triangular burguesa —, as crenças, o higienismo, a sexualidade, o domínio masculino, além, é claro, dos modos de fazer e de reproduzir essa tradição. O organismo escolar foi um desses modos interrogados na contemporaneidade, pois, por mais que tenha resistido, ele conta hoje as avarias de um alicerce fortemente abalado. Como se faz notar, não foram apenas as novas tecnologias e a internet, entronizadas pelos mais jovens, que invadiram o território da escola e descentraram seus valores, mas junto a isso veio também uma massa de diferentes exigindo incondicional reconhecimento e revisão de modos mais estáveis da tradição. Isso mostra que a questão de fundo é muito mais profunda do que uma simples alteração da função docente propiciada pelas novas tecnologias.
ZH — Como deve ser o conceito de autoridade para a escola do século 21?
Pereira — A autoridade docente não é algo fácil de ser manejado. É uma arte, eu diria. Assegurada as condições mínimas para exercê-la, eu arriscaria dizer duas palavras-chave que dariam outro sentido a essa função: desejo e inventividade. Sem elas não há como admitir a contingência radical da experiência de ensinar, muito menos qualquer autoridade. Todo professor sabe (ou deveria saber) que sua experiência é singular e é nela que terá que escrever o seu nome. Isso me faz lembrar de uma frase de Deleuze de que gosto muito e que a reproduzo em A Impostura do Mestre. Ela não responde à pergunta, mas nos oferece uma boa bússola: "nossos mestres não são apenas os professores públicos, ainda que tenhamos uma grande necessidade deles; nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar maneiras de pensar que correspondam à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas dificuldades como aos nossos entusiasmos difusos". É isso.
PROGRAME-SE
O que: Acabou a Autoridade?, encontro com Marcelo Ricardo Pereira
Quando: 15 de janeiro (quarta-feira)
Horário: 20h30min
Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Rua Faria Santos, 258 , bairro Petrópolis)
Quanto: gratuito, por ordem de chegada
ZERO HORA