Cinquenta anos do golpe

Cinquenta anos do golpe

1964 – e lá se foram já cinquenta anos!

1964 - e lá se foram já cinquenta anos!

Muito mais gente apoiou o Golpe de 1964 do que se quis admitir depois, por vários setores. Por quê? Temos cinquenta anos de distância dele, já estamos em condições de responder a essa pergunta sem os chiliques de grupelhos de direita e de esquerda?

Em debate no programa Roda Viva, sobre o Gracias a la Vida de Cid Benjamin, o jornalista do Estadão José Neumanne Pinto elogiou o livro, mas de uma maneira sentenciosa, de cara amarradíssima. Ao considerar que a “Revolução de 1964” teve apoio popular (uma vez que a classe média também é “povo”), o livro de Benjamin ganhou de Neumanne a frase “bem, isso já é um avanço”.

Udenista de pai e mãe e, portanto, favorável geneticamente ao Golpe, Neumanne quis ali no Roda Viva dizer mais do que algo como “a esquerda está reconhecendo que do outro lado também havia gente”. Eu entendi perfeitamente o que ele tinha em mente. A ideia básica de vários grupos de jornalistas radicalmente de direita, de uns tempos para cá, é dar combate a um fantasma: a “versão da esquerda” a respeito do ocorrido em 1964, e que estaria impregnada nos livros didáticos do país. Nessa “versão da esquerda”, o Golpe de 1964 seria apresentado como não tendo apoio popular algum.

Ora, isso que a direita vem fazendo, nada é senão um tipo de “revisionismo histórico”, que alguns levam adiante com boa intenção, mas que outros sustentam por meio de má fé, cabeça torta, pouca cultura para a compreensão historiográfica e, enfim, falta de leitura de teses vindas de pesquisas historiográficas sobre o assunto, e que já existem faz tempo.

Digo que a tal versão combatida pela direita é um fantasma porque entre a historiografia didática hegemônica nunca houve um autor renomado, bastante utilizado, que negou a existência das chamadas “marchas da família”, feitas em São Paulo e Rio principalmente, com um número nada pequeno de participantes. Ou seja, o que os jornalistas de direita têm se dedicado a combater nunca existiu, não nos livros mais utilizados no campo escolar e universitário. O inverso sim ocorreu, mas, também, não em grande escala. Explico.

Durante algum tempo, a bibliografia escolar criada sob a égide do Regime Militar, divulgou uma versão do Golpe de 1964, autodenominado “Revolução” ou até mesmo “Redentora” (nome este que a direita deixou de usar porque se transformou em algo jocoso), que apenas repetia, com algumas pequenas variações, um artigo da Seleções do Reader’s Digest (uma publicação mundial, de divulgação do American Way of Life de estilo liberal conservador, infalivelmente presente nos lares de classe média do Ocidente nos anos cinquenta e sessenta) chamado “A nação que se salvou a si mesma” (Arquivo). Não digo que o texto, de novembro o de 1964, contava uma mentira. No entanto, uma coisa é certa, sua visão refletia de modo exagerado e até caricaturesco o clima da Guerra Fria. Nesse artigo, o Brasil é mostrado como tendo estado à beira do comunismo, e então viu o seu povo rechaçar o governo que estaria encaminhando o país para uma espécie de “República Sindicalista”. Muitos textos desse tipo foram produzidos na época, falando de outras realidades e outros países. Sabemos também o quanto os regimes ocidentais, quando governados pela direita, quiseram calar suas populações aterrorizando-as com o perigo chamado “comunismo”, não a utopia marxista, é claro, mas a “iminente invasão russa”.

Aliás, diga-se de passagem, o anticomunismo foi nos anos cinquenta e sessenta uma máquina de destruição da democracia até mais que o próprio comunismo, mais ou menos como o fenômeno de “guerra contra o terrorismo” da Era George Bush (Hollywood reagiu a isso e ainda está reagindo, com vários filmes em que mostram as liberdades individuais de cunho liberal-democráticas sendo coibidas, e isso não só nos Estados Unidos, em nome da derrota do inimigo externo que, agora, pode estar infiltrado no Ocidente em todo e qualquer lugar – e está –, como estavam os agentes da KGB).

Durante certa época da Ditadura Militar, as disciplinas História e Geografia do ensino médio foram bombardeadas por variações deste texto da Seleções, e, claro, os professores melhor formados resistiram a tal manobra ideológica. Mas o Regime Militar criou as disciplinas próprias de doutrinação (EMC e OSPB), e nestas, não raro, o texto publicado na Seleções foi, por muitos professores, indicado como a referência principal de pesquisa para os alunos, quando estes tivessem que saber sobre a “Revolução de 1964”.

No entanto, o Regime Militar brasileiro, que durou de 1964 até 1985, não foi um período de continuidade, como se pode pensar olhando para o seu nome. Ele teve fases, e tais fases precisam ser consideradas para que possamos entender como caminharam nossas leituras a respeito do conteúdo do “31 de Março de 1964”. Por exemplo, sempre é bom lembrar que a agitação política não acabou por meio de 1964. Passado os primeiros anos, logo ela foi intensificada à medida que o “31 de Março” começou a se mostrar antes o início de uma simples ditadura que uma breve intervenção cirúrgica contra a “República Sindicalista de Jango”.

Com a decretação do AI-5, no final de 1968, a censura à imprensa recrudesceu e o chamado Sistema (autodenominado “S”), que era o núcleo “linha dura” interno às forças militares que passaram crescentemente a dominar os destinos da “Revolução de 1964”, optou por uma forma, quanto à doutrinação, que lhe pareceu melhor: não falar mais de combate ao comunismo e de política em geral, e optar pela despolitização de vez das eleições municiais interioranas (as únicas que haviam sobrado). Isso nada foi senão um sintoma sobre a vida interna do “Sistema”: a regra era deixar de lado a ideia de Castelo Branco de construção de uma democracia bipartidária de tipo americana. Castelo queria uma democracia americana, sim, mas puramente formal, isto é, feita em farmácia de manipulação e não por tradição histórica. Talvez ele nunca tenha conseguido entender a não razoabilidade dessa sua ideia, e isso por conta de sua própria ingenuidade política ou, melhor dizendo, sua falta de compreensão sociológica da vida humana. Homens acostumados a fazer da política um apêndice da guerra, têm grande dificuldade de imaginar que o modelo de democracia que eles querem ver realizada não pode ser feita por meio das armas e, depois, do exército transformado em polícia.

Bem, mas em 1968, muitos dos líderes civis da “Revolução de 1964” já tinham tido seus direitos políticos cassados. Vários deles, inclusive os mais conservadores, tinham entrado para a “Frente Ampla” (uma organização que visava reencaminhar o Brasil para a democracia, revertendo os efeitos ditatoriais do Golpe de 64, e que abarcava arqui-inimigos como Jango e Carlos Lacerda). Mas a própria “Frente Ampla” foi declarada ilegal no início de 1968, e nos anos subsequentes três grandes líderes políticos do país faleceram – Jango, Juscelino e Lacerda. Assim, o “Sistema” ganhou um segundo fôlego, o que foi acentuado pelo chamado “milagre econômico”, produzido pela propaganda de Delfim Neto no exterior e por medidas de favorecimento do consumo interno da classe média, e não por real melhoria do país.

Nesse segundo período do Regime Militar, iniciado em 1969, mesmo sendo os anos em que mais se cometeu violência do estado contra a sociedade, especialmente durante o governo do General Médici, a doutrinação não teve os efeitos esperados. As próprias disciplinas OSPB e EMC foram um tiro pela culatra, pois, de alguma forma, repunham a discussão da organização política do Brasil. Até os professores mais conservadores, ligados a escritores juristas francamente de direita, passaram a ser vistos pelo “Sistema” como “subversivos”, uma vez que, enfim, para falar de qualquer coisa digna, tinham de falar sobre um “Estado de Direito”. E este não existia mais. A face mais obscura e estúpida das Forças Armadas passou a controlar o “Sistema”. Nem mesmo artigos como aquela da Seleções eram incentivados. Era melhor falar do “31 de Março de 1964” como “data cívica” no estilo tradicional, dia de cantar o Hino Nacional, hastear a bandeira e pronto! Que todos fossem curtir o feriado.

Transformar datas históricas em “datas cívicas” e, então, comemorar tal feito como um “feriado religioso” qualquer, é a melhor tática de satisfazer gregos e troianos. Os mais velhos eram lembrados da seguinte verdade: “fizemos a Revolução de 1964 e dela não vamos abrir mão”. Os mais novos eram ensinados sobre outra verdade: “é dia de comemorar uma data cívica, cantem como robôs o Hino Nacional e livrem-se do trabalho e das aulas – vão prá praia”. Uma ditadura envergonhada de se si mesma não tem como comemorar feriados dela própria senão dessa maneira.

Assim, após 1968, a questão do Regime Militar não era mais sobre combater ou não o comunismo (e as forças oposicionistas quaisquer) por meio de propaganda, aulas, livros etc., era uma questão de guerra interna, “a guerra suja”, feita por grupos militares e, também, por paramilitares associados, contra uma guerrilha urbana e rural que nem sempre era real (aliás, se em uma democracia há gente perseguida injustamente, imagine em uma ditadura, o quanto não se aproveitou da acusação de “comunista” para se colocar de lado concorrentes em empregos etc.). Em termos de discussão verbal, optou-se pela sua total negativa, pela não discussão, pelo silêncio, pela despolitização. Não à toa, especialmente com Paulo Freire (mesmo no exílio), as forças de resistência pararam de falar em política de esquerda ou mesmo de democracia, e se voltaram para o termo “politização”. “Tudo é político”, diziam, exatamente para recuperar o prestígio da política. A política despolitizada imposta pelo Regime Militar havia tornado muitos setores não mais desgostosos a respeito de direita e esquerda, mas desgostosos da política em geral e até mesmo com dificuldade de entender o noticiário da TV quando este, falando do exterior, mencionava o termo “direita” e “esquerda”. Em pouco tempo, uma geração inteira de intelectuais começou a se ver obrigada a aderir ao lema “tudo é político” como uma tábua de salvação, como que tentando fazer os jovens não desgostarem da política ou temerem a política.

Foi nessa fase que muitos intelectuais começaram a falar que o problema não era o de saber quem tinha participado a favor ou contra o Golpe de 1964, mas, sim, saber que o resultado do Golpe havia sido o afastamento de todos os setores populares, inclusive e principalmente as classes médias (que tinham sido favoráveis ao Golpe), da política e, portanto, do controle do país.

É claro que essa mentalidade influenciou a leitura dos livros de história. Não é que a historiografia foi alterada. O que ganhou alteração foi a ênfase dos intelectuais, principalmente os realmente liberais e os de esquerda, quanto à afirmação de que 1964 não havia sido um ano de uma “revolução popular”. ) 31 de Março de 1964 não havia sido feito pelo povo por uma razão, que passou ser plausível dizer, e que tinha lá sua verdade: em pouco tempo até mesmo os que dela participaram foram cassados, e mesmo a “oposição permitida” passou a ter seus passos cerceados a ponto do Congresso ter se transformado em um órgão decorativo, e, enfim, todos os setores sociais estavam crescentemente sendo alijados do poder. Essa leitura com ênfase na ideia de um Golpe de 1964 como um instrumento nada popular foi ganhando as pessoas paulatinamente, e isso se acelerou no final dos anos setenta, quando do movimento pela Anistia Política, finalmente declarada em 1979.

Nunca se escreveu, nos livros escolares, que o Golpe de 1964 foi uma “quartelada”, mas a ênfase quanto o Golpe ter sido um pecado mortal contra a democracia liberal e, portanto, contra “o povo”, ganhou força. Afinal, todo o clima psicossocial a respeito do Regime Militar foi se alterando no decorrer da década de setenta. Aos poucos, muitos políticos que haviam participado do “31 de Março de 1964” quiseram apagar isso de suas biografias (como Covas, por exemplo, cuja esposa participou das “Marchas pela Família”), ou receberam apoio de setores da imprensa no sentido de não serem incluídos entre os que favoreceram o Golpe (como o próprio Juscelino, então já falescido!). Quando da época do Governo Figueiredo, até lideranças reacionárias estavam dispostas a dizer em palanques frases radicalmente contrárias ao que teria sido o “caráter popular de 1964”.

2014 é o ano de cinquentenário do Golpe de 1964. A minha geração era criança nessa época. Tornou-se jovem nos anos setenta e, entre nós, alguns combateram a Ditadura e perderam a vida nisso. Não estou falando das coisas que ocorreram comigo, salvo pela sorte e pelo meu Anjo da Guarda. Falo em perder a vida pelo país – perde a vida!

Ao mesmo tempo, hoje vivemos não sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, a oposição “iluminista” ao Golpe de 1964, nem mais vivemos sob a presidência de Lula, um operário politizado tardiamente e líder de greves nos anos oitenta. Nós vivemos sob o governo de uma mulher – uma mulher que pertenceu aos primeiros grupos que aderiram à luta armada contra o Regime Militar, uma mulher que foi presa, torturada, e que as fotos da época mostram completamente inteira, ao vinte anos, diante de um tribunal militar com fardados escondendo o rosto – de vergonha, de medo, de falta de caráter. É natural que tenhamos agora, principalmente agora, uma tentativa de “revisionismo” historiográfico. Todavia, independentemente de gostarmos ou não de FHC, Lula e Dilma, e também sem julgar se esses governos têm acertado ou não (bem, dois deles foram reeleitos!), é preciso que exista o mínimo de honestidade intelectual para aprender uma única coisa: não há uma versão historiográfica hegemônica no país que afirmou que o Golpe de 1964 foi feito “sem povo”. Não adianta querer combater livros onde o que se diz que está escrito não está escrito.

Finalizando. Hoje, se é possível ainda falar que o Golpe de 1964 foi contra o comunismo (admitindo que Brizola, cunhado de Jango e homem do poder, tivesse uma tendência mais à esquerda do que a que revelou depois, quando voltou anistiado e governou o Rio de Janeiro), não há hoje como mostrar tal feito de Março como o que veio para derrotar uma real revolução comunista em curso no Brasil. A retórica do “31 de Março” assim se fez. O quanto os golpistas acreditaram na própria retórica, é discutível. É mais fácil, hoje, como sempre foi, mostrar que em termos reais nada havia de realmente de “revolução comunista” no Brasil. A não resistência imediata ao Golpe, ou seja, a derrota de Jango e Brizola, sempre foi a prova da inexistência de qualquer força de esquerda organizada militarmente no Brasil. Caso antes de 1964 houvesse alguma máquina armada em curso, desenvolvendo algum tipo de guerrilha ou preparada para tal, antes de 1964, aqui no Brasil, o Primeiro de Abril de 1964 teria sido diferente. Aliás, a fama do Primeiro de Abril como o Dia da Mentira teria acabado de vez, ou se intensificado de vez.

© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo

http://ghiraldelli.pro.br/1964-e-la-se-foram-ja-cinquenta-anos/




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