Entre os muros da escola
Entre os muros da escola
Estudar, vigiar e punir 'Entre os muros da escola'
Flávio Ricardo Vassoler
Início do ano letivo Entre os muros da escola (2008), filme dirigido por Laurent Cantet. Título nada gratuito: é preciso estudar, vigiar e punir. Em uma sala de aula de uma escola da periferia parisiense, os vestígios do colonialismo francês se fazem presentes. Adolescentes de vários países da África, do Oriente Médio e da Ásia. O professor de francês (branco) tentará ensinar aos alunos a língua de Voltaire e Rousseau, a língua do Iluminismo.
Como entender o projeto das Luzes sem mencionar o papel fundamental que a educação teria para a transformação da humanidade? O problema é que, via de regra, as luzes dos holofotes precisam conviver com as sombras que se insinuam. Que fazer com os povos “bárbaros” que não tiveram o bom quinhão de pertencer originariamente aos domínios franceses? Ora, é preciso colonizá-los, isto é, educá-los.
N
o princípio eram os nomes dos alunos. “Vocês devem se apresentar uns para os outros”. Uma aluna árabe e espirituosa interpela o professor:
− E quanto ao senhor? O senhor não vai nos dizer seu nome? Por que só nós precisamos nos apresentar?
O processo de descolonização que se aprofundou após a Segunda Guerra trouxe à tona a percepção de que a diferença precisa ter voz. Os soldados coloniais não ajudaram os aliados a derrotar a eugenia de Hitler? Sendo assim, por que a civilização europeia continua a manter o etnocentrismo como uma de suas bases? Sem ter efetiva consciência do pano de fundo histórico que alicerça sua colocação, uma aluna negra interroga o gramático francês:
− Professor, por que os nomes que o senhor utiliza nunca são africanos ou árabes? Por que sempre temos que ler algo sobre Bill ou Jean?
Se o professor tivesse consciência do papel social a que é relegado, os muros da escola desvelariam a sala como mais uma cela de aula. Professor e carcereiro. É preciso levantar o braço para falar, é obrigatório ter autorização para ir ao banheiro, é rotineiro aprender tópicos anacrônicos e ossificados que não dialogam com as mudanças sociolinguísticas do francês pós-colonial:
− Professor, se ninguém mais usa o imperfeito do subjuntivo para falar, por que nós estamos aprendendo isso? Ninguém fala assim. E por que o senhor nos recrimina quando falamos gírias?
Por acaso os franceses não vão ao banheiro? Os senhores sempre defecam? Os senhores nunca cagam?
Pedagogia do cárcere: o processo de ensino também fica emparedado Entre os muros da escola.
A escolha do professor de francês como protagonista – ou pior, anti-herói – é certeira. A língua discrimina a nacionalidade, a classe social, o orador docente e os entediados ouvintes discentes. A língua conjuga o poder. Mas o contexto pós-colonial da segunda metade do século XX começa a questionar e a embaralhar os papeis hierárquicos antes nitidamente demarcados. Pais e alunos participam dos conselhos escolares.
Para que o poder (escolar) continue a (re)produzir suas advertências e expulsões, é preciso ouvir o que o aluno tem a dizer em legítima defesa. Como muitos diretores e professores fazem questão de frisar, aluno, etimologicamente, é aquele que não tem luz – “a”, não, “luno”, luz –, aquele que, então, precisa aprender. Ainda que a pedagogia democrática postule o respeito à alteridade como um de seus princípios, será que a escola ilhada entre seus muros consegue efetivamente ressignificar e confrontar os processos de exclusão e discriminação?
Enunciar que o ensino não é mais o vértice do processo pedagógico antes centrado no professor para falar sobre o processo de ensino-aprendizagem que passa a envolver os educandos na construção das práticas escolares realmente questiona de maneira radical a política hierárquica da instituição?
Quando o diretor vai à cela de aula para apresentar um novo estudante à classe, todos precisam se levantar. É bem verdade que o diretor precisa minimamente se explicar, “pois o fato de vocês terem que se levantar não é sinal de humilhação ou de submissão, mas de respeito ao novo colega”. Mas a assimetria das posições permanece. Uma efetiva preparação e conformação para a realidade excludente que os muros da escola só fazem ressoar.
O filme do diretor Laurent Cantet, nesse sentido, esgarça a ferida e aponta uma série de limitações para a implementação da democracia escolar que a pedagogia da alteridade pretende estabelecer. Ora, seria preciso derrubar os muros da escola para que a instituição fosse vista não como uma mônada fechada em si mesma, como um organismo que se constitui com suas próprias práticas, mas como um microcosmo que articula o e dispõe do conhecimento básico dos cidadãos: o que estudar, como estudar, como se portar – e ter que obedecer.
Os estudantes bem sabem que não têm voz na escolha dos livros com que precisam se digladiar. Seus hábitos e conhecimentos locais são simplesmente abstraídos e preteridos pela escola. A educação industrial padroniza o conteúdo do ensino e a obediência discente. Tanto pior, então, se o aluno da periferia parisiense não se parecer com um francês considerado típico.
Entre os muros da escola se aparta da idílica filmografia escolar hollywoodiana. Ao mestre com carinho: alunos rebeldes e desordeiros encontram um professor idealista e engajado que promove uma verdadeira revolução em sua sala de aula muitas vezes contra o conservadorismo da direção. O voluntarismo da indústria cinematográfica norte-americana é questionado frontalmente. Não se trata apenas de projetar a mudança institucional com um mero apelo à vontade e ao ímpeto.
A inércia social não será combatida apenas com o amor à docência. Os alunos da periferia parisiense (e brasileira) já não veem sentido em suas aulas. A escola praticamente não lhes diz respeito. A pedagogia pretende insuflar democracia entre os muros escolares, mas em grande medida ainda não se deu conta de que a sala de aula continuará a reproduzir as clivagens sociais se o âmbito da mera enunciação não for superado.
O educando aprende e entende que a diversidade étnica e cultural é uma conquista histórica fundamental que tenta romper com o etnocentrismo. Ao sair da escola, no entanto, a polícia promove mais uma batida e faz com que os alunos se prostrem diante dos mesmos muros escolares que há pouco lhes haviam prometido – e usurpado – liberdade, igualdade, fraternidade e, sobretudo, respeito à diversidade.
*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será lançado no dia 20 de abril, às 17h, na livraria Martins Fontes – Avenida Paulista, 509, ao lado da estação Brigadeiro do metrô.
Link com mais informações:
http://subsolodasmemorias.blogspot.com.br/2013/03/lancamento-do-livro-o-evangelho-segundo.html.
Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Como entender o projeto das Luzes sem mencionar o papel fundamental que a educação teria para a transformação da humanidade? O problema é que, via de regra, as luzes dos holofotes precisam conviver com as sombras que se insinuam. Que fazer com os povos “bárbaros” que não tiveram o bom quinhão de pertencer originariamente aos domínios franceses? Ora, é preciso colonizá-los, isto é, educá-los.
N
o princípio eram os nomes dos alunos. “Vocês devem se apresentar uns para os outros”. Uma aluna árabe e espirituosa interpela o professor:
− E quanto ao senhor? O senhor não vai nos dizer seu nome? Por que só nós precisamos nos apresentar?
O processo de descolonização que se aprofundou após a Segunda Guerra trouxe à tona a percepção de que a diferença precisa ter voz. Os soldados coloniais não ajudaram os aliados a derrotar a eugenia de Hitler? Sendo assim, por que a civilização europeia continua a manter o etnocentrismo como uma de suas bases? Sem ter efetiva consciência do pano de fundo histórico que alicerça sua colocação, uma aluna negra interroga o gramático francês:
− Professor, por que os nomes que o senhor utiliza nunca são africanos ou árabes? Por que sempre temos que ler algo sobre Bill ou Jean?
Se o professor tivesse consciência do papel social a que é relegado, os muros da escola desvelariam a sala como mais uma cela de aula. Professor e carcereiro. É preciso levantar o braço para falar, é obrigatório ter autorização para ir ao banheiro, é rotineiro aprender tópicos anacrônicos e ossificados que não dialogam com as mudanças sociolinguísticas do francês pós-colonial:
− Professor, se ninguém mais usa o imperfeito do subjuntivo para falar, por que nós estamos aprendendo isso? Ninguém fala assim. E por que o senhor nos recrimina quando falamos gírias?
Por acaso os franceses não vão ao banheiro? Os senhores sempre defecam? Os senhores nunca cagam?
Pedagogia do cárcere: o processo de ensino também fica emparedado Entre os muros da escola.
A escolha do professor de francês como protagonista – ou pior, anti-herói – é certeira. A língua discrimina a nacionalidade, a classe social, o orador docente e os entediados ouvintes discentes. A língua conjuga o poder. Mas o contexto pós-colonial da segunda metade do século XX começa a questionar e a embaralhar os papeis hierárquicos antes nitidamente demarcados. Pais e alunos participam dos conselhos escolares.
Para que o poder (escolar) continue a (re)produzir suas advertências e expulsões, é preciso ouvir o que o aluno tem a dizer em legítima defesa. Como muitos diretores e professores fazem questão de frisar, aluno, etimologicamente, é aquele que não tem luz – “a”, não, “luno”, luz –, aquele que, então, precisa aprender. Ainda que a pedagogia democrática postule o respeito à alteridade como um de seus princípios, será que a escola ilhada entre seus muros consegue efetivamente ressignificar e confrontar os processos de exclusão e discriminação?
Enunciar que o ensino não é mais o vértice do processo pedagógico antes centrado no professor para falar sobre o processo de ensino-aprendizagem que passa a envolver os educandos na construção das práticas escolares realmente questiona de maneira radical a política hierárquica da instituição?
Quando o diretor vai à cela de aula para apresentar um novo estudante à classe, todos precisam se levantar. É bem verdade que o diretor precisa minimamente se explicar, “pois o fato de vocês terem que se levantar não é sinal de humilhação ou de submissão, mas de respeito ao novo colega”. Mas a assimetria das posições permanece. Uma efetiva preparação e conformação para a realidade excludente que os muros da escola só fazem ressoar.
O filme do diretor Laurent Cantet, nesse sentido, esgarça a ferida e aponta uma série de limitações para a implementação da democracia escolar que a pedagogia da alteridade pretende estabelecer. Ora, seria preciso derrubar os muros da escola para que a instituição fosse vista não como uma mônada fechada em si mesma, como um organismo que se constitui com suas próprias práticas, mas como um microcosmo que articula o e dispõe do conhecimento básico dos cidadãos: o que estudar, como estudar, como se portar – e ter que obedecer.
Os estudantes bem sabem que não têm voz na escolha dos livros com que precisam se digladiar. Seus hábitos e conhecimentos locais são simplesmente abstraídos e preteridos pela escola. A educação industrial padroniza o conteúdo do ensino e a obediência discente. Tanto pior, então, se o aluno da periferia parisiense não se parecer com um francês considerado típico.
Entre os muros da escola se aparta da idílica filmografia escolar hollywoodiana. Ao mestre com carinho: alunos rebeldes e desordeiros encontram um professor idealista e engajado que promove uma verdadeira revolução em sua sala de aula muitas vezes contra o conservadorismo da direção. O voluntarismo da indústria cinematográfica norte-americana é questionado frontalmente. Não se trata apenas de projetar a mudança institucional com um mero apelo à vontade e ao ímpeto.
A inércia social não será combatida apenas com o amor à docência. Os alunos da periferia parisiense (e brasileira) já não veem sentido em suas aulas. A escola praticamente não lhes diz respeito. A pedagogia pretende insuflar democracia entre os muros escolares, mas em grande medida ainda não se deu conta de que a sala de aula continuará a reproduzir as clivagens sociais se o âmbito da mera enunciação não for superado.
O educando aprende e entende que a diversidade étnica e cultural é uma conquista histórica fundamental que tenta romper com o etnocentrismo. Ao sair da escola, no entanto, a polícia promove mais uma batida e faz com que os alunos se prostrem diante dos mesmos muros escolares que há pouco lhes haviam prometido – e usurpado – liberdade, igualdade, fraternidade e, sobretudo, respeito à diversidade.
*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será lançado no dia 20 de abril, às 17h, na livraria Martins Fontes – Avenida Paulista, 509, ao lado da estação Brigadeiro do metrô.
Link com mais informações:
http://subsolodasmemorias.blogspot.com.br/2013/03/lancamento-do-livro-o-evangelho-segundo.html.
Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.